30 dezembro, 2011

Da Autoria e da Biografia em Michel Foucault e Pierre Bourdieu


Introdução


"Todo o fantasma, toda a criatura de arte, para existir, deve ter o seu drama, ou seja, um drama do qual seja personagem e pelo qual é personagem. O drama é a razão de ser do personagem; é a sua função vital: necessária para a sua existência."
(Luigi Pirandello)


              Fins da década de 60 e início dos anos 70. A personagem que assistimos desdobrar-se sob os holofotes de um amplo teatro cultural da memória, e as revoluções tortuosas que se desenrolam, como as de um corpo em agonia são, de fato, estertores de um corpus antigo, para os quais nunca mais se olharia da mesma forma. São os últimos suspiros do que seriam para nós, hoje, os fantasmas familiares do Autor como sujeito, da História como registro e da Realidade como fato.
              Através da investigação dos fundamentos e das interrelações inerentes à urdirura social e de aproximações com outras culturas, tomando como base o princípio de significação a partir das equivalências e oposições virtualmente situados numa estrutura, noções tomadas dos estudos da Linguística, o que o existencialismo, o estruturalismo e outras correntes de pensamento propunham à época era sobretudo o exercício radical da crítica implosiva - e perspectivas de reformulação - de todo um constructo conceitual moderno e ocidental.
              No campo específico da literatura um dos pensadores que se propôs um estudo amplo e aprofundado da matéria foi o pensador francês Jacques Derrida.
              Debruçando-se sobre o mesmo objeto de estudo, numa abordagem mais histórico-sociológica que propriamente literária, dois autores se pronunciaram a respeito das modalidades de produção, reprodução e recepção da escrita: Michel Foucault (em uma comunicação à Sociedade Francesa de Filosofia , O que é um autor?) e Pierre Bourdieu (no seu escrito, A Ilusão Biográfica). É sobretudo sobre eles que vamos nos deter, estabelecendo, aqui e ali, paralelos com outros autores, especificamente relacionados ao campo da produção visual, que achamos por bem comtemplar.

O Autor e o Nome do Autor
                      
              Na corrente da tradição existencialista fundada peo filósofo Jean-Paul Sartre, que atentava para a impossibilidade de uma liberdade radical e absoluta do sujeito, infensa à coerção das estruturas de caráter psicológico, histórico, social e cultural que em certa medida a determinam, Michel Foucault se ocupa da crítica desconstrutiva da “personagem do autor”, denunciando seu caráter historica e socialmente convencionado, não como sujeito concreto, mas como


“(...) uma projeção, em termos mais ou menos psicologizantes, do tratamento a que submetemos os textos, as aproximações que operamos, os traços que estabelecemos como pertinentes, as continuidades que admitimos ou as exclusões que efetuamos (FOUCAULT, 1968, p. 51).


            Nesse sentido o autor como personagem constituir-se-ia no modus operandi da crítica literária que, a partir de um conjunto de produções concretas de cada escritor, estabeleceria uma canônica que definiria assim, o espaço do autor e o estatuto da obra. Cincuscritos a um momento preciso, delimitado na história, todos e cada um dos escritos devem deixar transparecer o exercício de uma coerência conceitual, de uma unidade estilística e portar uma mesma qualidade formal de valor constante. Toda produção que fugir a essa regra, deve ser excluída. Assim  nascem o autor e sua obra. Simultaneamente instaurados, podem desse modo ser “descobertos” e “consagrados”[1] (FOUCAULT, 1968, passim, pp. 40 – 52).
            O autor como personagem articula-se como uma  constante e uma função, não simplesmente dada, mas construída a partir da manipulação de um aglomerado de corpi conceituais, de uma certa operação (em que medida funcional ou estética?) sobre esses corpos que, passando pelo leito de Procrusto da história, sofrem incisões, correções, enxertos e amputações, até adequar-se ao modelo ideal, arquétipo/ estereótipo do Autor.             E o índice que o designa assegurando sua permanência, constância e coerência, sua assinatura e emblema, é o seu nome próprio.
            Como observa Bourdieu ( 1986, pp. 185; 187):
             

 É o nome próprio (...) com a individualidade biológica da qual ele representa a forma socialmente instituída, que assegura a constância através do tempo e a unidade através dos espaços sociais dos diferentes agentes sociais que são a manifestação dessa individualidade nos diferentes campos. (...) ele só pode atestar a identidade da personalidade, como individualidade socialmente constituída, à custa de uma formidável abstração.”


            Assim, longe de ser apenas um nome como outro qualquer, o nome do autor integra um modo de ser de um discurso que, igualmente, não é uma fala comum, apenas mais uma  voz em meio ao coro cotidiano, mas carrega um estatuto diferenciado, situa-se acima da comunicação ordinária. É uma voz que sustenta/ ostenta uma certa autoridade.

Raízes Históricas


“Essa vida organizada como linha histórica transcorre, segundo uma ordem cronológica que também é uma ordem lógica, desde um começo, uma origem, no duplo sentido de ponto de partida, de inicio, mas também de princípio, de razão de ser, de causa primcira, até seu término, que também é um objetivo” (BOURDIEU, 1986, p. 185).

