31 agosto, 2010

(...) Os homens vivem apostando corrida, Maria. Nos escritórios, nos negócios, na política, nacional e internacional, nos clubes, nos bares, nas artes, na literatura, até amigos, até irmãos, até marido e mulher, até namorados todos vivem apostando corrida. São competições tão confusas, tão cheias de truques, tão desnecessárias, tão fingindo que não é, tão ridículas muitas vezes, por caminhos tão escondidos, que, quando os atletas chegam exaustos a um ponto, costumam perguntar: "A corrida terminou! Mas quem ganhou?". É bobice, Maria da Graça, disputar uma corrida se a gente não irá saber quem venceu. Se tiveres de ir a algum lugar, não te preocupe a vaidade fatigante de ser a primeira a chegar. Se chegares sempre aonde quiseres, ganhaste. (...)

(Trecho de "Para Maria da Graça", de Paulo Mendes Campos)

30 agosto, 2010

Inquietude

Alvoroço repentino, súbita vontade de criar algo, dar vazão ao gestual anárquico do corpo que segue suas próprias regras, lutando contra essa obsessão da ordem racional e do auto-controle. Vontade de sujar tudo de cores como num gozo contido e longamente esperado.
Sim, gozar pra pelo menos dessa vez abortar Atená, ave cesária que irrompe à janela do ovo-cuca, nesse parto mais das vezes não natural.
Sim, preparar o gozo, que outra coisa se gesta e engole os miolos com pensamentos e tudo. Ave noturna, soturna e agourenta. Equidistante do galo madrugador, que canta a aurora do que há de vir e do corvo que colhe o brilho do olho que não mais há de ver.
Pomba-rola, que se infla ternamente no tesão da manhã. Pomba paz e amor.
Fênix renascida no peito. Se levanta.
Grávido de um parasita autoimplantado , paralisado, atônito e exultante, espero em dores, carne e entranhas carcomidas, ligamentos rompidos, o reverberar do grito primal espumado.
Viro do avesso.
Morro e renasço univitelino. Monstro ipsilone de carne e som, bicéfalo apolodionisíaco.

Vejo você onde não tem.

Sem qualquer esperança
Detenho-me diante de uma vitrina de bolsas
Na avenida nossa senhora de copacabana, domingo,
Enquanto o crepúsculo se desata sobre o bairro.
Sem qualquer esperança
Te espero.
Na multidão que vai e vem
Entra e sai dos bares e cinemas
Surge teu rosto e some
Num vislumbre
E o coração dispara.
Te vejo no restaurante
Na fila do cinema, de azul
Diriges um automóvel, a pé
Cruzas a rua
Miragem
Que finalmente se desintegra com a tarde acima dos edifícios
E se esvai nas nuvens.
A cidade é grande
Tem quatro milhões de habitantes e tu és uma só.
Em algum lugar estás a esta hora, parada ou andando,
Talvez na rua ao lado, talvez na praia
Talvez converses num bar distante
Ou no terraço desse edifício em frente,
Talvez estejas vindo ao meu encontro, sem o saberes,
Misturada às pessoas que vejo ao longo da avenida.
Mas que esperança! tenho
Uma chance em quatro milhões.
Ah, se ao menos fosses mil
Disseminada pela cidade.
A noite se ergue comercial
Nas constelações da avenida.
Sem qualquer esperança
Continuo
E meu coração vai repetindo teu nome
Abafado pelo barulho dos motores
Solto ao fumo da gasolina queimada.

Pela Rua, poema de Ferreira GULLAR in Dentro da noite veloz (1962-75)

27 agosto, 2010

Tempo presente.

(...)
Sempre faz tremer
Sempre faz pensar
Nos abismos da ilusão
Quando, como e onde
Vai parar meu coração?
Há no seu olhar
Algo de saudade
De um tempo ou lugar
Na eternidade
Eu quisera ter
Tantos anos-luz
Quantos fosse precisar
Pra cruzar o túnel
Do tempo do seu olhar.

(Trecho da canção Seu Olhar de Gilberto Gil, do álbum Dia Dorim Noite Neon, 1985)



Não importa o que quer que pensemos que temos de especial. Tudo o que temos é tempo.
É a única coisa que podemos dar ou reter para nós mesmos. É o único valor.
É o que faz de cada um de nós humanos, seja lá o que mais isso possa significar.
Tempo. É o que somos.
Partilhar o tempo e a memória do tempo partilhado.
É preciso resguardar um pouco pra nós mesmos, mas é completa loucura, uma loucura egoísta e inútil (como tudo) guardar todo o tempo pra si mesmo. Ele escorre por entre os dedos. Silício, grão de silêncio. Ampulheta digital.
Esvai-se como água. Evaporamos nós, conjugação de água, sais. Eclipsidramo-nos. Tempo.
Se ebulimos ou se somos vaporizados... Se eclâmpsia, se eclipse... Deixamos um corpo de chão? Nos consumimos? Não importa. Quanto tempo/?/!/...
Pó, de estrelas e sóis. Pó de estradas sois.
Pois importa o passaTempo e você tem sido o meu, Pequena Eternidade. Doce galáxia de tempo condensado. Seus dois olhosburacosnegros.
Do nada ainda desabo, minha cara, fátuo consumado, qualquer meio-dia na sua.

26 agosto, 2010

Q trist... kkk

Estava tentando lembrar qual foi a última conversa amigável que tive, num nível pessoal, confidencial, sem que eu estivesse totalmente bêbado, chapado ou a centenas de quilômetros de distância do interlocutor...
2008,
2007,
2006...























































































Ainda não consegui.

25 agosto, 2010

Lights off.

Apoiado no batente da cozinha, completamente só, repensando em banho-maria as inúmeras coisas estúpidas que costumo (não) fazer quando a questão é me expressar direta e claramente às pessoas com que gostaria de conversar.
A solidão tem seus surdos prazeres como esses momentos repentinos, de sobressalto no silêncio-escuro.
E embora o fato de morrer sozinho, sem família, não seja algo que me surpreendesse grandemente, às vezes sinto - confesso - que estou ficando bastante velho pra ficar assim suspirando pelos cantos...

Ok! Pretty dramatic. rsrs
Culpa da lua. Ela está mesmo uma beleza hoje.


Eu ontem fui dormir todo encolhido
Agarrando uns quatro travesseiros
Chorando bem baixinho, bem baixinho, baby
Pra nem eu nem Deus ouvir
Fazendo festinha em mim mesmo
Como um neném, até dormir
Sonhei que eu caía do vigésimo andar
E não morria
Ganhava três milhões e meio de dólares
Na loteria
E você me dizia com a voz terna, cheia de malícia
Que me queria pra toda vida
Mal acordei, já dei de cara
Com a tua cara no porta-retrato
Não sei por que que de manhã
Toda manhã parece um parto
Quem sabe, depois de um tapa
Eu hoje vou matar essa charada
Se todo alguém que ama
Ama pra ser correspondido
Se todo alguém que eu amo
É como amar a lua inacessível
É que eu não amo ninguém
Não amo ninguém
Eu não amo ninguém, parece incrível
Não amo ninguém
E é só amor que eu respiro.


