28 junho, 2009

Trama (Diálogo entre a Cabeça de Jeremy Bentham e A Voz na armadura).

"Todo o fantasma, toda a criatura de arte, para existir, deve ter o seu drama, ou seja, um drama do qual seja personagem e pelo qual é personagem. O drama é a razão de ser do personagem; é a sua função vital: necessária para a sua existência."
(Luigi Pirandello)

Cabeça _Me sinto num jogo do qual eu já deveria saber as regras há muito tempo mas, por alguma razão que igualmente desconheço, faz com que eu perca exatamente aquilo que penso ser o mais valioso. Embora eu também não tenha absoluta certeza desse valor. Não o sinta...
A Voz _E se a vida for uma série de operações matemáticas, cheia de fórmulas, regras e valores? Terás tempo suficiente pra recapitular tanto conteúdo? E se houver uma avaliação, quem é que avalia, e com base em que critérios?
Qual é o termômetro da vida? Felicidade? Prazer? Dor? Sentido? Beleza?
Nesse sentido, isso te confere maior ou menor valor como pessoa?
Cabeça _E o que é uma pessoa? Não é um ser racional por excelência?
Não adoramos todos, aquela fagulha de inteligência que partilhamos com uma pessoa ao perceber, num olhar simultâneo, o que escapa a todos os outros presentes. E não atribuímos a essa pessoa um valor maior do que às outras, que seguem obtusas, sem nada distinguir do ocorrido?
A Voz _Nesse sentido o que amas no outro é tu mesmo, ou a imagem daquilo que acredita seres e não a outra pessoa. Amas acreditar que és especial e amado. Isso, e só isso basta.
Cabeça _Dessa mórbida constatação deriva que não me é permitido sentir o valor de outrem a não ser como reflexo da libido que investi e que já esperava de volta. Quando essa resposta cessa, sinto que o outro, parâmetro de meu valor, perde valor e encanto, o que numa dialética doentia mina também meu valor numa crescente, fria e devastadora bola de neve. Abominável Sísifo de gelo. Narciso prateado.
A Voz _Sim. Mesmo agora enquanto te masturbas com essa névoa de raciocínios tolos não sentes sinceramente que algo te foge de essencial, algo que tu, um ser racional, em já tantos anos percorridos, deveria saber, poder fazer, querê-lo?
Cabeça _Uma coisa é certa: não sinto meu próprio valor como pessoa, a não ser em determinados momentos e em relação a determinados aspectos; acredito saber agora, por exemplo, reproduzir a realidade através do desenho melhor do que um grande número de pessoas o que, teoricamente me confere um status de artista (embora pessoalmente não tenha do que seja arte idéia mais clara e definida e desconfio que ninguém saiba ao certo o que seja isto, desde as pinturas nas cavernas).
A Voz _Agora Lascaux!
Cabeça _Acredito ser isso, não uma dádiva, mas algo que desenvolvi ao longo do tempo através de esforço, repetição e exercício. Não sei por que exatamente o desenho ao invés da escrita, ou da música, por exemplo.
A Voz _Talvez porque, dentre as atividades ligadas aos sentidos seja a mais mensurável e impessoal. A arte visual proporciona, mesmo exige, do artista, um distanciamento necessário, mesmo físico, instrumental, bem como um maior controle; e do fruidor, que se conserve à parte, a contemplar respeitosamente, a julgar.
A mão, motor que guia o desenho, é menos suscetível ao contágio, a despeito do que acontece com o ouvido - e por fim todo o corpo – através da música. Isso sem falar do olfato e paladar relegados ao esquecimento.
Cabeça _O fato é que o desenho funcionou por muito tempo como um álamo, uma válvula de escape, uma sublimação da realidade, uma idealização do mundo hostil e solitário de minha infância, à mercê de uma mãe católica, asséptica, superprotetora e manipuladora , pra quem tudo é pecado, de um pai nulo, alcoólatra, batendo cartão em casa, como fez no seu trabalho durante trinta e cinco anos, além de três irmãs mais velhas, num ambiente predominantemente feminino, cheio de tabus, enigmas e segredos.
A Voz _Pensas que és tu a vingança silenciosa e mal sucedida de teu pai em querer perpetuar-se como macho, realizar o que ele não se sentia ser capaz de fazer, ser Homem? Acaso és um homem?
Cabeça _Talvez menos, uma tranqüilizadora e por isso última tentativa de meu pai de provar que não havia nada de errado consigo mesmo após gerar, uma após outra, três mulheres.
A Voz _Percebes que isso é sobremaneira eloqüente a respeito de tua avaliação em relação ao sexo feminino, não?
Cabeça _Deveras frustrante e embaraçoso... Uma cabeça, é o que sou. Tenho órbitas.
A Voz _No mais...