            Essa constância que assegura a individualidade da pessoa e a persona do autor está, em última instância, sedimentada numa tradição ocidental filosófica que remonta, pelo menos, ao dualismo platônico (ideia do ser eterno, uno, imutável, essencial, elevado, bom, belo e verdadeiro em oposição ao não-ser, efêmero, plural, em constante mudança, acidental, vulgar, aparente, superficial, enganoso) e aos postulados da lógica aristotélica (princípios de identidade, não contradição, terceiro excluído, as quatro causas, o par ato-potência). Séculos à frente, outras construções, herdeiras desse legado ontológico e epistemológico surgirão. Exemplo categórico é a elaboração cartesiana que reafirma o estatuto privilegiado de um eu pensante (ego cogitans), marco zero fundamental do espaço como extensão infinita, dotado de uma consciência clara e distinta de si e das coisas. Graças à sua natureza intelectiva, esse Eu autocentrado, percebe o real como um todo orgânico, homogêneo, indiviso, regular e ordenado, cujas transformações são mensuráveis e cujas causas são dedutíveis. Cujos fenômenos são comprováveis e previsíveis. Um mundo, portanto, controlável e útil.
            É também esse senso de coerência e propósito que encontramos presente, alguns séculos antes, na tratadística do Renascimento, especialmente em Vasari e Alberti, manifesto na ideia fundamental.do disegno.[2]
            Consonante a uma profusão de expressões culturais afins que se desenvolveram na época, como por exemplo, as crônicas, as “Vite” [3] e a retratística,  resulta para nós manifesta a confluência desses gêneros narrativos para a consolidação desse projeto, a instauração da  monumentalidade do sujeito como protagonista significativo da história. O caráter de  indivíduo tanto quanto aquele de continuidade linear da narrativa histórica atestam a concepção do tempo como um continuum coerente de acontecimentos sucessivos que está na base de um projeto de afirmação de uma identidade regional (toscana, florentina), nacional (italiana) e, em última instância,  ocidental e moderna.

Da Ilusão Biográfica

“Produzir uma história de vida, tratar a vida como uma história, isto é, como relato coerente de uma sequência de acontecimentos com significado e direção, talvez seja conformar-se com uma  ilusão retórica, uma representação comum da existência que toda uma tradição literária não deixou e não deixa de reforçar”  (BOURDIEU, 1986, p. 185).

            Essa descontrução e esse desvelamento dos código que operam na produção de crenças historica e socialmente fundadas encontram paralelo nas reflexões de outro estudioso francês, Roland  Barthes, que em seu escrito A Câmara Clara, afirma sobre a pose no retrato fotográfico:

         “Ora, a partir do momemto em que me sinto olhado pela objetiva, tudo muda: ponho-me a posar, fabrico-me instantaneamente um outro corpo, metamorfoseio-me antecipadamente em imagem. (...) Diante da objetiva, sou, ao mesmo tempo, aquele que eu me julgo, aquele que eu gostaria que me julgassem, aquele que o fotógrafo me julga e aquele de que ele se serve para exibir sua arte” (BARTHES, 1984, pp. 22; 27).

            Ao expor o aspecto de artifício e convencionalidade em jogo no regime do dispositivo fotográfico, registro que não é de modo algum puramente objetivo, tal abordagem vem ao encontro da perspectiva descontrutiva da biografia como ilusão,  tratada no texto de Bourdieu. Ele alude aos condicionantes que, de maneira consciente ou inconsciente, estabelecemuma cumplicidade entre o biógrafo e seu “cliente”, no registro biográfico, e contra os quais, no caso da autobiografia, toda prudência não é suficiente para evitar a contaminação das próprias memórias e juízos (mesmo que admitamos por hipótese um grau razoável de objetividade ou algo como uma reta intenção do escritor).  Diz ele:

“O sujeito e o objeto da biografia (o investigador e o investigado) têm de certa forma a mesmo interesse em aceitar o postulado do sentido da existência narrada (e, implicitamente, de qualquer existência)” (BOURDIEU, 1986, p. 184).

            Como podemos inferir, essa busca por uma conformação/ afirmação identitária subsiste hoje, assumindo expressões variadas, muitas vezes em choque umas com as outras, porque suscetíveis à redução estereotípica, redução simbólica, mas que se dá, em última instância como uma redução de poder e de direitos de uma grande parcela da sociedade civil e instaura uma verdadeita batalha, travada em diversos campos que vão da arena político-partidária, à esfera da comunicação social ou de massa e ao âmbito de discussão e produção acadêmica.

       “(…) os discursos “literários” já não podem ser recebidos se não forem dotados da função autor: perguntar-se-á a qualquer texto de poesia ou de ficção de onde é que veio, quem o escreveu, em que data, em que circunstância ou a partir de que projeto” (FOUCAULT, 1968, P.49).

            Constância, previsibilidade, inteligibilidade, autenticidade, ligadas como estão à noção de identidade imputam àquele que a enverga um caráter de solidez e confiabilidade e, no extremo, de normalidade, em contraposição à inconstância caleidoscópica do  “indivíduo” patológico[4]. Toda a terminologia do estatuto identitário revela-se então, devedora em algum grau, do léxico da norma e da institucionalização, do universo da segurança e da vigilância.[5]
Da Sociologia e da História da Arte

            Atentando para a crítica exemplar da biografia e do autor como lugares de discurso (tomando este em sua acepção mais abrangente), vemos assim como em sua análise a investigação sociológica estabelece pontos de contato com a história da arte.

“Talvez seja tempo de estudar os discursos não somente pelo seu valor expressivo ou pelas suas transformações formais, mas nas modalidades se sua existência: os modos de circulação,  de valorização, de atribuição,  de apropriação dos discursos variam com cada cultura e modificam-se no interior de cada uma; a maneira como se articulam sobre relações sociais decifra-se de forma mais directa, parece-me, no jogo da função autor e nas suas modificações do que nos temas ou nos conceitos que empregam.” (BOURDIEU, 1986, p.69)

            O discurso informa-se em diferentes modalidades. A arte não constitui exceção. À literatura e à fotografia, como foi aqui citado, mas também, a outras formas artísticas como a gravura, a pintura, a música, a escultura, a produção cinematográfica e a arquitetura são reinvindicados ou atribuídos graus de autoria e de discursividade, e não exclusivamente à produção textual. Todas elas encontram-se igualmente mergulhadas nas dimensões estética e política, inseridas no universo da produção material e social, carregam signos de comunicação e expressão. Guardadas as especificidades de cada disciplina, o que Foucault defende para o texto, deve servir também para nós como uma plataforma para um mergulho no vasto oceano (de águas turvas? cristalinas?) da produção visual.
              Nesse sentido gostaríamos de ressaltar a presença recorrente, na história da arte de toda uma tradição de teóricos que se utilizam do arcabouço crítico, que dialoga com a investigação sociológica à medida que abordam as obras também como produções concretas, materiais, que transitam num espaço socialmente codificado. Desde a análise iconográfica de Erwin Panofsky, a descrição de Arnold Hauser, o argumento de Walter  Benjamin em favor da reprodutibilidade técnica e a interpretação histórica de Michael Baxandall.     