(Eu não amo ninguém, Barão Vermelho do álbum Maior Abandonado, 2000.)

20 agosto, 2010

Eu rasgo seda à bessa...

"_ É lindo, destruir palavras. Naturalmente, o maior desperdício é nos verbos e adjetivos, mas há centenas de substantivos que podem perfeitamente ser eliminados. Não apenas os sinônimos; os antônimos também. Afinal de contas, que justificação existe para a existência de uma palavra que é apenas o contrário de outra? Cada palavra contém em si o contrário. "Bom", por exemplo. Se temos a palavra "bom," para que precisamos de "mau"? "Imbom" faz o mesmo efeito - e melhor, porque é exatamente oposta, enquanto que mau não é. Ou ainda, se queres uma palavra mais forte para dizer "bom", para que dispôr de tôda uma série de vagas e inúteis palavras como "excelente" e "esplêndido" etc. e tal? "Plusbom" corresponde à necessidade, ou "dupliplusbom" se queres algo inda mais forte. Naturalmente, já usamos essas formas, mas na versão final da Novilíngua não haverá outras. No fim, todo o conceito de bondade e maldade será descrito por seis palavras - ou melhor, uma única. (...) Não vês que todo o objetivo da Novilíngua é estreitar a gama do pensamento? No fim, tornaremos a crimidéia literalmente impossível, porque não haverá palavras para expressá-la. Todos os conceitos necessários serão expressos exatamente por uma palavra, de sentido rigidamente definido, e cada significado subsidiário eliminado, esquecido. Já, na Décima Primeira Edição, não estamos longe disso. Mas o processo continuará muito tempo depois de estarmos mortos. Cada ano, menos e menos palavras, e a gama da consciência sempre um pouco menor. Naturalmente, mesmo em nosso tempo, não há motivo nem desculpa para cometer uma crimidéia. É apenas uma questão de disciplina, controle da realidade. Mas no futuro não será preciso nem isso. A Revolução se completará quando a língua for perfeita."
(ORWELL, George - 1984)

Uma das coisas que me atrai e que admiro por demais nas pessoas é a preocupação com o emprego da palavra exata no lugar apropriado e no momento preciso.
Signos aleatórios, convencionais e já dados, palavras são objetos carregados de significado que aprendemos a usar ao longo da vida. Salvo as poetas e os poetas, que pra isso têm licença, nós, o grosso dos mortais, muito pouco preocupamo-nos em modificar os termos cotidianos que utilizamos para melhor expressar o que dentro nos vai. Tendo ultrapassado o aprendizado da língua, depois de conquistá-la - a ela então nos rendendo - na maior parte do tempo simplesmente não nos damos conta do caráter automático do exercício cotidiano da fala e da escrita.
Somente quando nos obriga um fator externo (quando nos são exigidas as formalidades de um requerimento ou contrato legal) ou quando nos impele uma moção interna, significativa (uma necessidade de expor impressões pessoais e sentimentos vitais, como na poesia e nas declarações amorosas), somente quando das palavras depende toda a diferença entre ser compreendido e não sê-lo, sem sombra de dúvida, é que a maioria das pessoas se inclina numa reflexão sobre o uso meticuloso das palavras. Quando o que está em jogo é um pedaço de terra (ou de um coração), elas são prontamente solicitadas a cumprir seu importante papel de esclarecer, de assegurar que estamos nos fazendo entender.
Há, no entanto, pessoas que muito naturalmente (e à custa de esforço e exercício continuados) têm o dom de se fazer entender e de ilustrar conceitos e convicções pelo uso do discurso verbal e/ou escrito. São pessoas prolixas, articuladas e convincentes.
Não adentrarei aqui a ambiguidade da retórica política nem a estrutura perversa em que se converteram os sistemas de comunicação da coletividade, sutis veiculadores de ideologias e lugares comuns, conformadores de opinião que pretensamente "fazem a cabeça da massa alienada". Não o farei, não porque não me preocupe seriamente com tais questões, mas por duas razões muito simples e que estão intimamente relacionadas: primeiro porque, intelectualmente falando, não me vejo suficientemente preparado para tal empreitada, para uma crítica dessa natureza, complexidade e de tamanhas proporções; segundo porque sinto que definitivamente a vocação política não está em mim, assim como não estão a facilidade e a perene disposição afetiva para o diálogo interpessoal. A natureza de meus escritos é preponderantemente de reflexão interna, busca de uma palavra que me proporcione um diálogo interno na busca de soluções para problemas inerentes à minha própria personalidade, exercício de busca da clareza, esvaziamento, aproximação, contraste e abandono de conteúdos para que, nessa dialética intimista, outras idéias possam tomar lugar àquelas que, paulatinamente, vão sendo descartadas. Dialética possível? Viável? Não sei ao certo. É provável que o leitor (se algum há) experimente profundo enfado frente a essas maciças e herméticas proposições e que tal texto seja efetivo soporífero, bastante recomendado à insônia crônica. A mim, me ajudam a organizar o caos dos pensamentos, das impressões e dos sentimentos.
Mas, à parte isso, gostaria sobretudo de fazer aqui o elogio às pessoas cuja preocupação com a expressão e cuidado com a língua tornam-se essenciais a ponto de constituirem, além de objeto de cuidado acadêmico, meio de subsistência, fonte de expressão e de gozo pessoais - como são para mim, o trabalho e o olhar cioso da imagem pictórica. Admiro tais pessoas com (e não há aqui outras palavras que caibam nesse espaço e contexto a não ser estas) verdadeiro fascínio.
Letra e Imagem são duas dimensões distintas, mas que caminham inseparáveis, complementando-se mutuamente e, nesse caminhar, seguem enriquecendo o panorama cultural, humano, historicamente construído - e mais recentemente em processo de (des)construção.
São campos que, simultaneamente, constituem e ilustram a própria vida. Espaços em que clareza e mistério, discurso e silêncio, cheio e vazio, olhar e imaginar assumem peso e importância equivalentes, ainda que particulares.
Por isso, e para finalizar, de coração reitero: viva o ato do dizer, salve a arte do calar!
Pra bom entendedor...

