Mais que as percepções abstratas das impressões intelectuais e sentimentais traduzidas em palavras, esbarram-me em Pessoa, há muito antecipadas, as imagens mesmas que eu, iludido, estivera convencido de ter acabado de inventar!
Quase chego a querer acreditar haver céu só pra poder encontrar Pessoa. Mesmo no inferno seria consolo.
No purgatório, a perfeição.
"Nunca pude convencer-me de que podia, ou de que alguém seguramente
poderia, dar alívio certo ou profundo, e muito menos cura, aos males
humanos. Mas nunca, também, pude tirar deles o pensamento; a mais
pequena angústia humana - mais, a mais leve imaginação dela - sempre me
angustiou, me transtornou, me tirou do poder de me concentrar e de me
egoizar. O convencimento da futilidade de toda a terapêutica para a alma
deveria, por certo, erguer-me a um píncaro de indiferença, entre o qual
e as agitações da terra velassem tudo as nuvens daquele mesmo
convencimento. O pensamento, porém, poderoso como é, nada pode contra a
rebeldia da emoção. Não podemos não sentir, como podemos não andar.
Assim assisto, e assisti sempre, desde que me lembro de sentir com as
emoções mais nobres, à dor, à injustiça e à miséria que há no mundo do
mesmo modo que assistiria um paralítico ao afogamento de um homem que
ninguém ainda que válido, poderia salvar. A dor alheia tornou-se em mim
mais do que uma só dor - a de a ver, a de a ver irreparável, e a de
saber que o conhecê-la irreparável me empobrece até da nobreza inútil de
querer ter os gestos de a reparar. A minha falta de impulso foi sempre,
afinal, a fonte da origem destes males todos - o não saber querer antes
de pensar, o não saber entregar-me, o não saber decidir do único modo
como se decide - com a decisão, que não com o conhecimento -, burro de
Buridan morrendo na bissectriz matemática da água da emoção e da palha
do esforço, podendo, se não pensasse, morrer sim, porém não de fome nem
de sede.
Tudo, quanto penso ou sinto, inevitavelmente se me
volve em modos de inércia. O pensamento, que em outros é uma bússola da
acção, é para mim um microscópio dela, que me faz ver universos a
atravessar onde um passo bastara para transpor - como se o argumento de
Zenão, da intransponibilidade de cada espaço, que, por ser infinitamente
divisível, é pois infinito, fosse uma droga estranha com que me
houvessem intoxicado o organismo espiritual. E o sentimento, que em
outros se introduz na vontade como a mão na luva, ou a mão nos copos da
espada, foi sempre em mim uma outra maneira de pensar - fútil como uma
raiva com que trememos até nos não podermos mexer, espécie de pânico da
exaltação que, como o pânico, deixa colado ao chão o medroso a quem o
mesmo medo deveria fazer fugir.
Toda a minha vida tem sido uma
batalha perdida no mapa; a cobardia nem sequer foi no campo, onde talvez
a não houvesse, mas no gabinete do chefe do Estado Maior, e de ele a
sós com a sua convicção da derrota. Não se ousou o plano porque haveria
de ser imperfeito; não se ousou torná-lo perfeito, ainda que não pudesse
realmente sê-lo, porque a convicção de que não seria perfeito quebrou a
vontade com que ele, ainda que imperfeito, sempre se poderia tentar.
Nem me ocorreu nunca que o plano, embora imperfeito, poderia ser mais
perfeito que o do inimigo. É que o meu vero inimigo, vitorioso contra
mim desde Deus, era aquela mesma ideia de perfeição, que me saía à
frente antes que todas as hostes do mundo, na vanguarda trágica de todos
os comandos do mundo."
s.d.
Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.
- 197.
«A Educação do Estóico»