(Provisoriamente) Concluindo

              Todo um instrumental compartilhado dessas duas disciplinas converge para uma avaliação crítica do mundo da arte, seu lugar e status na vida em sociedade.
              Cremos ser de suma importância olhar em retrospecto a crítica de Foucault e Bourdieu e atentar igualmente para as experiências históricas onde a expressão artística, literária, longe de uma pretensa neutualidade, serviu a um controle social, a um mapeamento taxiconômico e cartográfico dos cidadãos, procedimentos levados ao extremo nos sistemas totalitários e aos quais reagiram grupos intelectuais e artísticos como o dadaísmo berlinense, por exemplo.
            A crítica radical efetuada em particular pelos pensadores vinculados ao estruturalismo e ao construtivismo foi importante naquele momento do século XX e continua atual, colocando para nós muitas questões, dentre as quais o discussão  fundamental acerca da proposição positiva da História como verdade e da Ciência como salvação, como fim último (desígnio) do devir humano.

        
         “A teoria e, mais ainda, a prática da social-democracia foram determinadas por um  conceito dogmático de progresso sem qualquer vínculo com a realidade. Segundo os social-democratas, o progresso era, em primeiro lugar, um progresso da  humanidade em si, e não das suas capacidades e conhecimentos. Em segundo lugar, era um processo sem limites, idéia correspondente à da perfectibilidade infinita do
 gênero humano. Em terceiro lugar, era um processo essencialmente automático, percorrendo, irresistível uma trajetória em flecha ou em espiral. Cada um desses atributos é controvertido e poderia ser criticado. Mas, para ser rigorosa, a crítica precisa ir além deles e concentrar-se no que lhes é comum. A idéia de um progresso da humanidade na história é inseparável da idéia de sua marcha no interior de um tempo vazio e homogêneo. A crítica da idéia do progresso tem como pressuposto a crítica da idéia dessa marcha” (BENJAMIN, 1940, p. ).

            Acreditamos que a crítica de Benjamin, dialogando com o manifesto Dada proferido pelo poeta Tristan Tzara se preste a redimensionar o problema, reintroduzindo para nós a dimensão coletiva da História como uma ficção. Se o real assume hoje para nós uma certa qualidade de sonho, (e o que dela escapa na pós-utopia, na pós-modernidade?), que essa realidade seja, na medida do improvável, uma ficção autobiográfica., que seja um “sonho que se sonha junto”.
           
“(...) Dizem-nos com frequência que somos incoerentes, mas nessa palavra as pessoas tentam colocar um insulto que me é difícil imaginar. Tudo é incoerente. O cavalheiro que resolve tomar um banho mas em vez disso vai ao cinema. O que quer ficar calado mas diz coisas que nem sequer lhe passaram pela cabeça. Outro que tem uma ideia precisa sobre um assunto mas só consegue expressar o contrário em palavras que para ele não passam de má tradução. Não existe lógica. Apenas necessidades relativas descobertas a posteriori, válidas não em algum sentido exato, mas somente como explicações.
Os atos da vida não têm começo nem fim. Tudo acontece de maneira idiota. Por isso tudo é igual. A simplicidade é chamada Dada”
(TZARA, T. apud CHIPP, 1996, p. ).

            Se por um lado parece-nos compreensível o caráter de ambigüidade que assume o irracionalismo dadaísta em lugares como a Itália onde é identificado com o futurismo e pervertido no sentido de um elogio da potência, da força bruta, arbitrária, da estetização da máquina como aparato bélico, enfim, da vida como essencialmente violenta e da existência como estado de guerra natural, de todos contra todos, por outro, contudo, a expressão originária do Dada é sobretudo carregada de ironia, não de retorno ao sublime romântico, elogio do efêmero e do insignificante frente à Natureza e à tragédia. Como na elaboração de Benjamin, ele é, antes de tudo, uma crítica desconstrutiva ao estado não natural de privação da dignidade e dos direitos da pessoa.


         Referências bibliográficas

_ BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito de História, In. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura, Trad. Sérgio Paulo Rouanet, São Paulo, Brasiliense, 1994.

_ BARTHES, Roland. A Câmara Clara, Nota sobre a fotografia, Trad. Júlio Castañon Guimarães, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984.

_ BOURDIEU, Pierre. A Ilusão Biográfica, In. FERREIRA, M. M.; AMADO, J. (org.) Usos e Abusos da História Oral, Rio de Janeiro, FGV, 2006.

_ PIRANDELLO, Luigi. Seis Personagens à Procura de um Autor, Tradução Sérgio Flaksman, São Paulo, Peixoto, 2004.

_TZARA, Tristan. Excerto da Conferência sobre o Dada, publicada originalmente em Merz (Hannover), II, n.7, 1924. A tradução brasileira foi feita a partir do inglês por Waltensir Dutra. Extraído de: CHIPP, Herschell B. - Teorias da Arte moderna, São Paulo, Martins Fontes, 1996.  


[1]              Não é rara (e nem gratuita) no jargão da crítica - muito próxima da ortodoxia dos textos sagrados da exegese cristã –  o uso da terminologia religiosa,  relacionada ao caráter aurático e transcedental da obra, bem como a atributos ligados à ideia de “revelação” e “culto” ao gênio, divino criador.
[2]              O termo, que a princípio pode ser referir-se simplesmente ao desenho, pode também ser entendido sob uma gama plural de significações como desígnio, diretriz, antecipação intelectual do objeto e, nesse sentido, é comumente traduzido como projeto.