19 agosto, 2010

Cantada

Você é mais bonita que uma bola prateada
de papel de cigarro
Você é mais bonita que uma poça dágua
límpida
num lugar escondido
Você é mais bonita que uma zebra
que um filhote de onça
que um Boeing 707 em pleno ar
Você é mais bonita que um jardim florido
em frente ao mar em Ipanema
Você é mais bonita que uma refinaria da Petrobrás
de noite
mais bonita que Ursula Andress
que o Palácio da Alvorada
mais bonita que a alvorada
que o mar azul-safira
da República Dominicana

Olha,
você é tão bonita quanto o Rio de Janeiro
em maio
e quase tão bonita
quanto a Revolução Cubana

(GULLAR, Ferreira in Dentro da Noite Veloz, 1962 - 1975)

Como andar de bicicleta.

Quando era pequeno e morava na casa de meus pais, tinha às vezes vontade de andar de bicicleta.
Não era simples.
Primeiro porque, quando criança, nunca tive bicicleta. Foram duros os tempos que se seguiram à abertura política, marcados pela inflação galopante, pelos infindáveis pacotes econômicos e malabarismos mirabolantes do Ministério da Fazenda. Lembro de alguns nomes, ainda sem compreendê-los totalmente. Figueiredo, Tancredo Neves (e aquela inesquecível cena do avião ao som de Coração de Estudante)... Congelamento de preços, gatilho salarial, Delfim Neto. Cruzeiro, Plano Cruzado, corte de zeros da moeda, Cruzado Novo. Sarney - "Seja Fiscal do Sarney!" Ulisses Guimarães e a relação infame do Deputado com o herói da Odisséia: "_Seria o helicóptero de Ulisses ao mar, obra de Netuno?"
Tudo isso e a vida megacomplicada de meus pais, dois nordestinos entre os muitos que, fugindo da fome, lutavam pra se estabelecer em São Paulo. Trabalhando duro pra criar minhas irmãs e eu, pra dar de comer a todos nós, nos educar dignamente. A eles devo tudo o que há em mim, de melhor e pior. Lhes devo cada dia da vida como um presente e uma carga.
Tempos difíceis, sem dúvida. Por conta disso nunca tive muitos supérfluos como vídeo game, por exemplo (e, honestamente, na época nunca me fez falta). Nem bicicleta.
Minhas brincadeiras prediletas consistiam em desenhar na rua de terra, construir castelos de areia com cavernas, pontes (e, quando chovia, com fossos)... Empilhar pequenos blocos de madeira que trazia meu pai do depósito onde trabalhava. Posso ainda sentir o cheiro.
Rabiscar os livros e folhas secretamente estocados sob o assento do sofá quadriculado azul.
Mas a real razão porque demorei tanto a andar de bicicleta - minha primeira me veio já na adolescência, mas soía, é claro, haver uma ou outra à mão -, a razão é que sempre fui muito cagão. rsrs
Me torturava entre o que seria pior caso eu caísse: a dor física de esfolar os joelhos ou a suprema vergonha moral de ser apontado fazendo coisas estúpidas. Chegava mesmo ao cúmulo de treinar no corredor lateral de casa (e mesmo isso quando os de casa não estavam olhando).
Muito tardiamente e sozinho (sempre sozinho) simplesmente aprendi, num dia qualquer, na magrela de um amigo. Que felicidade! Passei o dia todo contornando o canteiro central da avenida, tentando alçar vôos por sobre as lombadas (se diz lombadas, aqui? Quebra-molas!).
Dia bom.
À parte o fato de que não me lembro qual foi a última vez que andei de bicicleta (e o não menos triste fato de que continuo sem grana pra comprar uma! kkkk), sei que sou capaz de fazê-lo. Não sem uma boa dose de desalinho, é verdade, e uma tragicômica deselegância, mas o essencial é que certas coisas não se esquecem...
Desconfio que não seja muito saudável mas meu coração quase nunca pedala. Vez em nunca se aventura pela cidade. Vez ou outra ainda contorna o canteiro. Mas a verdade, verdade mesmo é que continua, na maior parte do tempo, a se espremer dentro da segurança invisível dos muros da casa materna, se apoiando pelas paredes do corredor, fingindo velocidade. E equilíbrio.
Isso nos fez - eu e meu coração - meio raquíticos. Cansados e cansativos. Graves. Compassados. Pedantes em vez de pedalantes.
A sensação de, depois de tanto tempo, pensar em voltar à rua é estranha e a determinação em fazê-lo, me sabe um pouco assustadora. As ruas mudaram, estão mais cheias, mais velozes. Há sinais que não entendo.
Minha bicicleta está velha e descalibrada.
É anacrônica, meio ridícula, com seu cestinho e uma buzina fanha e espalhafatosa. É meio tosca, reconheço, mas me serve.
É pesada, mas é minha.
Vou lubrificar a corrente (eterna mania de meu pai, em tudo pôr óleo! Pena não funcionarem com determinados atritos). Vou tentar insuflar alma nos pneus velhos, apertar os parafusos, (me) lixar (para) a ferrugem. Que mais?
Trocar as sapatas de freio, que minha inclinação é ir devagar, na defensiva, ao menos uma mão sempre no guidon...
Ah! e vou levar flores no cesto, sim. Foda-se (taí mais um chavão paterno)!
É começar.
O máximo que pode acontecer é sair machucado. Ou machucar alguém (pedir desculpas também está implícito no ato de aprender a dirigir).
Além disso, não importa mesmo o que se faça, parado ou correndo, não se pode fugir às coisas estúpidas. Temos com elas encontros marcados.
O negócio é botar a cara pra fora e dar uma volta.
Vocês vão ver. No fim da tarde já vou estar loucamente apostando corrida com ônibus.

16 agosto, 2010

Hand me a mirror, please.



"Oh, my... Where did I go?"
(Greg Kinnear no papel de Simon Bishop, em As Good as It Gets (Melhor é Impossível), filme dirigido por James L. Brooks, 1997.)

