31 janeiro, 2011

'Interlúdi(c)o'

(ou 'Do exercício infame do discurso (a)moroso sem a mínima noção da poesia, da métrica, das convenções estéticas e da Língua Portuguesa em geral').

Se é verd(ad)e amadurece*.
Se é ment(ir)a arde.
Se é viol(et)a entristece.
Se é ro(sa sho)ck, é hard.

Se é a(zu)lado paira,
Se é puro (N)eg(r)o é o breu.
Se gritante é ama(re)la,
Ve(rme)lho, calo-me eu.

Se é c(i)úme, congela.
E em (car)mim, encarnado.
"Toda (multic)olor, é ela."
Trago no peito acin(zent)ado.

*Jéssica Donegá.

27 janeiro, 2011

O Poder do Mito

Revirando coisas antigas, deparei-me com um apanhado que fiz sobre algo da obra de Joseph Campbell. Especificamente sobre uma entrevista com Bill Moyers, cuja transcrição, aliás, daria ensejo ao que mais tarde veio a ser "O Poder do Mito". Dentre todas as fontes que possibilitaram a publicação, essa constitui material preponderante. Enfim, tal apanhado constitui-se de uma série de comentários, bastante superficiais, mas igualmente interessantes exatamente por essa razão: não têm qualquer pretensão de se estenderem ou aprofundarem as reflexões do autor mas são, antes, um passeio, um panorama no qual despontam, aqui e ali elencadas, questões curiosas que levanta em sua fala. Gostaria, assim, de postá-lo aqui.
Aos frequentadores do Poder do Mito e outras publicações de Campbell, não acharão nada de novo aqui. Para aquele que só agora toma contato com o autor ou para quem precisa de uma síntese geral, acreditamos ser esta uma alternativa razoável.

O Poder do Mito. Parte I - A saga do herói

A saga do herói trata de um dos aspectos fundamentais da teoria de Campbell, apresentada no seu livro, talvez o mais conhecido, “O Herói de mil Faces”.
Aí, trata ele da questão da universalidade da estrutura da narrativa heróica ao longo das culturas e épocas. A típica seqüência de feitos, um ciclo (partida, realização, regresso) que começa com o chamado para a aventura, passa por uma série de provas auxiliares e culmina na vitória do herói (um ser humano excepcionalmente forte, física ou espiritualmente), vitória sobre si mesmo, sobre suas limitações, e que volta para comunicar essa conquista e dividir com seus semelhantes essa descoberta.
Psicologicamente falando, poderíamos afirmar que a jornada do herói consiste no amadurecimento individual (ou grupal, dependendo da abordagem), na morte da persona infantil, heterônoma, para a “ressurreição” como adulto autônomo e responsável, integrado, “in-divíduo”. Mitos, segundo Campbell, tratam da transformação da consciência.
Numa abordagem sociológica a questão pode ser: Como viver como ser humano responsável e solidário numa realidade sócio-histórica que “instrumentaliza” pessoas, subjetivamente, através do consumo da propaganda e objetivamente através da exploração do trabalho.
Atualmente, como sempre fez em outros tempos e lugares, o mito nos questiona Como se relacionar com a sociedade e a natureza, o cosmos de maneira positiva, não destrutiva. Eis um grande desafio para todos nós, heróis e heroínas modernos.

O Poder do Mito. Parte II - A Mensagem do Mito

Nesse ponto entramos especificamente nas implicações religiosas dos mitos como narrativas provenientes de muitas culturas e, portanto, repletas de divindades, de diferentes deuses e deusas.
Eis um conceito complexo e delicado, mas que resulta, cremos, numa solução satisfatória na abordagem de Campbell.
Os mitos, por sua natureza são metáforas que se referem ao absolutamente transcendente, ao que não pode ser medido, pensado e só precariamente descrito, dentro das categorias que conhecemos. “E a palavra que, em nossa linguagem, serve prara designar o que há de mais transcendente é Deus”, diz Campbell.
A essa altura ele chama a atenção para o dualismo enraizado em nossa percepção (ser e não ser, claro e escuro, noite e dia, vida e morte, macho e fêmea, passado e futuro). Sobre este dualismo estão fundadas as religiões ocidentais, que carregam consigo, deste modo, uma profunda carga moral (Deus e homem, culpa e expiação, certo e errado, bem e mal) Freqüentemente o resultado é uma incongruente tríade Deus-homem-natureza, fonte de uma esquizofrenia que não permite ceder à natureza “pecaminosa” e implica forçosamente em afastar-se das “coisas do mundo”.
Em sentido oposto, a contrapartida necessária seria a adoção de uma postura de afirmação incondicional do mundo, com tudo o que nele nos aparece. O desafio, incontornável, se apresenta então num comprometimento radical com a realidade (isso incluiria não só o meio ambiente como a política), ao mesmo tempo que uma atitude de não julgamento e de reflexão sobre a essência do Bem realizado (não seria também ele uma ”verdade” imposta, pessoal e coletivamente?)
O cerne da questão figura na busca pela experiência de plenitude, felicidade, expressas nas formas do mito e da religião. Qual a natureza dessas duas esferas?
Para Campbell tanto uma como a outra são metáforas, que devem ser lidas conotativamente sob o risco de, do contrário, ficarem presas aos símbolos. Um problema puramente literário: saber ler poesia como tal, e não interpretá-la como prosa. Nesse erro reside a fonte das nossas chagas pessoais e mesmo daquelas chagas permanentes que se infligem mutuamente as civilizações do Oriente médio, onde convivem as três grandes religiões monoteístas. A solução seria buscar em seu próprio repertório, o referencial, aquilo que é a essência da mensagem.
Para Campbell “Céu e inferno, estão dentro de nós, assim como Deus”. Nesse sentido, uma definição campbelliana de mito muito segura pode ser aqui posta: mitos sãos metáforas, imagens simbólicas que representam e se reportam às diferentes energias internas de nosso corpo em conflito. A questão agora é procurar, igualmente dentro de si, o essencial, invisível, pra encontrar a felicidade, reconhecê-la e vivenciá-la pois “a eternidade aqui e agora é a função da vida”.