[3]              As crônicas via de regra constituíam-se de registros anuais de acontecimentos e feitos memoráveis de personalidades ilustres.  As “vite” (vidas) são um desenvolvimento imediatamente posterior e tratam da biografia ou autobiografia dessas personagens.
[4]              Interessante notar os curto-circuitos que se instauram na linguagem diante de uma análise mais crítica. É um sintoma, por exemplo que fiquemos impossibilitados para designar aquele que é  “desviante” (o portador de desvio, que foge à linearidade) de utilizar termos como “sujeito” ou  “indivíduo” (aquele que resulta não sujeito mas paciente, o que sofre a ação; nem tampouco indivíduo, posto que essencialmente cindido em sua psyché). Ele resulta pois inominável, desprovido portanto de qualquer “autoridade”.
[5]              A esse tema o filósofo dedica uma atenção privilegiada em seu livro História da Loucura.

Políticas de Financiamento e o Fenômeno dos Novos Museus


Algumas considerações concernentes às atividades de visitação de museus e análise curatorial para a Unidade Curricular Laboratório e Ensino em História da Arte III, sob a orientação dos Professores Doutores Letícia Squeff e Pedro Arantes.




         “A exposição é registrada, interpretada, memorizada a partir da experiência múltipla, a qual tem a sua sede no sujeito visitante. A verdade da exposição fica então no sujeito e não na materialidade exposta” (GONÇALVES, 2004, p. 58).

             
          A discussão em torno do estatuto da obra de arte implica uma longa sucessão de polêmicas que passam pelo questionamento de suas formas, suportes, de sua fatura, seus usos e fins.  
            Paradigma central, entre tantos, envolvidos nessa problemática, a materialidade dos suportes e seu caráter de monumento envolve um longo histórico de rupturas, continuidades, releituras e descontruções dos modos de percepção e sensibilidade ligadas à ideia do espírito de uma época, um estilo particular. Estes elementos encontram destaque nas reflexões de Walter Benjamin acerca da crise das artes  (a perda da aura) e o caráter reprodutível da obra.
            Um elemento sumamente importante acrescentado ao debate é a inclusão da questão do espaço em que a obra se encontra e que tem como marcos emblemáticos o gesto perpetrado por Marcel Duchamp de introduzir um urinol na galeria conferindo-lhe assim o estatuto privilegiado de obra de arte o projeto do museu imaginário de Malraux, um “museu sem paredes”. Ambos lidam com a ideia de que o objeto, caracterizado como obra de arte, é indissociável do lugar em que se insere e da forma como ela é exposta, sendo eles mesmos condicionantes dessa qualidade de obra.
            Conseqüentemente cada expografia deixa entrever uma noção particular de arte, concepção que nunca é gratuita pois pressupõe intencionalidade e critérios específicos na escolha de elementos e seus arranjos. Por meio desses dispositivos (composição das obras no espaço, uso da luz, emprego de cores) ela carrega uma qualidade semântica, enuncia um discurso que tem como lastros a história e a crítica de arte. É, a um só tempo uma mídia comunicadora de arte (de uma concepção particular de arte e de cultura), bem como um experimento artístico ela mesma, além de parte de uma política cultural e um produto de mercado. Além disso, ela pode constituir, coletiva ou individualmente, um ponto de partida para novas interpretações da arte (GONÇALVES, pp. 32-43, passim).
            Mais ainda, quando consegue extrapolar o contexto estritamente museológico, quando compreendida e assumida pelo sujeito como  não circunscrita às paredes do museu ou da galeria, mas enquanto “(...) capaz, ao articular opacidade e inteligibilidade discursiva, de desafiar modos já estabelecidos de entendimento do mundo”, ela é eminentemente política, sendo a curadoria  determinante para que isso ocorra. (FARIAS, Agnaldo; ANJOS Moacir dos, 2010, p. 21).
            Logicamente, sendo a arte prenhe de significações revolucionárias (latu sensu) e potencialmente liberadora de ideias e ações políticas, apela-se para uma concepção de história e crítica de arte conservadora e para estratégias expositivas conservadoras de um status monolítico, que se pretende eterno e universal.  Ressaltamos aqui duas delas: a formalista (entre as quais o mais emblemático é o modelo do 'cubo branco', devedor do métier alemão e posteriormente introduzido na apropriado pela lógica mercantil norte-americana via MoMA-NY) e o historicista (mais teatralizado, bastante utilizado na cenografia dos museus etnográficos e temáticos e característico também das mostras temporárias de muitas instituições). Ambos reivindicam para si um pretenso “grau zero” de intervenção, ao que objeta René Vinçon:

       (...) o primeiro modelo recalca na arte feita no presente articulações cruciais com a produção que a precede, o segundo apazigua as incertezas e os riscos que nutrem e que marcam a produção da vida contemporânea” (FARIAS, Agnaldo; ANJOS Moacir dos, 2010, p. 21).

            Ademais o modelo não só expográfico mas espetacular que vem buscando se impor, tanto na arquitetura, como na programação cultural, é aquele “organismo extraordinário” (Josep Maria Montaner apud MOTTA e urbano e , 2009, p. 33), que aterrisa como um alien no tecido da cidade e, sob pretexto de alavancar a economia local e reurbanizar o entorno, alimenta-se dos recursos públicos (que, no caso das transnacionais, vetorializa para seus próprios países de origem onde se situam suas sedes) em benefício de sua própria afirmação e replicação de sua marca.
            Essa situação deriva do abandono por parte do Estado, em crise, das instâncias públicas e das dificuldade de articulação de apoio privado envolvendo a ideia de gestão não-estatal, preponderantemente pelo modelo das OSs e a reforma do Estado.[1]
            Nesse sentido, instaura-se uma mudança radical no caráter dos equipamentos culturais como observara, já no fim dos anos 70, Otília Arantes:

“(...) antes domínio tradicionalmente austero e introvertido, atualmente, imagem prestigiosa e ponto de vista privilegiado sobre o mundo à volta, onde reina, diga-se de passagem, uma grande animação” (ARANTES apud MOTTA, 2009, p. 73).