14 agosto, 2010

Estado: Líquido

Existem pessoas que, inexplicavelmente, nos fazem sentir à vontade.
Elas têm, assim que chegam, o poder de transformar qualquer ambiente em lar e aconchego. Quando digo 'poder' estou claramente atribuindo valor a essa capacidade ou atributo. Em grande parte por, como introvertido por excelência, não possuir esse caráter.
Creio não ser algo absolutamente intencional. Parece ser uma disposição natural, inconsciente, de tais pessoas que, são agradáveis porque... são! rs
Pessoalmente falando é uma experiência rara perceber essas pessoas iluminadas.
E o mais engraçado é que esse poder de certa forma escapa a uma definição, o que paradoxalmente aumenta o fascínio por elas. Não se preocupam muito com auto-análise. Às vezes nos dão a impressão de não ligar mesmo pra análise nenhuma! Fogem a toda a (nossa) compulsão classificatória.
Desenvoltura? Simples alegria? Talvez espontaneidade... Acho que é o mais próximo que pode chegar uma aproximação verbal. É uma espécie de pessoa afortunada, dona de uma riqueza, de um patrimônio que é inútil pra si mesma mas que, alheia a esse valor incauculável, inadvertidamente o distribui generosamente aos outros.
É patente, é visível, que ela não precisa comprar ninguém. Está estampado (e essa alegoria de cor não poderia ser mais própria, mais feliz).
Refletindo sobre elas (prestando atenção nos muitos significados, mas indo além deles, 'entrando na metáfora'), compreendi finalmente o sentido da alegoria da fonte. Definitivamente elas são fontes de água fresca, límpida, transparente, sonora, abundante, de maneira alguma insípida, torrente caleidoscópica, inesgotável... Tais pessoas são vitais. Garantem a experiência de uma vida vivida, saciada.
Ao ler esse texto cheio de clichês (porque quando as palavras não bastam à expressão, é inevitável cairmos em clichês - quão paradoxal!) talvez uma ou outra pessoa fará o percurso que fiz, se reconhecerá como o andarilho que foi levado por esse percurso.
Enfim, essas pessoas nos teletransportam a dimensões onde podemos pensar e falar simultaneamente em várias dimensões.
Em que prestar atenção enquanto conversamos com elas? No modo como falam? Na boca que abre e fecha? Na altura do tom? No timbre? No conteúdo do discurso? Nas palavras? No que essas palavras representam? No que elas significam? Na cor dos olhos? No olhar? No corpo? No cheiro? Em que parte? No gesto? No todo? Tudo fala! Essas pessoas são como que uma somatória de variadas expressões de arte (são pintura, são música, são narrativa, são poesia). São mais que a somatória pois são o fundamento que possibilita e o lugar de onde brotam essas experiências tornadas reais. Ainda assim, escapam a qualquer generalização abstrata dessa natureza porque concretas, reais, idiossincráticas.
Independente de nosso agnosticismo, pra lá de nossas dúvidas e convicções, elas nos proporcionam igualmente pensar a partir de uma perspectiva religiosa, de transcendência. Sobretudo do mistério de nossa singularidade, de nossa finitude, de nossa grandeza, de nossa pequenez, de nosso (parafaseando o pensador) encontro nesse vasto panorama de tempo imenso e espaço infinito.
Até que ponto essa experiência nasce de minha própria fonte, de minha própria sede, o que significa que muito provavelmente eu possa estar "fazendo água" é um outro mistério. Seria por demais ingênuo ignorar essa possibilidade de auto ilusão tão útil e benéfica. Não é doce morrer na praia, mas mais salgado é morrer no mar.
Uma coisa é meu universo interior, outra o cosmo, suas limitações e possibilidades. E a incontornável liberdade do outro.
Uma coisa é pensar, outra é fazer.
E o ato criativo nada mais é do que a soma dessas duas. A obra de arte nasce também daí, dessa possibilidade e dessa abertura.
No fim das contas, é melhor estar inspirado do que não estar.

13 agosto, 2010

Platice...

Conversava hoje com uma amiga que conheci recentemente, figura muito legal, e que se queixava a respeito de uma aula chata de grego. Compreensível.
Nada contra o helenismo (ou vocês esquecem que eu cursei filosofia?). Aprender novos códigos sempre encerra um quê de trabalho metódico e paciente, seja um sistema de escrita alfabética, seja numérico (quem se esquece da tabuada? E quem se lembra? rs). Idiomas não fogem à regra. São um pé no saco pra aprender. É consenso que não há modo melhor de treinar uma língua a não ser a prática.
Penso, contudo, que não há nada na vida que, num dado momento, se veja livre da metade entediante, da porção chata. Mas a chatice é subestimada, sabe! Ela é em grande parte responsável pela diversão. Senão por causalidade ou semelhança, ao menos por contigüidade. Bem, definitivamente por contraste! rsrs

O legal é que não há um consenso sobre o que é chato.
Eu, por exemplo, me divirto à beça com a teoria.
Teoricamente, chato mesmo é o vice-versa...
Esquece, amiga, tô falando grego... kkk

Kantico doS kanticOS

Leonard: It must be hell inside your head.
Sheldon: [pause] At times. ...

(from 'The Big Bang Theory' show)