O Poder do Mito. Parte III - Os Primeiros Contadores de Histórias

Aqui o autor fala sobre a origem do mito e sua função de colocar em sintonia o homem como um todo e com as aparentes contradições da existência, sendo a morte a mais intrigante.
Discorre sobre a busca de significado para a morte por parte dos primeiros homens, nossos ancestrais. Morte da caça, ou seja, dos animais dos quais dependiam e morte de seus semelhantes. Com base em evidências de túmulos e sarcófagos dedicados a determinados animais e também a humanos, a partir do período Neandertal (200.000- 75.0000/ 25.000 a.C.*) A mitologia partiria desse princípio: a significação da morte.
Aí entram, por um lado a relação de expiação por matar o animal, um mensageiro divino (em muitos casos, como vemos em religiões que preservam o aspecto sagrado de alguns animais, o próprio deus) que se oferece voluntariamente como vítima sacrificial para servir de alimento e, de outro lado, a reverência pelo reconhecimento da dependência desses animais, o ritual como expressão de devoção, uma relação de respeito se impõe.
Campbell toma como exemplo as pinturas rupestres presentes nas cavernas de Troi-Fères e Altamira e aponta questões muito interessantes como sua função ritual (talvez, a introdução dos jovens na caça) e a intencionalidade - ou não - da beleza de tais obras (Em que medida uma teia de aranha ou o canto de um pássaro são intencionalmente belos? E em relação às pinturas desses proto hominídeos?).
Desse ponto de vista temos em conta que a arte e a mitologia estão intrinsecamente ligadas e caberia, não necessariamente aos sacerdotes, funcionários sociais, mas aos artistas, resignificar e criar novas mitologias contemporâneas.

O Poder do Mito. Parte IV - Sacrifício e Felicidade

Nesse capítulo, descreve a passagem, em algumas sociedades, do ambiente da caça para o da cultura de sementes e o impacto dessa mudança na construção mitológica: uma nova visão de mundo.
Surge mais forte a idéia de fazer parte de algo maior, como se cada pessoa não fosse simplesmente uma pessoa, um indivíduo, mas um ramo entre tantos da grande árvore da vida, cujas folhas caem e que precisa ser podada de quando em vez.
Ao observar similaridades nas mitologias ao redor do mundo e essas respectivas mudanças, o autor questiona duas possibilidades (e essa é uma questão central, muito controversa e debatida entre estudiosos):
1. Tese das “idéias elementares”( Adolf Bastian – 1826-1905) ou arquétipos (Carl G.Jung – 1875-1961). Nessa tese, utilizando e desenvolvendo conceitos desses dois pensadores, postula-se que a estrutura essencial da psique inerente ao corpo humano, que não se alterou significativamente desde as cavernas, preserva suas leis psicológicas relativamente invariáveis e uniformes por todo o mundo o que ocasiona mudanças independentes e simultâneas.
2. Tese difusionista, da qual Campbell era um dos defensores. A certa altura da História com a ”invenção” da agricultura (provavelmente na Ásia, no Crescente Fértil), espalha-se pelo mundo afora ao longo de milhares de anos a prática agrícola. e junto com ela a mitologia relacionada a esse modelo, a morte e o renascimento da vida vegetal.

A questão presente na mitologia ligada à vegetação é a da identificação por trás da aparência da dualidade. Morre a carne, mas o espírito se mantém. Vida e morte são manifestações de uma mesma realidade. Mais que interdependentes são correspondentes e equivalentes. Nesse ponto fala da estreita associação entre procriar e morrer. O sacrifício presente na maternidade/paternidade, no casamento, no engajamento político, etc.

O Poder do Mito. Parte V - O Amor e a Deusa.