            Essa realidade é atribuída em grande parte à Lei Rouanet[2], que atualmente regulamenta a gestão conjunta das instâncias culturais, sendo alvo de duras críticas: falta de transparência nos processos o que abre brechas para o  não atendimento da legislação, dificuldade de se fazer a fiscalização, concentração excessiva em determinadas corporações bastante visíveis que se utilizam do mecanismo para o marketing pesado de seus produtos, exclusão de grande parte do setor cultural  sejam investidores, regiões ou segmentos culturais. Mais uma vez, Motta:

“O processo extraordinário de criação de novos museus hoje atualiza esse vínculo entre um fundo de riquezas nacionais e o discurso político voltado aos cidadãos, de um patrimônio pretensamente enunciado como de todos.
Não se trata de contemplar um conjunto de bens reificados, mas uma visão política que amplie a noção de patrimônio, de uma significação estreita e precária, circunscrita a uma cultura oficial dirigida pelo Estado. Diferentemente seria pensar em uma efetiva devolução ao domínio público dos bens atraentes, reconhecidos, dignos de serem conservados e atualizados” (MOTTA, 2009, pp. 177-178).

            Esse modelo de museus espetaculares e ciclos de exposição no formato da indústria cultural “Blockbuster”, do não-lugar (Jean Marc Poinsot), que é o mesmo onde quer que se instale, descaracterizando e desterritorializando toda uma cultura e uma comunidade locais, impossibilita, o projeto idealizado pelas resoluções geradas na discussão recente da “nova museologia”:

“O plano de implantação urbana [do museu] necessita referenciar-se a um conjunto diversificado de elementos: fonte de financiamento, gestão administrativa, capacidade interna do museu para manter-se economicamente nas atividades planejadas, no conhecimento (quantitativo e qualitativo) do público, no perfil do acervo que acolhe, nas possibilidades socioculturais e nas educativas que possa desenvolver” (MOTTA, 2009, p. 105)

            A instituição precisa relacionar-se com o público heterogêneo que o cerca - especialmente nos centros urbanos - não só o público cativo mas o potencial, engendrando ações que levem em conta os tipos de uso, horários e fluxos da população. Atentando a essas particularidades vantajosas e buscando minimizar os reveses de localização e baixa visibilidade, por exemplo, o museu pode planejar estratégias para envolver de modo efetivo a comunidade que o cerca e circula em seu entorno.
            Nesse sentido, há um esforço institucional em todas as instâncias jurídicas para tentar organizar o panorama cultural. Exemplos são o Sistema Brasileiro de Museus (SBM) de 2004, ligado à implementação do Sistema Nacional de Cultura (SNC). Este tem por missão intermediar a gestão e promoção de políticas públicas entre os entes da federação e as organizações civis. Igualmente o Plano Nacional de Cultura (PNC), de 2005, mecanismo de planejamento a longo e médio prazo do SNC, e o Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), coordenando a Política Nacional de Museus (PNM).
            Dentre essas medidas devemos considerar o crescimento de instituições e cursos que têm por objetivo a formação de profissionais ligados ao museu e ao universo da arte: museólogos e historiadores da arte. Qual a nossa posição da Instituição de ensino ao contemplar essa área dos saberes e das práticas? Quais as implicações positivas desse processo? Quais os perigos coletivos e tentações pessoais? Qual o nosso papel nesse jogo político?
            Certamente ele passa pela crítica às exposições e práticas de equipamentos culturais e pela pesquisa, instância fundamental na criação de propostas de modelos institucionais públicos de museu e gestão cultural.
            Mesmo tendo em conta, no macro, a situação de desencantamento e ausência de perspectivas frente ao processo maciço de uma fagocitose do sistema capitalista auto replicante em alto grau, e no micro, as determinações sociais do acesso à prática cultural, nossa responsabilidade é guardar uma margem crítica de reflexão sobre o nosso próprio status e papel nessa busca política de “cidadania cultural” (Marilena Chauí), direito ao acesso, à produção e à participação do fazer cultural.
            Desse modo, finalizamos por onde começamos: a exposição.

“No processo de construção de seu sistema de correspondências, o sujeito cognitivo organiza, arruma a totalidade externa, o mundo, em relação a um projeto dele, à sua vontade, segundo o seu desejo de estar nesse mundo ou o transformar” (GONÇALVES, 2004, p. 58).




Referências bibliográficas


_  FARIAS, Agnaldo; ANJOS Moacir dos. Há sempre um copo de mar para um homem navegar, 2010.

_ GONÇALVES, Lisbeth R. A Exposição de Arte: conceituação e estratégias, In. Entre Cenografias: o museu e a exposição de arte no século XX, São Paulo, Edusp/ Fapesp, 2004.

_  MOTTA, Renata Vieira da. Museu e Cidade: o impasse dos MAC's, Tese de doutorado, FAUUSP,  São Paulo, 2009.