Você já parou pra pensar na gratuidade das relações interpessoais?
Muito se apregoa que não devemos usar as pessoas.
Pessoalmente, tento me convencer de que esta é a meta absoluta da minha vida, a ponto de abrir mão de todas as outras pessoas, cercando-me de coisas e idéias.
O que é a amizade senão o conforto da afirmação recíproca das consciências, garantia de estar certo e poder assim deitar a cabeça no travesseiro sem sombras de dúvidas? A facilidade de uma série de vantagens práticas e a garantia de recompensas afetivas?
É evidente que consideramos esses intercâmbios de afeto e aprovação como vitais.
Mas até que ponto são desinteressados, gratuitos?
Por quais motivos nos permitimos cercar por determinadas pessoas, evitando outras? Não é algo sumamente projetivo e conveniente? Buscar o prazer e evitar a dor? E tais pessoas não se convertem em meios para essa satisfação?
Algumas pessoas poderiam argumentar que estas são típicas situações 'win/win': fulano me faz bem, eu faço bem para fulano. O que constitui isso senão uma troca? E onde entra aí a tão propagada - e propagandeada - gratuidade? Não será ela um lenitivo para nossas consciências, essas pedras fundamentais que não fazem senão justificar nossas hipocrisias e ratificar nossos procedimentos utitlitaristas?
E o amor? Seria uma progressão lógica de uma amizade, reafirmação biunívoca, onde também os corpos entrariam no contrato?
Que seja triste propor assim nesses termos, eu aceito (embora não menos digno, nem definitivamente menos lógico que qualquer outro procedimento). Que me acusem de simplista, reducionista, maluco, ingrato, doente ou chato elevado a Googl... aceito. Honestamente eu não me inclinaria a discordar de nenhuma dessas caracterizações. Mas não deflito. Minha compulsão analítica persiste.
O que acontece é que, ou se admite forçosamente que usamos e somos usados, somos (também) objetos e a gratuidade é uma grande balela que serve de mero catalisador para nossas ações puramente egoístas, ou isso, ou que me queiram provar o contrário, de onde resultaria que qualquer esboço ou tentativa de fazê-lo já seria uma reação narcísica por parte de algum pretenso desinteressado - profundamente interessado em ter razão - ao meu discurso egoísta filhodaputa.
Além disso, como condenar alguém que conscientemente e de modo deliberado, seja no atacado, seja no varejo, instrumentaliza pessoas? Íntima ou institucionalmente? Atire a primeira pedra...
O que seria fraqueza, afinal? Resignar-se ao 'somos todos imperfeitos e cometemos erros...' ou prescindir radicalmente de nossas relações?
Presumo que a segunda hipótese seja dificilmente passível de verificação visto que as pessoas sofrem de um sério impulso de se auto afirmarem, ao nível da perpetuação (alegando as intenções mais altruísticas ou simplesmente alegando que a camisinha definitivamente interfere na sensibilidade. Além do mais, o intolerável tédio de uma existência absolutamente solitária nada tem que ver com isso). Resta a constatação de que tal alternativa resulta impraticável.
De qualquer modo recaímos num cálculo pragmático da matemática prazer x dor. Escolhe-se a menos nociva tendo em vista preponderantemente a si mesmo, obviamente.
A natureza daquilo sobre que me questiono por detrás dos critérios através dos quais "deixamos entrar quem quisermos em nossas vidas" e o uso pragmático ou não que delas fazemos, resulta demasiado clara e evidente para todos nós: o que seja a liberdade de escolha ou sua ausência, a questão da responsabilidade pelas nossas próprias razões em oposição ao caráter pretensamente inautêntico da existência e, em última instância, o que seja a confiança.
O fato de querer expô-lo publicamente revela algo não menos importante, quer uma urgência de avaliação e tentativa rigorosa de reflexão, quer uma necessidade de compartilhar tais raciocínios e conteúdos. Talvez um primeiro movimento dialético a espera de contrapartida (e nesse sentido, uma insuficiência e esgotamento da capacidade autoanalítica).
Que a linguagem utilizada aqui para expressar tais raciocínios é um dado relevante e sobremaneira eloqüente em relação a pelo menos um de meus critérios de seleção construídos até então, não há dúvida. Ele revela coisas importantes porque significativas (sintomáticas?)sobre minha própria pessoa. Posto isto, temos algo como certo. Mas devemos nos perguntar: constitui esse um critério válido? E em relação a que? Eis a questão.
Tomando como pressuposto que não devemos nunca tomar nenhuma pessoa como meio para um fim exterior a ela, à sua dignidade de pessoa minha inclinação seria de que o mais acertado seria o abster-se o máximo possível dos contatos e relações pessoais. A convivência, entretanto, é um dado, não há dúvida. Nada do que eu fizer mudará absolutamente a ordem das coisas enquanto sociedade e cultura. Resta a minha convicção pessoal de fazer o que minha consciência individual julga como acertado para a maioria e tomar como exemplar tal comportamento, desejável para todos como regra universal, ou aceitar a hipocrisia como elemento integrante do protocolo social, aceitar usar e ser usado, na medida do possível estabelecendo de antemão as regras do contrato (esperando que um outro tão imperfeito e egoísta quanto eu faça o mesmo) e reconhecer-me como mais um ser humano falível e contraditório, suscetível de minhas obscuras motivações inconscientes, fraco de vontade e de propósito, um tanto ilógico porque também bestial, naturalmente interesseiro e egoísta, etc., etc., etc. Acima de tudo irmanamente hipócrita.

12 agosto, 2010

O que te dá mais prazer?

Sonhar ou contar o sonho?
Chorar ou conter o choro?

Complete com NÃO; EU; VOCÊ; ME; TE; ALGO, ASSIM; ALGUÉM; NINGUÉM; TUDO; NADA; SEMPRE; JAMAIS.



Não tenho que:

.......entender........
.......merecer........
.......perdoar........, exceto a mim mesmo.
se não puder consertar.......,
sofrer ........ na mesma proporção.
.......declinar........
.......abster de........
.......negar........
.......estar à altura de........
.......corresponder a........
.......superar........
.......extrapolar........(dentro dos limites).
.......aperfeiçoar........
.......salvar........
.......esperar........
.......fazer........
.......fingir.......
.......ser........
.......mudar.......
.......completar.......

10 agosto, 2010

Pasmaceira

Gosto de olhar. Gosto dessa sua postura pra frente, interessada em algo, em alguém. Gosto quando não precisas esquecer de mim, para que então não precise cair na tentação de fingir nada do que não é. E eu nem sou importante. Pra todos os efeitos eu não existo.
Cigarro na mão impensada, inconsciente, flutuante. Mais um dos teus venenos.
Gosto do desalinho dos cabelos, ninho de alguma estranha criatura, noturna, prestidigitadora.
Da boca entreaberta, cheia de idéias. Caóticas em sua maioria, decomprometidas com minha ordem ou razão. Mas tão roucas e convincentes que chego a não prestar atenção pra ver o timbre onde vai. Gosto do teu teatro anárquico e suas possibilidades. Por isso procuro chegar cedo e sentar perto.
Gosto de ver o aspecto peculiar e particular do teu rosto, imagem pronunciada. E do teu corpo, que me faz pensar no peso e sua falta. Teu corpo não se leva a sério e eu acho graça nessa falta de graça, tão familiar em mim mesmo, mas que em ti não respeita ninguém. Acho que é o primeiro corpo sem hipocrisia que eu já vi. Bem, pra falar a verdade, a mim nunca tinha ocorrido a hipocrisia dos corpos até então... E não me refiro a Reich ou Foucault, corpi que amontoamos numa monumentalidade que só é menos babilônica que a própria confusão que tentamos arquitetar. Não cabem aqui essas pesadas reflexões. Não, definitivamente não aqui e agora. Deixem-me a sós.
Quero continuar olhando simplesmente. Desgovernados planam meus olhos pelas texturas, pêlos, sinais. Sabem das cores, dos desenhos, adivinham os volumes. Pensam na cama elástica dos músculos e na festa atordoante dos gestos. No campo minado da tua proximidade implacável.

No caos petrificado que se tornou minha vida, abandonei quase tudo. Durmo no chão frio, comendo frio e bebendo chuva, quando chove. Ensaquei a maioria dos pensamentos bons e sujos, amarrei e levei o lixo pra fora. E é isso que tenho feito por pelo menos dois anos. Não tenho grana pra comprar nenhum sentimento. Os que tenho brotam no jardim eletrificado dos fundos e, às crianças e a todos que me vêm pedir, um punhado que seja, digo que não amolem. Estão verdes!
Os papagaios coloridos, estes eu devolvo (embora às vezes quisesse preservar alguns dependurados nas paredes, como silêncios empalhados. More than ever, silence is golden).

Acontece que algo explodiu em algum lugar, em algum momento algo arrebatou o poder querendo baixar de vez a primavera! Talvez hormônios (eles não são mesmo sacanas?). Só pode! Quando eu estava bem...

Gosto, sinto falta...

Aqui, no escuro, ouvindo música em silêncio, escrevo. Escrevo.
E tremo. Além do frio o pavor!