Nesse trecho da obra, Campbell versa sobre o nascimento do amor romântico no século XII, quando se inaugura a concepção de relacionamento amoroso entre duas pessoas, extrapolando, por exemplo, a idéia do casamento como instituição em que as pessoas eram unidas por conveniência.
Essa experiência inovadora de amar indo mesmo contra a tradição religiosa dos casamentos arranjados tornou-se parte significativa da afirmação da experiência individual, pessoal, em detrimento da autoridade da tradição
Distingue o amor erótico (Eros) biológico, sensual do amor/ compaixão (Ágape), aquele que ama o próximo como a si mesmo.
E volta a discorrer sobre o amor como afirmação da vida com seu sofrimento, a compaixão que este desperta, abertura para o outro.
Continuando o tema, aborda a questão da reverência à mulher como símbolo da vida e da compaixão.
Nas primeiras sociedades agrícolas era determinante a imagem da terra como a imagem da mulher: fértil, nutridora, doadora da vida, mágica, misteriosa. A mulher é a Deusa, a Deus, mulher.
Seguem então as invasões semita e indo-européia de pastores nômades, guerreando por territórios e, de sua mitologia, anteriormente caçadora (mas ainda orientada aos animais) surgem os deuses guerreiros que subjugarão a deusa.
Essa perspectiva patriarcal, freqüentemente belicosa, exerceu grande influência no que hoje chamamos de machismo, subjugação da mulher, fortemente presente em grande parte das sociedades, ocidentais.
Finalizando, toma como ponto central o tema mitológico do nascimento a partir de uma virgem, motivo predominantemente grego que aparece incorporado no Evangelho de Lucas. Ele simboliza o nascimento espiritual do novo homem, nascido não mais da carne puramente, mas do espírito, do coração aberto, compassivo para com o sofrimento alheio, nascimento que simboliza uma transformação espiritual.

26 janeiro, 2011

Retratos a óleo

Retratos a óleo, a partir de fotografias. Bastante impressionantes. Confiram:

Anatomia de um retrato, por Irv Rudley (cfsvideo.net):
http://www.youtube.com/watch?v=659xG50KbGs&NR=1


Retrato de figura masculina por Igor Kazarin (art-portrets.ru):
http://www.youtube.com/watch?v=p2V14LmUxr0&feature=rec-LGOUT-exp_fresh+div-1r-5-HM

22 janeiro, 2011

Claro enigma

O rosto de cada pessoa com quem me deparo é um flagrante mistério. Gosto de me demorar nessas investidas sobre as máscaras dos outros - das quais são quase tão inconscientes quanto seu peristaltismo -, de passear nessa carnetectura ambulante.
Naturalmente, me atraem uns rostos mais que outros. Me pergunto se o critério é mais universal (como simetria, por exemplo) ou particular (como memórias afetivas latentes). Não sei se concordam comigo, mas penso que a nossa tendência é projetar uma série de conteúdos em pessoas que possuem determinados traços familiares, que supostamente carregariam, como num estigma fisignominiano. Um traço parece figurar toda uma personalidade. De onde vêm esses arquétipos? São construções? De natureza predominantemente psicológica ou social? São as mesmas para todos, como o são o vermelho ou o azul?
Nessa matéria, particularmente, não tenho senão dúvidas.
Não tenho travado, há tempos, conversas pessoais sobre essas questões, para mim tão intrigantes, absolutamente fascinantes, diria. Eis um passatempo que muito me agradava em tempos idos, mas que agora hesito em compartilhar, assim como assuntos de cunho pessoal, por diversos motivos, e isso inclui uma introversão que de certa forma beira o patológico (embora mesmo isso tenha suas compensações e vantagens). "Quem pensa demais acaba ficando triste", admoestava o status do orkut de uma amiga minha (cujo semblante, "essa cara torta", por coincidência ou não, é também uma de minhas paisagens prediletas).
Talvez, talvez. Depende no quê e como a gente pensa. E pra quê. (De preferência a gente deveria pensar pra nada, mas isso é algo inviável, quase impossível pra muitos de nós hoje...) Será verdade que, se a gente pensa por muito tempo - e se for mesmo verdade que quem pensa, entristece -, isso fica estampado na nossa cara?
Pode ser... De certa forma a gente também vai marcando sem sentir o próprio rosto, fabricando a nossa própria máscara. Diretamente, se a gente expressa o que está sentindo, ou indiretamente se a gente faz cara de alegre, quando na verdade está triste.
Como as mãos, o rosto trabalha, empenha-se em produzir, é também ferramenta. É mais um empregado, candidato a funcionário padrão.
Sorrisos de atendente, de vendedor, garota propaganda.
Carranca, de professor, de policial.
Contorcionismo puro de ator e atriz.
Cartão postal, cartão de visita, de memória, de crédito(!)... máscara.
E como as mãos, o rosto vai ganhando linhas (linhas da vida, linhas do coração).
Algumas são praticamente inevitáveis: olheiras de pouco sono, irritação do ritmo opressivo do trabalho; ou de lágrimas de um luto prolongado, pela perda de algum ente querido.
Sobretudo, sustentamos que rostos são calmos, penetrantes, alguns engraçados, outros profundos, marcados, provocantes, sofridos, ora patéticos, ora animalescos...
Extensa galeria, carniceria, no espaço-tempo, condensação do sentimento de mistério infinito, do eterno no visível. Encaramos a vida.
Dizia Malevich, no Manifesto suprematista de 1915: "Os pintores sempre foram parciais no uso do rosto humano em suas representações, por nele terem visto (o versátil, móvel, mímico expressivo) o melhor veículo pelo qual este transmite seus sentimentos."
Concordo, por tudo o que disse anteriormente.
Não vejo senão como um desafio intransponível, um modo de ser imparcial sem abrir mão da figuração desse objeto composicional tão curioso. É um êxtase (egoísta, mas um êxtase) contemplar Elizabeth Chanler, de John Singer Sargent. É um deleite pessoal, independente das implicações eminentemente conceituais, formais, elevadas, rarefeitas, da obra de arte. Êxtase que tem algo do kitsch, efeitismo, sentimento de prazer desencadeado e orientado pelo encantamento fácil da pintura figurativo-decorativa.
O que dizer?
Gosto do clichê, gosto do kitsch (redundância), gosto de contemplar esses rostos, como gosto de ser observado.
Meu analista costumava apontar o fato de que, nas representações da Virgem, quase sempre hieráticas, ela nunca olhava o menino.
Talvez também por isso, me questiono, Jesus tenha se transmutado no Cristo. rs
Iconoclasmas à parte, vamos parando por aqui que isso está ficando deveras viajante.
Só faltaram os Beatles. kkk

Ainda mais caricas.