[1]Durante gestão Fernando Henrique coloca-se enfase no aspecto regulador e admitem-se organizações civis não-estatais e a iniciativa  privada no setor de bens e serviços. Data daí o surgimento das Organizações Sociais (OSs) mediante o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (1995), sob a direção de Luiz Carlos Bresser Pereira, Ministro da Administração Federal e da Reforma do Estado.
[2]Sérgio Paulo Rouanet, Secretário de Cultura, lança Lei Federal de Incentivo à Cultura (1991), garantindo isenções fiscais, seja nos âmbitos municipal (IPTU, ISS), estadual (ICMS) ou federal (IR) - Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac). A Lei é regulamentada em 1995. Concomitantemente, empréstimos junto ao Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), investindo na reurbanização de centros históricos como área de turismo cultural. Nos dizeres de Renata da Motta:“A partir dos anos de 1990 (…) [a] preservação do patrimônio histórico de centros urbanos torna-se prioridade nos discursos governamentais, com foco no potencial turístico e na construção de equipamentos culturais de grande porte. Esse discurso encontrava-se em consonância com a visão empresarial sobre gestão urbana proposta nos planos estratégicos das agências multilaterais como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento que, posteriormente pautariam o convênio do Programa Monumenta, voltado à recuperação do patrimônio histórico de diversas cidades brasileiras. (…) Com a implantação da Lei Federal de Incentivo à Cultura (Lei Rouanet), consolida-se o discurso de substituição de parte da ação do Estado pela dos empresários e a modernização da gestão pública. A cultura brasileira é elevada (sic) a instrumento de marketing nacional, reafirmando o país como um destino turístico privilegiado pela sua singularidade cultural. Nesse movimento criou-se um ambiente favorável ao fomento no Brasil de um nicho já desenvolvido nos países centrais: das intervenções urbanas que incluem equipamentos culturais, envolvendo artes e instituições financeiras” (MOTTA, 2009, p. 76-77).

Aspectos do Corpo e da Pessoa na Investigação Antropológica Ameríndia


       O ensaio em questão volta-se para a nova abordagem antropológica que vem tomando corpo há algumas décadas graças à iniciativa de alguns poucos pesquisadores e etnólogos comprometidos num trabalho de investigação e tradução das culturas dos grupos ameríndios. Movendo-nos num campo novo e sobremaneira complexo há forçosamente o risco de incorrermos em equívocos diversos; tentaremos evita-lo a todo custo, apoiando-nos no que, no alcande de nossa compreensão acreditamos ser essencial nos escritos desses autores sobre a matéria. Buscar-se-á aqui ressaltar a importância crucial das categorias visuais na apreensão e tradução de sua sociocosmologia num esforço de diálogo com as categorias tradicionais de imagem, história, arte, história da arte.


“A América não foi descoberta, foi invadida”[1]

A despeito de todas as comemorações que tem lugar quando da ocasião de datas ‘civis’ comemorativas, especialmente aquelas que pretendem dar cabo da mitologia das origens - sejam epopéias, como aquela do descobrimento de nossa Pátria, da nossa brasilidade, sejam mitos mais localizados, como a fundação de cada uma das nossas cidades natais, fica sempre aberta a questão do índio, de quem seja essa figura e de qual a nossa relação com ela.
Eu, por exemplo, natural do município de São Vicente, tenho a oportunidade de ‘reviver’, de uma só vez, a descoberta do Brasil e a fundação da minha cidade. Digo ‘reviver’ porque esse teatro da memória não é senão a tentativa de uma atualização nos modos de um tempo mítico, sacramentado; o coloco entre aspas porque, longe de provocar uma autêntica ressonância patriótica e cívica, tal encenação anual – crônica - me faz pensar na pluralidade de determinações políticas que a informam: aquelas da colonização, de há 1500 anos, primeiras no tempo, extrativistas e expropriativas, “selvagens” no vocabulário ibérico; sua posterior revalorização, pautada pelo projeto de uma moderna hegemonia político-econômica paulista que afirma as bandeiras como fundamento último da conquista de uma integração nacional - territorial e espiritualmente - e que institui outra(s) célula(s) mater no Estado em oposição às sedes fundantes defendidas por outras regiões brasileiras; e ainda aquelas contemporâneas, pedagogicamente orientadas para a naturalização de uma dependência econômica externa tanto por parte dos munícipes (das elites locais, de um turismo das elites) quanto por parte dos brasileiros em geral (das elites nacionais e estrangeiras, dos Bancos e empresas transnacionais, das flutuações do mercado global).
Em última instância, tal ‘descobrimento’ teatral é também o encobrimento real da percepção sobre a principal fonte de recursos da cidade, não externa mas local, que constituem os impostos arrecadados durante o exercício (termo tão marcial) anual. Parte dela convenientemente volta sob a forma de espetáculo cultural, cujo encantamento contribui para que se esqueça que a maior parte dessa riqueza deveria reverter para os contribuintes - em melhorias nas condições físicas dos bairros (não só os da orla da praia), em escolas,  em postos de saúde, áreas de lazer, em transporte, em geração consistente de renda, etc. E embora esse encantamento tenha o mérito de mobilizar criativamente um contingente considerável de pessoas e ‘esquentar’ o comércio local, endossa, contudo, o pensamento de que é natural um certo subdesenvolvimento e atraso (embutida aí a ideia de progresso), reforça a percepção de uma história que se repete e perpetua um modo de sensibilidade no qual a política pública (sic) revela-se na verdade, privada. ‘Aqueles que são brancos (ou  “aqueles que têm o colarinho branco” [2]) que se entendam’
Todas essas considerações de caráter atual e eminentemente urbano, que há primeira vista nada tem que ver com as questões do estudo dos povos ameríndios, do contato e do diálogo com esses grupos, estão, entretanto, implicadas na imagem que constituiu-se sociohistoricamente: a de povos iletrados, que vivem na natureza num estado próximo ao de 'bichos', isolados da civilização, sem instiuições ou elaboraçóes, à margem do conforto e do saber proporcionados pela moderna técnica. Torna-se assim urgente alcança-los para que possam finalmente sair de sua condição pré-histórica, de indigência, acompanhar o progresso, num movimento que é ao mesmo tempo de encontro e resgate. Salvação romântica que mascara a continuidade de uma realidade de expropriação e extermínio.
A despeito dessa noção homogeneizante e diluidora veiculada na forma de estereóripo pelos mais diversos meios de comunicação e práticas institucionais, reproduzida no senso comum e na linguagem ordinária, tais sociedades guardam uma complexidade e uma dinâmica próprias, ignorada pela maioria das pessoas.
Essa atitude prejudicial reflete-se também no âmbito da produção científica e acadêmica, não só nas ditas disciplinas exatas' (nominação bastante controversa se tomada de forma suficientemente abrangente), mas também no estudo das humanidades,  inclusive as pesquisas etnológicas e antropológicas.
Recentemente, no entanto, consolida-se um movimento de aproximação que opera um verdadeito giro conceitual, disposto a abordá-la a partir de suas particularidades e positividades, não da ausência do que em nossa sociedade se faz presente.
No caso do Brasil, ele tem início, com as pesquisas estruturais de Claude Levi-Strauss e toma corpo nas últimas três décadas, com o surgimento de  trabalhos de pesquisadores dispostos a um efetivo diálogo com cada um desses grupos e preocupados com uma tradução cuidadosa das culturas ameríndias, na medida do possível em seus próprios termos.
“Linguagem do corpo que se desdobra numa linguagem do espaço”[3]