Aprendi a amar quadros (ainda invisto um tempão nisso). Mas por onde que beleza você em mim? E quando?
Hoje me persegue sobretudo a eternidade despretensiosa de tua infância louca de se recusar aos números e aos ponteiros e, quase sempre, aos vestidos (que resultam não vestidos).
Me alegra que és, quando poderias nunca ter sido; e também o fato de que ainda que sois, poderias simplesmente não teres sido nunca para mim - ainda que propriamente não sejas. E ainda que não sejais nunca, nunca, nunca, nunca... Ei-la.
E só o que me entristece, além e apesar de todo o mundo, é o (des)serviço de ser Descartes - sim, senhores, em tempo integral - quando poderia ter sido você todo o tempo.
Mas que ninguém nos ouça: acho que estou alegre de verdade quando te vejo ou quando penso, longe, no que mais você pode ser (Que mais insuspeitadas cores?).
Se é que a hipocrisia está nos olhos de quem vê, porque não estaria a beleza?
Puta que me pariu, eu preciso mesmo passear nos teus feriados.

09 agosto, 2010

O Importuno

O Importuno – Almeida Júnior

A obra retrata uma cena de interior representando episódio do cotidiano doméstico. Pode ser dividida, basicamente, em dois planos.
No plano ao fundo, há uma figura masculina. Pele clara. Cabelos pretos. Enverga uma espécie de túnica longa, de um violeta escuro e porta na mão esquerda, à maneira usual dos pintores, uma paleta retangular em que se podem divisar porções de tintas de diversas matizes, perfazendo um degradée preciso que, da esquerda para a direita, vai do tom mais escuro ao branco mais luminoso. Segura também pincéis. É sem dúvida um artista. Tem no topo da cabeça uma boina característica. Sua mão direita afasta um cortinado que pende do canto superior direito do quadro. A cortina, por sua vez, exibe um marrom escuro, marcado por estreitas listas horizontais, ocres e também de um outro tom, dificilmente distinguível, o mais escuro do tecido. Parece servir de anteparo, isolando o aposento que ora vemos daquele que lhe é contíguo. Encimando a porta, um escudo heráldico sob dois rifles, cruzados à meia altura dos canos. O pintor parece vislumbrar algo ou alguém que se furta ao alcance de nossas vistas, mas que é certamente visto por ele.
Ainda nesse plano, podemos ver nas paredes de um violeta pálido, uma paisagem que à primeira vista dá-nos a impressão exata de uma janela, mas cuja moldura denuncia como sendo obra do pintor. Igualmente, a presença sugerida de uma outra obra, de menores proporções, a essa superposta.
Imediatamente atrás da figura do homem, uma cadeira de madeira clara, torneada, donde pende um panejamento, talvez seu casaco. Em frente ao assento, um cavalete. Também um móvel reduzido, forrado por uma peça de tecido verde cuja barra é inteiramente ornada por rendas amarelas, pequeno cubo de tom escuro onde se apóiam os apetrechos de ofício do artista: valise, frasco com solvente, mais pincéis, pano para a limpeza destes. No cavalete, uma pintura incipiente: uma figura branca, negra cabeleira, ligeiramente recostada não se sabe onde pois ainda não há fundo. Dela só podemos distinguir o busto matizado e todo o restante resume-se ao contorno esboçado do corpo e do pano de fundo, levemente definidos.
Toda a metade esquerda do quadro constitui o primeiro plano. Nela encontramos uma figura de mulher, cabelos pretos, presos num coque ao alto da cabeça. Tem a pele clara como o pintor, mas nessa, predomina um tom mais encarnado, especialmente na face, sanguínea. Está trajando na parte superior uma peça branca, muito fina, cortada por listas cor de laranja ou vermelho pálido, que deixa entrever amplamente o colo e os braços nus. Por cima deste, um corpete de um violeta desmaiado lhe marca a silhueta delgada. Veste também um saiote claro, de aspecto similar ao da blusa, mas sem estampas, que se estende até pouco abaixo dos joelhos. Tem os pés e panturrilhas cobertos por meias tipo três quartos que, com exceção de uma estreita faixa horizontal que as encima, é dominada por um tom bastante escuro. Sua atitude parece ser de sobressalto e pudor. Atrás de si, encontram-se os sapatos dispostos em leve desalinho. Do espaldar de uma cadeira, idêntica à que usa o pintor, pende o vestido composto por um panejamento de um negrume sólido com áreas de tecido claro marcado por faixas de cor escura. Esses utensílios, situados à extrema esquerda, mesclam-se na penumbra a que os confina outra densa cortina. Esta parece querer separar agora, o atêlie do pintor do ambiente em que se encontraria o observador do quadro.
A jovem encontra-se atrás de uma tela emoldurada pousada sobre um cavalete robusto, munido com pequenas rodas nos pés para facilitar sua locomoção. Sobre o conjunto, que lhe serve de proteção, como um biombo, está depositada uma peça de tecido menos transparente, talvez uma peça intermediária de sua indumentária, vestimenta que cingia mas que retirou por um motivo bastante específico: é ela a modelo que ora posa para o artista que acabara de iniciar seu trabalho.
Alguém, contudo, solicitou a presença deste ou sua pronta resposta e viu-se compelido então a atender ao chamado.
Abaixo à direita, um fragmento bastante indefinido de um objeto insinua-se, como que projetando-se para dentro do quadro. Supomos ser a borda de um manto de peles que cobre um canapé ou estofado onde posava a modelo antes do importuno e que parece estar igualmente esboçado na tela do pintor, que temporariamente se ausenta. No canto direito, ainda em primeiro plano, anuncia-se, sobre um assoalho de madeira, um tapete à moda persa com seus arabescos de cores vermelhas, azuis e pardas. A luz advém de uma fonte precisamente acima do recinto. Talvez uma clarabóia, visto que não parece imprimir o tom amarelado característico da iluminação artificial.
A superfície de longos tacos, dispostos de forma a cruzar horizontalmente a tela recebe em cheio a luminosidade intensa que invade a cena. Suas linhas servem para equilibrar a verticalidade do cavalete de grande porte que atravessa o centro do quadro demarcando nitidamente os dois planos básicos da composição. Vários elementos apresentam tal caráter ortogonal (quadros, pequeno móvel, segundo cavalete, listras da cortina) mas a composição é especialmente caracterizada pelos elementos transversais, linhas diagonais que servem como guias, conduzindo, o olhar do espectador para o desenrolar da cena ao fundo. Isso é feito por um arranjo de elementos primários e fortes que o fazem de modo flagrante (olhar da modelo, linhas inclinadas do primeiro e segundo cavaletes, bem como do móvel escuro) e por componentes secundários que, gradativa e sutilmente reforçam indiretamente esse percurso (a orientação do tapete persa, bem como as divisões que delimitam perpendicularmente as longas tábuas levam à tela em andamento, desta para o vermelho muito vivo, central no degradée na paleta do pintor e assim para este, absorvido pela temporária distração.
É significativo que o título da obra denomine o invisível da pintura, esclarecendo e, de certa forma, enriquecendo o sentido da composição. Se é uma voz, se é familiar ou estranha, nunca saberemos ao certo. A natureza do importuno permanecerá para nós um mistério. Seu autor, desconhecido.
Mas, a bem da verdade, há outro elemento invisível e anônimo no conjunto e este é o olhar: permanecemos nós, espectadores, testemunhas furtivas e silenciosas do acontecimento. Diante dessa mágica janela, divide-se nossa curiosidade entre a possível e misteriosa fonte de tal importuno e a nudez duplamente interditada, mas também duplamente sugerida da modelo. Como assim? - perguntaria o leitor. Primeiro pela atitude cuidadosa com que cobre seu corpo. Ao mesmo tempo que escrupulosamente recolhe instintivamente o saiote sobre as coxas, no gesto mesmo de fazê-lo, evidencia o colo nu, o volume do busto, marca detidamente a silhueta das ancas, deixa entrever algo das pernas, ainda objetos de tabu na época. Segundo pela suspensão da atividade do pintor, átimo, mas além do qual nada mais da cor carnal da mulher será revelada, nada além daquela mancha evanescente que se estendeu até o seio lácteo - e que não prosseguirá - mas que o desenho de um corpo completamente nu nos revela através de seus contornos.