Caricas do pessoal do Colégio Marista. Valeu, povo!
































20 janeiro, 2011

O MASP

O MASP nasce a partir da iniciativa do empresário Assis Chateaubriand e do jornalista e crítico italiano Pedro Maria Bardi, no ano de 1947. A nova sede, projeto de Lina Bo Bardi, demorou cerca de dez anos para ser construída, foi inaugurada em 8 de novembro de 1968 e contou com a presença, entre as várias personalidades ilustres, da Rainha Elizabeth II.
No edifício de aproximadamente 10.000 metros quadrados, há, além dos espaços expositivos e da pinacoteca, biblioteca, fototeca, filmoteca, videoteca, dois auditórios, restaurante, loja, oficinas, ateliê, espaços administrativos e reserva técnica. O acabamento é simples: concreto à vista, caiação, piso de pedra-goiás para o grande Hall Cívico, vidro temperado, paredes plásticas. Os piso são de borracha preta, tipo industrial. O Belvedere é uma 'praça', com plantas e flores em volta, pavimentada com paralelepípedos.
O acervo conta com um grande volume de obras representativas da arte ocidental, arte brasileira, norte e latinoamericana, além de peças significativas produzidas pelas civilizações asiática, africana, egípcia, etrusca, greco-romana e pré-colombiana.
(Fonte: Wikipedia)



Quem pensa na arterial avenida Paulista, ícone máximo da supremacia ecomômica paulistana, lembra logo de outro belíssimo cartão postal da paisagem urbana da capital do Estado que mais cresce no Brasil: o Museu de Arte de São Paulo, o MASP. Símbolo de modernidade, espaço de alto status que recebe o que há de mais significativo na arte nacional e internacional (principalmente internacional), o Museu é considerado a concretização do projeto de uma metrópole avançada e culta, apta a abrigar desde tesouros arqueológicos das civilizações do extremo oriente à nata da vanguarda, seja ela européia ou estadunidense. Em parte isso é verdade.
O famoso novo prédio revela claramente ares de modernidade e parece refletir a vontade de domínio das possibilidades que se abriam em relação às novas técnicas construtivas, experiências audaciosas e empreendedoras que permitiam o espírito otimista dos nossos arquitetos e engenheiros numa época em que se apostava na prosperidade, no projeto de um “Brasil que podia dar certo”. Mas enganados ficamos se nos contentamos em pensar unicamente dessa forma.
Basta olharmos com um pouco mais de cuidado nos pormenores de um outro projeto, o projeto mesmo de Lina Bo Bardi, que concebeu a idéia do novo Museu de Arte de São Paulo, para perceber que havia muito mais que motivações puramente econômicas e financeiramente especulativas por trás do MASP.
“Um terrenozinho pelado”, observa a arquiteta (apud RUBINO; GRINOVER, São Paulo, 2009, p. 122). “(...) passando numa daquelas tardes pela Avenida Paulista, pensei que aquele era o único, o único lugar onde ao Museu de Arte de São Paulo podia ser construído; o único digno, pela projeção popular, de ser “base” do primeiro Museu de Arte da América Latina”.
O primeiro critério já nos revela um olhar profundamente atento às aspirações coletivas, à preservação do espaço público - no sentido mais radical da expressão - à conservação de sua memória afetiva e à criação de um novo ambiente que detenha uma certa autenticidade e, sobretudo, liberdade.
Isso fica patente na clareza e simplicidade monumental da edificação: um imenso caixote de cristal laminado, apoiado unicamente por quatro pilares coligados por vigas de concreto que sustentam o duplo pavimento da Pinacoteca e que abre sob si um imenso vão de mais de 70 metros, espaço em que Lina pretendia como ambiente de exposições ao ar livre, de leitura e congraçamento entre os freqüentadores do lugar, de lazer para as crianças. Escolha de meios sucintos e acabamento à mostra, proporcionam uma visão imediata e expressiva de estrutura comunicando ao mesmo tempo a humildade e a força da arquitetura como arte capaz, estética e funcionalmente, de resistir a “esforços surpreendentes”. (BO BARDI, Lina apud RUBINO; GRINOVER, São Paulo, 2009, p. 130).Esse nobre ideal do projeto torna-se igualmente inequívoco num dos “incidentes” que condicionaram o partido e que, segundo ela, deveriam ser plenamente assumidos a despeito de um perfeccionismo idealista, que resulta em deturpamento da arte tectônca. Uma das condições do projeto, colocada pelo doador do terreno, Joaquim Eugênio de Lima (o “pai” da Avenida Paulista) era que preservasse o panorama do centro através do vale da avenida 9 de Julho. Assumindo como elemento composicional do partido Lina chegou a um conceito que, técnica e formalmente condensava suas convicções profissionais, plásticas, atendendo às urgências funcionais e éticas do meio e da época. O resultado a que chegou, depois de mais de uma década de planejamento e construção, foi um grande prisma pairando no ar, símbolo poderoso e comovente de clareza, transparência, suspensão. Suspensão das barreiras entre arte e vida, da cisão positivista entre natureza e progresso, dos juízos fixos, engessados, em favor de um gozo autêntico de descobrir a arte como instância preciosa do cotidiano. Provocação reflexiva sobre a herança e o patrimônio cultural nacional e cautela frente a um modelo que fosse unicamente um simulacro da produção estrangeira. Nesse espaço homogêneo de livre exposição de obras das mais variadas épocas e sítios, instaura livremente uma perversão da hierarquia de valores estabelecidos.
Tal era o espírito originário dos projetos de Lina, do qual o MASP não figura exceção, mas confirma em sua simplicidade e clareza a máxima expressiva de que “_Menos é mais”.
Recentemente, e em nome de uma adequação às viscissitudes do clima e da preservação do patrimônio o MASP sofreu uma série de modificações que parecem apontar para as soluções mais tradicionais do cubo cênico: instalações de divisórias em lugar dos suportes de vidro sobre base de concreto originais (coerentes com o ideário e concepções originárias de Bo Bardi) , persianas e folders gigantes nas fachadas que na opinião de diversos arquitetos e críticos conferem um caráter de espetáculo e insinuam um viés puramente comercial, decaracterizando assim por completo o partido inicial e todos os desdobramentos intrínsecos ao pensamento e convicções Bobardianos.

