10 agosto, 2010

Pasmaceira

Gosto de olhar. Gosto dessa sua postura pra frente, interessada em algo, em alguém. Gosto quando não precisas esquecer de mim, para que então não precise cair na tentação de fingir nada do que não é. E eu nem sou importante. Pra todos os efeitos eu não existo.
Cigarro na mão impensada, inconsciente, flutuante. Mais um dos teus venenos.
Gosto do desalinho dos cabelos, ninho de alguma estranha criatura, noturna, prestidigitadora.
Da boca entreaberta, cheia de idéias. Caóticas em sua maioria, decomprometidas com minha ordem ou razão. Mas tão roucas e convincentes que chego a não prestar atenção pra ver o timbre onde vai. Gosto do teu teatro anárquico e suas possibilidades. Por isso procuro chegar cedo e sentar perto.
Gosto de ver o aspecto peculiar e particular do teu rosto, imagem pronunciada. E do teu corpo, que me faz pensar no peso e sua falta. Teu corpo não se leva a sério e eu acho graça nessa falta de graça, tão familiar em mim mesmo, mas que em ti não respeita ninguém. Acho que é o primeiro corpo sem hipocrisia que eu já vi. Bem, pra falar a verdade, a mim nunca tinha ocorrido a hipocrisia dos corpos até então... E não me refiro a Reich ou Foucault, corpi que amontoamos numa monumentalidade que só é menos babilônica que a própria confusão que tentamos arquitetar. Não cabem aqui essas pesadas reflexões. Não, definitivamente não aqui e agora. Deixem-me a sós.
Quero continuar olhando simplesmente. Desgovernados planam meus olhos pelas texturas, pêlos, sinais. Sabem das cores, dos desenhos, adivinham os volumes. Pensam na cama elástica dos músculos e na festa atordoante dos gestos. No campo minado da tua proximidade implacável.

No caos petrificado que se tornou minha vida, abandonei quase tudo. Durmo no chão frio, comendo frio e bebendo chuva, quando chove. Ensaquei a maioria dos pensamentos bons e sujos, amarrei e levei o lixo pra fora. E é isso que tenho feito por pelo menos dois anos. Não tenho grana pra comprar nenhum sentimento. Os que tenho brotam no jardim eletrificado dos fundos e, às crianças e a todos que me vêm pedir, um punhado que seja, digo que não amolem. Estão verdes!
Os papagaios coloridos, estes eu devolvo (embora às vezes quisesse preservar alguns dependurados nas paredes, como silêncios empalhados. More than ever, silence is golden).

Acontece que algo explodiu em algum lugar, em algum momento algo arrebatou o poder querendo baixar de vez a primavera! Talvez hormônios (eles não são mesmo sacanas?). Só pode! Quando eu estava bem...

Gosto, sinto falta...

Aqui, no escuro, ouvindo música em silêncio, escrevo. Escrevo.
E tremo. Além do frio o pavor!

Aprendi a amar quadros (ainda invisto um tempão nisso). Mas por onde que beleza você em mim? E quando?
Hoje me persegue sobretudo a eternidade despretensiosa de tua infância louca de se recusar aos números e aos ponteiros e, quase sempre, aos vestidos (que resultam não vestidos).
Me alegra que és, quando poderias nunca ter sido; e também o fato de que ainda que sois, poderias simplesmente não teres sido nunca para mim - ainda que propriamente não sejas. E ainda que não sejais nunca, nunca, nunca, nunca... Ei-la.
E só o que me entristece, além e apesar de todo o mundo, é o (des)serviço de ser Descartes - sim, senhores, em tempo integral - quando poderia ter sido você todo o tempo.
Mas que ninguém nos ouça: acho que estou alegre de verdade quando te vejo ou quando penso, longe, no que mais você pode ser (Que mais insuspeitadas cores?).
Se é que a hipocrisia está nos olhos de quem vê, porque não estaria a beleza?
Puta que me pariu, eu preciso mesmo passear nos teus feriados.