Espectador observa a obra de José Ferraz de Almeida Junior, “O importuno”, 1898, óleo sobre tela, 145x97cm, Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo.


São aqui facilmente identificáveis os elementos de leve erotismo, característico das pinturas do Salon e o aspecto de decoro, pré requisito da pintura acadêmica. Poderia ser caracterizada na época como pintura de gênero.
Tal afirmação estaria em concordância com a existência de um outro ‘Importuno’, de autoria de Pedro Weingärtner (1853 – 1929), obra datada de 1919 (posterior, portanto, à obra de Almeida Júnior, mas que poderia sugerir que este seria um motivo usual na pintura de gênero). Também reforçam essa assertiva, como veremos mais à frente, dados de que dispomos relativos à biografia do pintor paulista. Em especial o fato de ter estudado pintura sob a tutela de Alexandre Cabanel. Outras influências diretas são Jules Le Chevrel (ca.1810 - 1872) e Victor Meirelles (1832 - 1903) dos quais foi pupilo. Sua obra conversa igualmente com a de outros artistas da época como Thomas Couture (1815 - 1879), William-Adolphe Bouguereau (1825 - 1905), Paul-Jacques-Aimé Baudry (1828 - 1886) e Alfred Agache (1843 - 1915).



O Importuno (detalhe), 1919, obra de Pedro Weingärtner, óleo sobre tela.



Pintura de Gênero

A estética do quadro em questão, usualmente classificada de pintura de interior, tem suas raízes na pintura de gênero. Contruída historicamente desde a pintura flamenga dos séculos XV e XVI com expoentes em Jan van Eyck (ca.1390-1441) e Peter Bruegel, ‘o velho’ (ca.1525-1569), consolida-se na Holanda no século XVII com Jan Vermeer (1622-1669 ou 1670).
Tal estética apresenta-se também na forma de art pompier, termo cunhado principalmente pelos adeptos do Realismo dos séculos XVIII e XIX, em alusão irônica aos capacetes usados pelos bombeiros franceses que, explicitamente derivados da estética de formas clássicas, assemelhavam-se a elmos gregos. Era considerado um estilo um tanto artificial que extrapolava o decoro e desagradava o gosto estabelecido.
Convergindo com os ideais românticos, exibia igualmente características desse movimento - além do retorno ao clássico - a “afirmação das conviccções patrióticas, políticas ou religiosas”, e a “expressão dos ideais cívicos”.
Falando especificamente do Brasil, encontramos, quanto aos primeiros valores elencados, uma grande preocupação, especialmente se levarmos em conta a necessária consolidação política da identidade nacional. Nessa empreitada podemos contar um sem número de nomes da história da pintura nacional que contribuíram para a construção da imagética e da icônica nacionais. Entre eles podemos citar Victor Meirelles (1832 - 1903), Pedro Américo (1843-1905), Araújo Porto Alegre (1854-1857) e Rodolpho Amoêdo (1857-1947).
Quanto aos ideais cívicos, estes podem ser mais facilmente identificados na obra de Almeida Júnior. O artista conseguiu de forma extraordinária sintetizar e expressar em suas telas figuras como o caipira e o sertanista. A luminosidade de seus quadros é notadamente voltada para uma paleta naturalista, que reflete a atmosfera dos trópicos.
Seja qual for o lugar que reservamos à pintura de Almeida Júnior no panorama da pintura contemporânea brasileira, as críticas ao que na arte foi e é considerado artificial e afetado, ao ‘pomposo’, à ‘arte menor’, persistem em nossos dias com força e grassa a polêmica acerca de categorias sensíveis e estéticas, inovadoras ou mesmo recorrentes como por exemplo, o kitsch e o camp, que ressurgem com força na mídia, nos museus e também no debate teórico, dentro e fora do ambiente acadêmico.



Almeida Júnior
O Importuno , 1898
óleo sobre tela, 145 x 97 cm
Acervo Pinacoteca do Estado de São Paulo/Brasil
Reprodução fotográfica Romulo Fialdini


Almeida Júnior (1850 - 1899)

José Ferraz de Almeida Júnior (Itu – SP, 1850 - Piracicaba – SP, 1899). Ingressa na Academia Imperial de Belas Artes (AIBA) em 1869, onde frequenta aulas de desenho e de pintura. Conclui estudos em 1874, abrindo no ano subsequente, ateliê próprio onde atua como retratista e professor de desenho. Em visita ao interior de São Paulo, o imperador dom Pedro II (1825 - 1891) impressiona-se com seu trabalho e concede-lhe uma bolsa de estudos para a Europa. Vive em Paris entre 1876 e 1882 e estuda na École National Supérieure des Beaux-Arts [Escola Nacional Superior de Belas Artes], sendo aluno de Alexandre Cabanel (1823 - 1889). Durante sua estada na capital francesa, participa de quatro edições do Salon Officiel des Artistes Français. Regressa ao Brasil em 1882 e expõe na AIBA as obras produzidas em Paris. Instala-se novamente em São Paulo. Em 1886, Victor Meirelles o convida para ocupar sua vaga na AIBA como professor de pintura histórica, mas este declina o convite. Seu amadurecimento artístico, adquirido ao longo de todo o percurso como pintor contribuiu para a formação, em São Paulo, de novos artistas, dentre os quais podemos destacar Pedro Alexandrino (1856 - 1942).