Cabeça _Fui castrado, é verdade. Nisso minha mãe foi eficiente, podando desde cedo todo e qualquer instinto potencialmente agressivo que pudesse vir a manifestar, torcendo uma possível repetição de meu pai, até ser menos que um homem impotente, uma moça desprotegida. E agora não sei como recuperar minhas bolas. Acaso passeiam convulsas no terço pelos dedos de minha mãe? E onde estarão as bolas de meu pai? Quiçá atrofiadas, curtindo numa garrafa de pinga, à qual recorre religiosamente, sem sucesso.
A Voz _Digo que tens prazer e vergonha imediatas, sei que te deleitas e nutres pavor extremos de assim expor, aberta e prontamente, tuas podridões e vergonhas, à espera de pena e aprovação.
Cabeça _E sinto culpa.
A Voz _E tens culpa.
Cabeça _E, contudo, num átimo de lucidez, a certeza racional de serem coisas tão pequenas, previsíveis, óbvias e mesquinhas, tão sem importância quanto possível perante os olhos matemáticos das pessoas.
A Voz _Como um menino displicente e preguiçoso, relutante em decorar sua tabuada, que afinal é a mesma pra todos. Estás ouvindo? A Voz amável de tua mãe dizendo o quão feio e sem jeito é isso, que não deve ser assim? A suportas? A odeias?
Cabeça _A mim e À Voz. Sem esperanças. Cansa mais ser que interpretar. Prefiro os jogos de azar ao blefe cúmplice e laborioso do si consigo mesmo.
Não entendo e odeio não entender.
A Voz _E porque teu maior medo é ser inadequado e tolo, sofres por não saber...
Cabeça _E minto.
A Voz _E odeias mentir.
Cabeça _E odeio.
A Voz _E odeias odiar.
Cabeça _E vivo embora às vezes odeie viver...
A Voz _Como alguém que não sabe perder. Morres de pena de si e te odeias.
Cabeça _E amo e odeio as pessoas que concordam que é preciso ter pena de sujeito tão pobre, sofrido e impotente a começar por meus pais que me trouxeram a essa farsa degradante de amor, do qual são, somos todos ignorantes. Que, sem dizer, por trás de suas máscaras sorridentes de óleo quente, me fizeram acreditar a vida toda que sou feio, inepto e inadequado, fadado ao mal-sucesso, torpe, indigno de respeito, como eles mesmos, de onde nada de bom poderia sair.
A Voz _Mas não os odeias sobretudo. Odeias bela e indiscriminadamente, como uma chama em presença do oxigênio. És uma bela e funcional máquina dentada, embora algo melancólica, funcionando sempre a meia potência.
Cabeça _Mas, o pior e mais trágico, mais do que acreditar que fui feliz, é que sei que fui feliz, senti que fui feliz e talvez isso seja o mais horrível de tudo, pior que a insípida inconsciência de ser. Afirmo que fui feliz como dois e dois são quatro e já essa verdade matemática, e tudo o que quer que seja verdade, é menor e menos óbvio e menos palpável do que eu dizer que fui feliz. Porque posso demonstrar com quaisquer objetos à mão o que seja quatro.
A Voz _Mais que isso, é imprescindível que tu o faças toda vez.
Cabeça _Ninguém pode me dizer que não fui feliz, nem eu mesmo posso querer negar a mim mesmo. Talvez mais tarde, o faça, negue, me convença, ou simplesmente me aperceba do real (mas e o que é o real? coágulo inexorável, derrame latente, impugnativo, palpitando na cabeça).
A Voz _(irônica) Onde mais?
Cabeça _Cala-te. Sequer isso possuis. Que conheces tu além do peso e do frio?
A Voz _Racionalizar é defender-se.
Cabeça _Mas, se é o caso, não me é possível fazê-lo agora. A ferida ainda está aberta.
A Voz _Deixa-me então subtrair-te a melhor das dores. Não és homem. És formigueiro de uma formiga só. Formiga preguiçosa e covarde, inócua, que não pica por medo do dedo esmagador, embora o saiba sobre si o tempo inteiro e há de vir, mais cedo ou mais tarde - provavelmente mais cedo - teu próprio dedo de Deus, fulminante e corrosivo raio da lente magnífica de um Deus míope, Polifemo que tudo alcança. És uma formiga inútil em seu trajeto aleatório, escritório, cega da significação de seu próprio desenho sobre a terra.
Inseto antimatemático, irrazoável em si, ignorante de seu próprio código, das relações, surdo da poesia, cego da arte, que nada sabe do sentimento, nem do ser.
Inútil que sou - de que vale uma armadura dentro da cabeça? - és sempre menos, absolutamente menos, infinitamente menos que eu.
(Silêncio.)
Súbito A.V.E.

House

("House", 70 x 50 cm, óleo sobre tela)

Wilson "_I don't blame you. I wanted to. I tried to. I must have reviewed Amber's case file a hundred times to find a way — but it wasn't your fault."
House "_Then we're okay? I mean I know you aren't but — Maybe I can help."
Wilson "_We're not okay. Amber was never the reason I was leaving. I didn't want to tell you because — because I was trying like I always do to protect you, which is the problem. You spread misery because you can't feel anything else. You manipulate people because you can't handle any kind of real relationship. And I've enabled it. For years. (...) If I've learned anything from Amber it's that I have to take care of myself. We're not friends any more, House. I'm not sure we ever were."