Referências
RUBINO, Silvana; GRINOVER, Marina (Org.). Lina por Escrito, Cosac Naify, São Paulo, 2009.

15 janeiro, 2011

O Cubismo de Gleizes e Metzinger e a pintura de Mondrian



“Um quadro que não contivesse senão retas ou curvas, não exprimiria a existência”. [1] (Albert Gleizes; Jean Metzinger apud CHIPP,1999, p. 215)

É quase impossível nos depararmos sem algum grau de perplexidade frente a essa afirmação, feita no início do século por dois dos maiores defensores do cubismo. Tal provocação nos traz à memória uma gama de obras de pintores renomados, obras que se encaixam perfeitamente nessa categoria e suscita em nós quase de imediato a seguinte questão: “_Mas e Mondrian?” Muito frequentemente, seja no restaurante, seja no banco, num anúncio de revista ou comercial de televisão, nos deparamos com reproduções de suas inconfundíveis composições: linhas verticais e horizontais em preto, distribuídas no plano e que formam retângulos em proporções variadas, preenchidos com as três cores pigmento primárias, amarelo, azul e vermelho, além do branco.

Mesmo quem não compreende o significado último das obras desse holandês, sabe, naturalmente, que elas não estariam estampadas por toda parte se não lhes fossem conferidos um valor e uma importância relevantes e pressente que, por detrás desse status cultural, deve haver algo mais, uma idéia. Pode acontecer ainda, de reconhece-las apenas em seu aspecto decorativo, como belos desenhos, agradáveis, negando-lhes impacientemente o estatuto de obras de arte (Quem nunca ouviu a clássica: “_Arte? Meu sobrinho de três anos faz isso!”). Atitude muito frequente em nossos dias frente aos supostos disparates da arte contemporânea. Fato é que, para bem ou para mal, tais obras não nos passam despercebidas e mesmo aquele que não têm o hábito ou mesmo o interesse de se dedicar à leitura sobre arte, muitas vezes identifica com facilidade os quadros e, caso interpelado, consegue com menor ou maior dificuldade trazer à tona o nome do pintor. Mondrian, em nossa sociedade, mais que um artista goza do status de celebridade.

Desse ponto de vista a afirmação de Gleizes e Metzinger, importantes figuras da história da arte, parece contradizer o trabalho do pintor holandês e este, por sua vez, parece comprometer a palavra de dois pintores e teóricos do cubismo. As obras de Mondrian distam do livro em questão, publicado em 1912, em quinze anos (“Composição em vermelho, amarelo e azul”, por exemplo, data de 1927). É algo que certamente tem de ser levado em conta. Seria, então, um simples caso de superação das idéias cubistas pelo neoplasticismo? Mas como tal estética se oporia essencialmente às idéias do cubismo quando reconhecemos que este “(…) é, de fato, a fonte imediata da corrente formalista da pintura abstrata e não-figurativa que dominou a arte o século XX”?[2] (CHIPP, 1999, p. 195) Estaria enfim tal afirmação em total desacordo com as obras do pintor? São duas posições irreconciliáveis?



Piet Mondrian, Composição em vermelho, amarelo e azul, óleo sobre tela, 61x40 cm, Stedelijk Museum, Amsterdam.


