10 agosto, 2011

Sobre os Museus de Arte II

"Intervir é musealizar"

Dependendo da época e do contexto que temos em mente ao ler essa máxima, ela pode adquirir significados positivos ou não. Isso vai depender igualmente da concepção que tivermos em conta do que é o museu.
Colocada no contexto europeu do século XIX, ela remeterá forçosamente à disputa acerca da intervenção ou não sobre os monumentos históricos.
De fato, antes de se restringir à problemática do restauro, a intervenção já estava presente, de modo radical, naquilo que convencionamos chamar revolução industrial: uma crescente disposição prático-ideológica, munida de todo um novo corpo de saberes e técnicas que por sua vez desencadearam um ritmo acelerado de degradação desses monumentos, de todo o substrato arquitetônico e a transformação dinâmica da paisagem rural como dos centros urbanos.
Foi esse tipo de intervenção marcadamente profunda que despertou em determinados grupos um olhar mais cuidadoso para com o antigo e uma sensibilidade mais atenta para aquilo que se revelava efêmero. Essa sensibilidade romântica via nos estigmas dos edifícios em ruínas, na sua qualidade pitoresca, a beleza do esforço humano, tão grande - e no entanto tão pequeno se comparado à natureza -, o sentido moral neles embutido e a beleza angustiante dessas construções magníficas e efêmeras, espelhos do destino dos homens.
Da oposição entre o culto do novo e do antigo, das discussões entre os intervencionistas - representados sobretudo por Viollet-le-Duc - e os anti-intervencionistas - dos quais destacamos John Ruskin - é que se darão as políticas de preservação do patrimônio. Também se fazem sentir fortemente as conclusões da síntese realizada por Camilo Boito e Gustavo Giovannoni, que entram na discussão, ampliada por Ruskin e William Morris ao afirmarem o estatuto de memória, afetivo e que não faz distinção entre o monumento histórico tradicional e a arquitetura doméstica. Ampliados os horizontes do debate em escala internacional e afirmando o monumento universal esses pensadores sobrevivem na polêmica por uma nova intervenção não menos veloz nem opressora, a realidade das duas Grandes Guerras.
As Cartas de Atenas e Veneza condensaram essa crítica do vandalismo institucional massivo que em Carlyle contrapõe o mecânico, técnico, exato, inexorável ao orgânico, poético, espiritual, compassivo. A arquitetura em função do homem e não o homem em função desta. De certa forma o que esse conjunto de resoluções expressos nas Cartas propõe é o resgate do espaço como sagrado reduto da humanidade e em cada monumento em particular, a preservação da identidade cultural de um povo, ou grupo de pessoas que têm um passado, uma memória.
Insiste na preservação coletiva, na cooperação mútua, na importância da passagem do tempo e suas marcas, rejeitando um restauro ideal, histórico-estilístico. É preciso que as intervenções sucessivas sejam patentes. Exige manutenção permanente. As intervenções, se necessárias, devem harmonizar-se respeitando-se a composição preexistente e o meio.
Todas essas disposições estão ancoradas na idéia ruskiniana de que o monumento "fala", dialoga conosco.
Mas é preciso ter cuidado. Num contexto de preservação e musealização, os artefatos não são neutros, nem o são sua conformação. Por trás de toda composição de objetos, estejam dentro ou fora das paredes do museu, há discursos e interesses. Exemplo disso é o próprio colecionismo, presente no projeto histórico, ideológico do século XIX, apropriação taxiconômica de peças de arte, que em Hegel decretava a morte da arte.
Assim como as discussões a respeito da objetividade da representação fotográfica - outro polêmico debate que perdura ao longo do tempo - têm afirmado a fotografia como realidade (enquanto índice) mas também como representação, a ontologia do patrimônio revela-se plena de crivos de discursos sobre o que deve ou não ser preservado, repleta de práticas que se pretendem naturais mas que mascaram a arbitrariedade e uma série de preconceitos (facilitar a leitura do público, estabelecer ambientes e itinerários diferenciados a públicos economicamente distintos). Além de todas as deturpações do museu e do patrimônio tendo em vista o apelo publicitário como promessa de lucro.
Frente às discussões do que deve ou não ser tombado, preservado, restaurado ou musealizado, alternativas surgiram desde os anos 60 na forma de 'ecomuseus', aos quais dedica atenção Heloísa Barbuy, tentando desmistificar certas noções aos quais esses "museus do tempo e do espaço" foram ligados.
De fato, se à questão da conformação dos artefatos está ligada uma visão de mundo, constitutiva de uma memória, e portanto de uma identidade, nada mais lógico e saudável que o museu respeite um modelo criado sobre bases associativas, autogerido cooperativamente, do qual a comunidade efetivamente participe.
Se "intervir é musealizar", o contrário é também verdadeiro: "musealizar é intervir".
A definição de museu constante no Estatuto do Conselho Internacional de Museus (ICOM) vem ao encontro dessa necessidade, assim como o modelo de gestão tripartite proposto por G. H. Rivière (comitês de gestão administrativa, participação comunitária, arcabouço intelectual acadêmico).
O problema é que a linha divisória entre (no âmbito do museu, seja ele tradicional ou não) a militância política de caráter panfletário, que visa autopromoção sem qualquer preocupação com o debate cultural mais amplo no qual é importante o instrumental científico e, de outro lado, as apropriações indevidas sem envolvimento ou comprometimento para com as necessidades reais da população, é deveras estreita. Nas palavras da autora:

"Eis aí a problemática central dos ecomuseus: o limite entre o caráter revolucionário ou conservador da construção de identidades culturais" (BARBUY, 1995, p.222).

A idéia de museu do ICOM é uma utopia ideal e é exatamente com o que estamos lidando na situação presente. É o mais importante, inclusive no âmbito da discussão preservacional e museológica: atentar para o presente.
Sabemos que, via de regra, o modelo de museu vigente em nosso tempo é o segundo elencado pela autora: gerenciamento racionalizado, pessoal terceirizado, captação de recursos financeiros, indústria de marketing e propaganda próprios, espetacularização da arquitetura e intervenção agressiva ou impositiva no meio do conjunto urbano. É sob determinados aspectos o caso do Museu da Língua Portuguesa, por exemplo.
Há, contudo, alternativas que refletem a tendência dos ecomuseus como o museu-casa Dona Yayá que, apesar de entraves burocráticos que causam lentidão nos processos de restauro, revela-se uma experiência interessante, no recorte temático e no caráter monumental (como memória) da configuração expográfica.
É nossa tarefa como cidadãos - e em particular como historiadores da arte - intervir no debate. Essa intervenção necessária sobre a qualidade da informação que deve circular e reverberar nas diferentes instâncias do espaço urbano - isto inclui a política, como exercício da cidade - é também a construção de um museu, de uma memória e de um patrimônio caro à sociedade como um todo.
É fazer da informação e do conhecimento fontes de questionamento a respeito das transformações sociais, materiais e não materiais, que afetam a todos nós.


Referência Bibliográfica

_ BARBUY, Heloísa. A conformação dos ecomuseus: elementos para compreensão e análise. Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material, 1995, v.3

_ Carta de Restauro de Atenas, 1931;
Disponível em: (http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do;jsessionid=3641F387F24419D009D8470311CE221B?id=232);

_ Carta de Atenas, 1933;
Disponível em: (http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do;jsessionid=3641F387F24419D009D8470311CE221B?id=233).

_ Carta de Veneza;
Disponível em: (http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do;jsessionid=44C368C6BF07A807E6492BDAB8FE7A89?id=236).

_ CERAVOLO, Suely Moraes. Delineamentos para uma teoria da Museologia. Anais do Museu Paulista, v.12, 2004.

_ CHOAY, Françoise. A Alegoria do Patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade, 2001.

_ MENESES, Ulpiano Bezerra de. Do teatro da memória ao laboratório da História: a exposição museológica e o conhecimento histórico. Anais do Museu Paulista, vol. 2, jan./dez. 1994 (1ª. parte), vol. 3, jan./dez. 1995 (2ª. parte).

_ RUFINONI, Manoela R. Museu e Cidade na Contemporaneidade: a interpretação museológica dos espaços urbanos, 2011.
Disponível em: (http://www.arquimuseus.fau.ufrj.br/anais-seminario_2010/eixo_i/p1-artigo-manoela-rufinoni_formatado-27-10.pdf).

_ RUSKIN, John. A lâmpada da memória. Cotia: Ateliê Editorial, 2008.

_ SCHWARCZ, Lilia K. M. O nascimento dos museus no Brasil. In: MICELI, Sérgio (Org.). História das Ciências Sociais no Brasil. São Paulo: Vértice, 1989, pp. 45-67.

_ VIOLLET-LE-DUC, Eugène Emmanuel. Restauração. São Paulo, Cotia: Ateliê, 2000 [1ª. ed. 1850-1870].

_ KÜHL, Beatriz Mugayar. A restauração de monumentos históricos na França após a Revolução Francesa e durante o século XIX: um período crucial para o amadurecimento teórico. Revista CPC, v.1, n.3, nov. 2006 / abr. 2007.