Tal abordagem privilegia a corporalidade, noção cara a essa abordagem, e elemento reconhecidamente central na organização sociocosmológica ameríndia:

“(...) o corpo, afirmado ou negado, pintado ou perfurado, resguardado ou devorado, tende sempre a ocupar uma posição central na visão que as sociedades indígenas têm da natureza do ser humano” (SEEGER, A.; DA MATTA, R.; VIVEIROS DE CASTRO, E., 1979, p. 13)

Embora ainda possa se vislumbrar resquícios de um etnocentrismo ontológico (uso de um léxico que denota a noção imanente de uma natureza humana dada, homogênea e uniforme, presente em todo e qualquer sociedade enquanto agrupamento de indivíduos e a eles subjascente) essa inflexão conceitual representa um diferencial em relação às correntes antropológicas anteriores.
Mais que isso, a noção de corporalidade está inextricavelmente ligada às categorias de nominação e de pessoa. Os nomes referem-se a um repertório relativamente fixo de categorias conceituais que guardam uma margem de interpretação ao ser aplicado a cada ser em particular, constituindo modificadores semânticos.[4] Os nomes referem-se também a um estoque limitado e fixo (mas não esgotável porque virtualmente infinito e atualizável sob determinadas circunstâncias) de nomes próprios que é transmitido e fica circunscrito a um intervalo curto de gerações sucessivas, evanescendo a memória particular do que seria o indivíduo mediante a supressão de todo e qualquer indício material de sua presença física visível (mas não sua existência no mundo, como veremos à frente). Consequência disto é que as genealogias perdem prevalência, assumindo outras posições e funções nessa nova configuração que substitui os modelos alienígenas habitualmente transpostos de um lugar para outro, que trazem no bojo ideias como linhagem, descendência, patrimônio, etc. A importação mecânica desses modelos consolidades tendem a engessar e perverter fenômenos dinâmicos, na tentativa de exaurí-los pela análise. O tempo ameríndio não é o genealógico mas organiza-se como atualização mítica, indissociável da concepção essencial de pessoa.

“Como local da consciência individual, sensações e desejos, e de alguns (embora não todos) controles sociais, bem como foco de alguns (embora não todas) as representações culturais do mundo material e social, e tanto como objeto material como categoria de discurso, o corpo parece oferecer-se como uma base para uma nova e diferente teorização das dimensões sócio-culturais da existência individual (...) A corporeidade é justamente reconhecida como uma categoria fundamental unificadora da existência humana em todos os sentidos e níveis: cultural, social, psicológico e biológico. O corpo é a um só tempo objeto material e organismo vivo e agente, detentor de formas rudimentares de subjetividade que se tornam, através de um processo de apropriação social, tanto uma identidade social quanto um objeto cultural.” (TURNER, T. 1995, pp.144-145, Livre tradução)


A reflexão que toma a pessoa como categoria organizadora das práticas coletivas, converte-a num instrumento privilegiado de compreensão das sociedades ameríndias na medida em que evita os embaraços causados por uma dicotomia Indivíduo/ organização social. Agindo nos campos da investigação antropológica e da experiência etnográfica (e suas relações dinâmicas que não excluem a arqueologia, a psicologia, a história da arte, entre outras disciplinas) esse novo modelo analítico busca ajustar o foco ‘parentesco – linhagem – filiação’ para uma tentar de acomodar-se ao que parece ser um regime simbólico mais afeito a categorias que se relacionam a noções como corpo e pessoa constituídas como virtualmente inseparáveis da dimensão social.
Como é possível inferir, pessoa aqui deve ser entendida não como na tradição de uma antropologia social como feixe de papéis variáveis a ser desempenhados, mas como gravitação de categorias nativas que tem como ponto de ancoragem o corpo e, como decorrente epistemológico, a imagem.

“(...) a corporalidade não é vista como experiência infra-sociológica, o corpo não é tido por simples suporte de identidades e papéis sociais, mas sim como instrumento, atividade, que articula significações sociais e cosmológicas; o corpo é uma matriz de símbolos e um objeto de pensamento (...) a fabricação, decoração, transformação e destruição dos corpos são temas em torno dos quais giram as mitologias, a vida cerimonial e a organização social” (SEEGER, A.; DA MATTA, R.; VIVEIROS DE CASTRO, E., 1979, p. 20).