Se considerarmos a afirmação de que ambos, o cubismo - especificamente o de Gleizes e Metzinger, dado que o cubismo assumiu formas variadas ao longo do tempo - e o neoplasticismo de Mondrian encontram-se numa construção homogênea conceitual e prática que é a pintura abstrata, resulta difícil sustentar que há aí uma contradição insolúvel. De fato, uma das características mais marcantes da modernidade foi a estreita ligação que se buscava na expressão de sentimentos, idéias e emoções interligados o que se reflete claramente na abundante florescência de movimentos e estreita ligação entre poetas, pintores, críticos, músicos, ensaístas, etc. Muitos deles buscavam na arte como um todo, correspondências sinestésicas e parentescos comuns entre letra, pintura e música, chegando mesmo a associações com campos da matemática, da filosofia e até mesmo da esfera religiosa (dos quais o maior exemplo é, sem dúvida, Kandinsky).

Além disso, na longa esteira das reflexões de pensadores e artistas como Delacroix, Baudelaire, Wagner, Gustave Khan, Maurice Denis, e muitos outros, a corrente abstracionista na pintura origina-se a partir de uma miríade de fatores comuns que compõem o que chamamos hoje de crise da modernidade. Ela nasce como necessidade de expressão, em reação à artificialidade e à falta de vitalidade da Academia, acusada de não mais suprir as necessidades espirituais de sua época. Ao mesmo tempo é impulsionada pela necessidade de busca da especificidade e portanto de legitimidade da pintura, tanto em relação à literatura, da qual era considerada mera auxiliar, como frente aos novos processos da fotografia, uma das muitas inovações técnicas que inauguravam um novo modo de vida (industrial, urbano, de produção mecânica, instantânea) e que ameaçava pôr fim ao status (e mesmo ao ofício) do pintor. O impressionismo foi um desses caminhos e trabalhou no sentido de captar a sensação visual imediata, definir a essência da operação pictórica e afirmar o estatuto da pintura na sua própria fatura e na sua pura materialidade: pintura como pintura.[3]

O cubismo por sua vez vem ao encontro de uma necessidade de superar o aspecto fugidio e superficial da impressão em benefício de uma representação menos instável, representação “(…) de elementos que permanecem no espírito pelo conhecimento e que não se modificam todas as horas.”[4] (Juan Gris apud CHIPP,1999, p. 280)

Essa busca pelo que há de essencial nos aspectos que compõem a natureza e a realidade chega às raias metafísicas em Mondrian quando afirma:

A arte nos faz compreender que há leis fixas que governam e nos indicam o uso de elementos construtivos, das composições e das relações inerentes a elas. Estas leis podem ser consideradas como subsidiárias da lei fundamental da equivalência, que cria o equilíbrio dinâmico e revela o verdadeiro conteúdo da realidade.[5] (Piet Mondrian apud CHIPP, 1999, p. 357)

É verdade que a declaração de Gris é tardia e que o que caracterizou o cubismo quando de sua eclosão[6] foi o sentimento de profunda incoerência e a tremenda incompreensão que gerou nos espectadores, despertando reações violentas por parte da crítica e acirradas discussões. Metzinger alude às pinturas de Picasso como portadoras de uma nova perspectiva, “(…) livre e móvel” e de uma forma que “(…) recupera finalmente o seu direito à vida e à instabilidade.”[7] (Jean Metzinger apud CHIPP. 1999, p. 198, o grifo é nosso.) Esta instabilidade parece estar bastante distante do equilíbrio pretendido por Mondrian. Mas não nos enganemos. A pespectiva já é algo que este busca suprimir da construção plástica enquanto quadro, insistindo na pura bidimensionalidade da tela, na superfície pictórica. Sua preocupação, no entanto, continua essencialmente a mesma que fundara a estética do cubismo uma década antes quando, em seu livro ‘Os Pintores Cubistas’, um dos maiores defensores do movimento, afirma que

A verossimilhança já não tem nenhuma importância, pois o artista sacrifica todas as verdades, às necessidades de uma natureza superior que ele próprio supõe descobrir. O assunto já não conta ou conta muito pouco”[8]( Guillaume Apollinaire apud CHIPP, H. B, 1999, p. 224)

Essa preocupação que visa privilegiar a forma e a expressão individual, descobrir a ordem subjacente oculta no caos aparente das coisas, da natureza e da realidade, aparecia já na corrente simbolista mas só com o cubismo, seus desenvolvimentos posteriores e outras correntes nascidas de outras fontes afins é que inaugura-se essa preocupação, intrínseca na pintura, de equilíbrio entre o figurativo e o não-figurativo. De fato, desde a categórica afirmação de Denis que constitui a idéia de preponderância material da pintura (enquanto superfície de cores combinadas de modo organizado) o desafio, o problema básico constituía-se em representar nas duas dimensões do plano, as três dimensões do real. Agora com o cubismo surge o que nas discussões do Bateau Lavoir, de Picasso ou mais tardiamente no estúdio em Puteaux, de Jacques-Villlon, ficou conhecido como a quarta dimensão, uma dimensão “maior do que a Terceira para expressar uma síntese de opiniões e sentimentos em relação ao objeto (…) dimensão ‘poética’, na qual todas as dimensões tradicionais são superadas”.[9] (Jean Metzinger apud CHIPP, 1999, p.226.)



Capa da obra Cubismo de A. Gleizes et J. Metzinger, Paris, edição Eugène Figuière, 1912.
Centro Pompidou, Paris, Biblioteca Kandinsky.



E embora a profundidade perca prevalência nos quadros de Mondrian sua preocupação com a terceira dimensão não desaparece. Pelo contrário, segue no projeto construtivista de integração entre a pintura, a escultura, a arquitetura e o design, equilíbrio que é a própria beleza, reflexo da expressão da vida interior incorporada no ambiente onde a arte se imiscui e se mescla, constituindo a própria essência do espaço, a um só tempo racional, funcional e plástico. O espaço, instância coletiva, torna-se condensação do sentimento plástico e objeto agradável ao olhar.

Em ambos, cubismo e neoplasticismo, essa preocupação com uma dimensão ‘poética’ funda-se na preocupação com outras esferas humanas que não a pura racionalidade utilitarista que fazia sentir seus efeitos no início do século e que saltava aos olhos no subsequente espetáculo brutal da primeira Guerra Mundial. A importância dada a elementos como o sentimento e o instinto são uma constante na arte abstrata onde importam mais o ritmo e as relações mútuas das formas, a essência das coisas, deixando de lado as particularidades e os acidentes e buscando, acima de tudo, a liberdade e a imaginação, as formas enraizadas no homem, os valores intrinsecamente humanos e humanizantes.



A esse respeito afirma Daniel-Henry Kahnweiler:

“As linhas retas verticais e horizontais e o círculo são o fundamento da visão e da sensação objetivas e a lírica do cubismo, expressão da vida espiritual da época revela uma busca pelo essencial das coisas e do mundo, ao mesmo tempo que pela síntese e unidade.”[10] (Kahnweiler apud CHIPP, 1999, 251)

Eis uma descrição que poderia aplicar-se quase que completamente à pintura de Mondrian: expressão unificada das oposições que para ele constituem o cerne da natureza do real, plasmadas harmonicamente em formas neutras, cores puras (primárias em Mondrian) e linhas livres, puramente ortogonais.

Essa bem orientada e disciplinada ortogonalidade em Mondrian revela sua visão plástica de mundo, totalidade crivada pela perene dualidade tornada visível em seus quadros, retrato de sua época, que ainda é nossa modernidade, e que se apresenta sobre os extremos de figura/ não-figura, desenho/ cor, profundidade/ plano, motivo/ forma, concreto/ abstrato, objetivo/ subjetivo, realidade/ imaginação, razão/ sensibilidade, material/ espiritual, universal/ individual, massa/ elite, realismo/ idealismo.

Se “(…) as obras de arte são o que de mais enérgico, do ponto de vista plástico, uma época produz”[11] (Apollinaire apud CHIPP, 1999, p.227), os quadros de Mondrian encerram essa qualidade vibrante das formas que intuitivamente se prestou a condensar e integrar em suas composições onde há um equilíbrio que não é monoliticamente estático, rígido, mas dinâmico, lúdico como a vida, apesar de sua dimensão trágica de solidão e violência.

Nesse momento nos permitimos indagar se não terá sido esse imenso trabalho sistemático, ao longo dessa dupla extensão, do plano e do tempo, labor poderosamente sintético do pintor que fez com que suprimisse o círculo, imagem da eternidade por excelência, transmutando-o em existência, absoluta, ainda que concreta.[12]

Não há síntese mais poderosa da existência dual e contraditória da humanidade em sua busca espiritual pelo equilíbrio no turbilhão das muitas viscissitudes - biológicas, intelectuais, psicológicas, afetivas, sociais, políticas, espirituais – quebra-cabeças no qual nos constituímos. Mondrian visa a harmonia livre de todo conflito, das mesquinharias irrelevantes, superficiais e efêmeras da materialidade comparadas ao reino do espírito puro. Talvez nesse, e somente nesse sentido, possamos suspeitar que seus quadros realmente não exprimissem a existência, não por falta de visão ou qualquer outra qualidade que lhe faltasse como artista mas porque realmente o que almejava fosse a prefiguração desse ideal, de paz e harmonia numa época em que grassavam as atrocidades da guerra.

Produtos e reprodutores que somos de uma sociedade paranóica e esquizofrênica, radicalmente dualista, nos reconhecemos nas palavras de Fernand Léger (1924 apud CHIPP, 1999, p.281): “(…) vítimas de uma sociedade crítica, cética e inteligente, eles se empenham em compreender em vez de se deixar levar pela sensibilidade”.[13]

A despeito da razão exata e instrumental, pronta a demonstrar a verdade unívoca e irrecusável, quase sempre pela coerção institucional, pela privação econômica e cultural, quando não pela violência belicosa, a arte de Mondrian aspira universalidade, aproximação e consenso.

Ingênuo? Talvez o consideremos hoje. Mas há um só dia em que não ensaiemos um gesto ou ao menos pensemos em como fazer do mundo um lugar mais equilibrado, mais justo e melhor?





[1]GLEIZES, Albert e METZINGER, Jean. Cubismo, 1912. In:_ CHIPP, H. B. Teorias da Arte Moderna, 1999, p 215.



[2] CHIPP, H. B. op. cit., p. 195.

[3] ARGAN, Giulio C. Arte Moderna, 1992, passim.

[4] GRIS, Juan. Resposta a um questionário sobre o cubismo, 1925. In:_ Idem. p. 280.

[5] MONDRIAN, Piet. Arte Plástica e arte Plástica Pura (Arte Figurativa e Arte Não-Figurativa, 1937 In:_ Idem. p. 357.