Na organização das sociedades ameríndias o sujeito não existe como gente  sem a  ornamentação, idioma fundamental, código social expresso graficamente e que constitui a pele da pessoa enquanto ser social.
Aqui corpo biológico não esgota a noção de corpo, assim como corpo é incapaz de exprimir por si só a totalidade do conceito operacional de pessoa, definida em níveis internamente estruturados e extensíveis assim como o cosmo.
Assim, ao se olhar para uma pessoa, para suas pinturas e adereços, automaticamente pode-se identificar seu pertencimento não só a um segmento social, mas a uma fatia específica do cosmos e seu respectivo “dono”, e, enquanto prerrogativa ritual, a um locus específico do estatuto espacio-temporal do sociocosmo (limiares de passagem, recolhimento, periferia, reincorporação no corpo da tribo, movimento para o centro).
Como observam os autores (SEEGER, A.; DA MATTA, R.; VIVEIROS DE CASTRO, E., 1979, p. 11) tomando como caso particular a organização estrutural Jê do Brasil Central, afim de tentar estabelecer um paralelo com outros grupos do continente, atentam para uma série de polaridades que encontram no espaço da corporalidade e no corpo do espaço (de um lado, periferia da aldeia - centro do corpo,  mulheres, crianças, esfera doméstica, produção do indivíduo, alimentos, associações por laço de substâncias físicas, fluidos, sangue, sêmen, sexualidade, cotidiano; de outro, centro da aldeia - periferia do corpo, homens, adultos, esfera público cerimonial, fala, nominação, classe, papéis públicos, idade,  negam laços de substâncias, extraordinário, atualização do mitológico).[5]
Isso é particularmente emblemático na definição do duplo/ princípio vital/ imagem (irredutível, no entanto, à nossa ideia de alma) que, embora enunciada de maneiras diversas, materializa, corporifica na imagem todas essas concepções.
Esse ponto é sobremaneita interessante para nós visto que afeta não somente as noções relacionadas ao estatuto antropológico mas igualmente o já controverso olhar  a partir da/ em diração à arte.
Essa fabricação ordenadora e fundante do corpo dos grupos do tronco Jê, que encontra paralelo em muitos outros grupos nunca é pois, de forma exclusiva, uma estética. Ela é também, simultaneamente, uma fisiológica, e uma ética.
Admitimos desse modo que a maior dificuldade de traduzir uma história dos índios, ouvida/ vista por nós, seja, não a falta de artefatos e artigos 'históricos'. Nós contamos com um imaginário sobre os índios, mas que de tão assimétrico, engloba-os todos numa categoria informe à margem dos nossos mitos aos quais postamos o rótulo de História. Mas os índios constituíram e continuam a constituir suas histórias e reservam para nós um lugar que não é central, de protagonismo ou de heroísmo. A maior dificuldade de conhecê-los é a inabilidade e resistência em vê-la, ouvi-la, mostrada/ contada por eles mesmos, sem cair na tentação suprema de se projetar nela. Um exercício difícil que supõe uma perspectiva flexível, cambiável e vontade política.
            Nas palavras de Manuela Carneiro da Cunha:

       As sociedades contemporâneas da Amazônia são igualitárias e em escala diminuta não por algum antídoto contra a emergência de um Estado institucional, nem por qualquer  determinação de caráter estritamente psico-bio-fisiológico, étnico, ecológico, econômico, etc., mas por razões estritamente históricas: o morticínio pela doença e pela guerra devidas à expansão territorial do capitalismo mercantil.
(...)   A recuperação dessa história (indígena que não se resume àquela indigenista) é o fundamento dos direitos territoriais indígenas: memória das expressões de uma tradição, não meros documento de posse. (CARNEIRO DA CUNHA, 1998, pp. 12 e 22, passim)





Referências Bibliográficas

_ CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Introdução à História Indígena, In História do Índios no Brasil, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pp. 9-24.

_ CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Imagens de índios do Brasil no século XVI, In. Cultura com Aspas, São Paulo, Cosac & Naify, 2011, pp. 179-201.

_ GELL, Alfred, A Tecnologia do Encanto e o Encanto da Tecnologia, Concinnitas, ano 6, volume 1, número 8, julho 2005, pp.

_ SEEGER, Anthony; DA MATTA, Roberto; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A Construção da Pessoa nas Sociedades Indígens Brasileiras”, Boletim do Museu Nacional (Antropologia) 32, 1979, pp. 1-37.

_TURNER, Terence. Social Body and Embodied Subject: Bodiliness, Subjectivity, and Sociality among the Kayapo,  Cultural Anthropology, Vol. 10, No. 2, Anthropologies of the Body (May, 1995), pp. 143-170.

_ VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A Inconstância da Alma Selvagem, São Paulo, Cosac & Naify, 2002.

Sites

_ MÜLLER, Regina Pollo, Corpo e imagem em movimento: há uma alma neste corpo, Rev. Antropol., Vol. 43, n. 2, São Paulo, 2000.

_ VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Os Pronomes Cosmológicos e o Perspectivismo Ameríndio, Mana 2 (2):115-144, 1996.


[1]              (Jennings, 1975 apud Carneiro da Cunha, 1998).
[2]              A imagem do colarinho é rica pois conversa com o imaginário de figuras zoomórficas de nosso ‘idílio tropical’. É possível que esteja assentada num repertório derivado de tradições folclóricas – e quiçá originária também de correntes narrativas orais de mitolgias autóctones - de uma hierarquia de pássaros. Mas essas já são intuições que necessitariam de depuração mediante uma pesquisa ampla e rigorosa.
[3]             (SEEGER, A.; DA MATTA, R.; VIVEIROS DE CASTRO, E., 1979, p. 22).
[4]              Exemplos são os modificadores dos Yawalapíti do Alto Xingu: -kumã, -rutú, -mína e -malú (
o 'excessivo', o 'autêntico', o 'inferior' e o 'seme1hante', que marcam os graus de distâncias entre os arquétipos e as atualizações
 (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p.29).
[5]              Há uma derivação em Turner e Lux Vidal quando descrevem a localização dos pigmentos na ornamentação Kayapó: o primeiro reserva o genipapo (negro) para as extremidades como indicativo de liminaridade, morte e recolhimento na periferia e o urucum (vermelho) como vitalidade, comunidade, centro, sangue. A segunda os situa opostamente. Nosso primeito palpite seria de que a acepção de sangue enquanto fluido vital interior e suas prescrições rituais (sangue menstrual, derramar sangue inimigo) possam dar margens a ambiguidades na transposição tradutiva. Não sabemos ao certo.