[6] O termo ‘cubismo’ foi cunhado pelo crítico Louis Vauxcelles numa conversa com o pintor Henri Matisse durante a exposição do Salon d’Automne de 1908, a respeito das Paisagens de L’Estaque, de Georges Braque. Foi empregada num atigo por ocasião do Salon des iIndépendants no ano seguinte)

[7] METZINGER, J. Artigo para a rev. Pan (Paris), 1910. In:_ CHIPP, H. B. op. cit., p 198.

[8] APOLLINAIRE, G. Meditações Estéticas: Os Pintores Cubistas, 1913. In:_ Idem, p.224

[9] METZINGER, J. Artigo para a ver. Pan (Paris), 1910. In:_Idem, p.226.

[10] KAHNWEILER, D.-H. A Ascenção do Cubismo, 1915. In:_Idem, p. 251.

[11]APOLLINAIRE, G. op.cit. In: Idem, p.227.

[12] Mais tarde, Naum Gabo em sua obra Escultura: a Talha e a Construção do Espaço, 1937, vai afirmar que toda forma materilizada já é concreta e que o termo ‘forma abstrata’ não é passível de ser aplicado. A ele preferia o termo ‘forma asoluta’. In:_Idem, p.340.

[13] LÉGER, F. A Estética da Máquina, 1924. In:_Idem, p.281.

Referências


_ARGAN, Giulio C. Arte Moderna, Companhia das Letras, São Paulo, 1992.

_CHIPP, H. B. Teorias da Arte Moderna, Ed. Martins Fontes, São Paulo,1999.

_MERQUIOR, José G. Formalismo e Tradição Moderna: O Problema da Arte na crise da Cultura, Ed. Forense, Rio de Janeiro, 1974.

05 janeiro, 2011

Dada

Sei que vocês vieram aqui hoje para ouvir explicações. Bem, não esperem ouvir qualquer explicação sobre o Dada. Vocês podem explicar-me porque existem? Não têm a menor idéia. Dirão: existo para fazer felizes meus filhos. Mas em seus corações sabem que não é isso. Dirão: existo para proteger meu país contra a invasão dos bárbaros. É uma boa razão. Dirão: existo porque Deus quer. Isso é história da carochinha para crianças. Vocês nunca serão capazes de me dizer por que existem, mas sempre estarão prontos a manter uma atitude séria em relação à vida. Jamais compreenderão que a vida é uma pilhéria, pois jamais estarão suficientemente sós para rejeitar o ódio, as discussões, tudo o que exige um esforço, em favor de um estado de espírito sereno e constante que torne tudo igual e sem importância.

(...) Dizem-nos com frequência que somos incoerentes, mas nessa palavra as pessoas tentam colocar um insulto que me é difícil imaginar. Tudo é incoerente. O cavalheiro que resolve tomar um banho mas em vez disso vai ao cinema. O que quer ficar calado mas diz coisas que nem sequer lhe passaram pela cabeça. Outro que tem uma idéia precisa sobre um assunto mas só consegue expressar o contrário em palavras que para ele não passam de má tradução. Não existe lógica. Apenas necessidades relativas descobertas a posteriori, válidas não em algum sentido exato, mas somente como explicações.
Os atos da vida não têm começo nem fim. Tudo acontece de maneira idiota. Por isso tudo é igual. A simplicidade é chamada Dada.

(...) Como tudo na vida, o Dada é inútil. O Dada é sem pretensão, como a vida deve ser.


Excertos da "Conferência sobre o Dada" pelo poeta romeno Tristan Tzara, publicada originalmente em Merz (Hannover), II, n.7, 1924. A tradução brasileira foi feita a partir do inglês por Waltensir Dutra.
Extraído de: CHIPP, Herschell B. - Teorias da Arte moderna, Ed. martins Fontes, São Paulo, 1996.

02 janeiro, 2011

Pitoresco e sublime em Argan

"(...) A existência, que já não se justifica com uma finalidade no além, tem de encontrar seu significado no mundo: ou se vive da relação com os outros e o eu se dissolve numa relatividade sem fim, e é a vida, ou o eu se absolutiza e corta qualquer relação com o outro, e é a morte."

Mas isso é tão... eu. rs

(ARGAN, Giulio C. in Arte Moderna, p. 20)

com o retorno de saturno, decidi começar a viver... (Renato Russo)

É que a poesia é espanto, admiração, como de um ser tombado dos céus, a tomar plena consciência de sua queda, atônito diante das coisas.
(Fernando Pessoa in ´Emoção e Poesia´)

Deixe que o mundo seja o desorientação de um quarto emergente, no qual se acorda em sobressalto, entre a estranheza e a familiaridade;
deixe que ele seja o box, cubículo onde, momentaneamente cegado pelo xampu, desaparece o quadrado e o que se tem é um círculo de possibilidades, desnorteio, o planeta inteiro mudando de eixo;
que seja o primeiro dia de escola quando não se sabe ainda o que a escola é;
Procure esquecer.
Procure fazer com que seja a primeira vez,
o primeiro porre,
a primeira porrada, em qualquer dos sentidos,
o primeiro orgasmo,
o ejacular insuspeito e inaugural,
o primeiro fluxo,
a primeira ferida aberta, escarlate, provocante, viva,
o primeiro formigamento,
a primeira vista - de um horizonte ou de um cadáver.
O simples é difícil, o desconhecido, fascinante.