Referências

CHRISTO, Maraliz de Castro Vieira - A Pintura de História no Brasil do Século XIX:
Panorama Introdutório - ARBOR Ciencia, Pensamiento y Cultura, CLXXXV 740 noviembre-diciembre (2009).
arbor.revistas.csic.es/index.php/arbor/article/download/386/387

Portal do Ministério de Cultura da França.
http://www.culture.gouv.fr/GOUPIL/FILES/ART_POMPIER.html

Encilopédia Virtual Itaú Cultural de Artes Visuais.
http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm

Pinacoteca do Estado de São Paulo.
http://www.pinacoteca.org.br/pinacoteca/

Obrér Cultural - “Ação educativa: aspectos da inclusão sociocultural em museus de arte” - Oficina prática com Gabriela Aidar.
http://obrer.wordpress.com/2009/08/08/inclusao-sociocultural-nos-museus-oficina-pratica/

Reflexões acerca do Corpo




No presente texto pretendemos, numa análise sucinta, registrar algumas impressões e percepções a respeito do olhar sobre o percurso trilhado durante o semestre letivo, percurso feito de imagens, discursos e suas relações dinâmicas, biunívocas, intermitentes, imprevisíveis que nos conduziram, ora por paisagens conhecidas e familiares, ora por panoramas alienígenas nos quais os sentidos pareciam se embotar e nossas categorias habituais pareciam não se aplicar, exigindo um esforço para se apropriar ou perder de vista conceitos, expectativas, antigos posicionamentos intelectuais e disposições afetivas.
Faremos isso predominantemente na forma de análise de uma imagem de foro íntimo, cujo conteúdo está inextricavelmente ligado à nossa própria experiência pessoal. Acreditamos que esse movimento de autodesdobramento venha ao encontro de uma abordagem ‘totalizante’, de uma nova aproximação sobre a reflexão sobre a arte, em sintonia com os questionamentos contemporâneos, correspondendo o próprio sujeito da análise a seu objeto. Disso resultarão momentos em que nos permitiremos uma aproximação mais pessoal, visceral, na qual não estarão excluídas afirmações em primeira pessoa, percepções e impressões pessoais, Buscaremos, todavia, na medida do possível, salvaguardar a forma culta e o respeito às convenções inerentes ao exercício do registro acadêmico.



A Epifania do Senhor Morto

“_Vá se acostumando!” - rebateu, com ares de troça, frente à minha perplexidade, mal disfarçada por um riso sardônico - “_É mais ou menos assim que você vai parecer! (risos)”
O que eu tinha em mãos era uma máquina fotográfica modelo semi-profissional e aquilo que eu contemplava era o resultado de uma brincadeira muito comum - e divertida - entre colegas de moradia universitária e que consiste em fotografar furtivamente o outro durante o sono. Sua eficácia está ligada, naturalmente, e de forma diretamente proporcional à taxa de álcool que o retratado consumiu na noite anterior.
Mas o que era pra ser engraçado parece ter surtido o efeito oposto e não pude conter uma espécie de mal estar à primeira vista daquela figura.
“_Nossa, mas parece que eu estou morto...”
No canto de um aposento imerso numa leve penumbra, uma figura pálida, aspecto de desalinho jaz em profundo sono sobre um fino colchão, único anteparo que precariamente separa o corpo, esse frágil objeto, do chão nu, superfície azulejada, quadriculada, laje exata e fria. A barba abundante e pronunciada, numa profusão de erva em campo não cultivado, há tempos abandonado, opõe-se à calvície de trinta e poucos anos, quase sempre coberta por um onipresente chapéu e muito raramente exposta.
Esse sólido, dupla ou triplamente objetivado que sou compelido a encarar é meu corpo, complexo geométrico anguloso e esquálido no qual tenho certa dificuldade de me reconhecer e maior ainda em aceitar.
É meu corpo fora de mim, capturado pela objetiva da câmera e a mim apresentado.


Observo. É também o corpo de alguém que dorme e que no momento parece estar ausente, como que tendo momentaneamente saído a passeio ou a resolver problemas, mas que deixou seu lugar reservado. Volto logo.
Mais ainda, é o desdobramento de alguém que mesmo antes de dormir, na alienação da noite anterior - tão afinada com a pós-modernidade, com suas intensificações, seus deslocamentos e procuras -, esforçara-se já em despedir-se voluntariamente de si e, nesse sentido (ou seria ‘na contra-mão’?) luta para recuperar um corpo estranho e algo distante que, no piloto automático, havia voltado sozinho para casa. Mr. Hide mexeu na configuração e os botões não mais funcionam como deveriam! Falta de sintonia, ruído, visão dobrada, fantasma, interferência, queda de conexão...
É estranho dizer “meu corpo” visto que quase nunca é algo que eu consiga (ou queira) objetivar a não ser no espelho. Mesmo assim é um espectro de certa forma irrefletido. Quase nunca recorremos ao espelho senão por uma preocupação convencional ou prática. Habitual. O ritual mecânico da higienização, uma ajeitada às pressas no cabelo, “_com que roupa eu vou?” Vampiros uns dos outros, não nos refletimos. “_É mesmo doce estar na moda?” Eis a questão...
Têm lugar aí o cuidado com a máquina biológica, a preocupação com a ditadura do olhar do outro e apressamo-nos em substiuir o ato de ver pela substituição mesma do corpo par les revêries des objets extérieurs, pelos devaneios dos acessórios e cosméticos dos quais tão zelosamente nos cercamos. Não que estas preocupações não sejam também válidas ou necessárias. Mas, a despeito da radicalidade da nossa corporalidade, conscientes ou não, perdemos a coragem ou a espontaneidade do exercício do olhar e nos contentamos com o ato displiscente de ver.
Em certas ocasiões, contudo, não nos é dada muita escolha e é nelas e a partir delas que somos convocados à contemplação evidente de nossas limitações como que imobilizados por um filósofo da caverna, às avessas: “_Pelo Cão, contempla a sombra do pretenso sepulcro que carregas contigo! Se divisares por muito tempo o sol serás um idiota e ele acabará por arruinar tuas vistas.” Soma/sema se intercabiam, se projetam e se mesclam numa amálgama indistinguível. Indivíduo. Nessas ocasiões extraordinárias, incorporamos Odin, o deus que para obter a plena sabedoria dispôs de um de seus olhos. Só assim pode o olho olhar-se a si mesmo no olho e adentrar no lugar da árvore sagrada, axis mundi, fundamento e essência do eterno no balé imutável do devir. Empunhando um tal olhar – punhal desarmado de metafísica - alcançamos nossas pequenas grandes iluminações.
Retornemos à imagem. Pode-se ler aí também um reclame de cerveja? Reclame que nenhuma empresa séria (e o que seria isto?) que trabalhe no ramo de bebidas nunca veicularia apesar da natureza cômica e sempre bem-humorada do comercial de cerveja que tanto diverte os adultos e os pequenos ("_Conquiste-nos desde cedo, é como deve ser!").
Há mascotes aí? Sim. Há o gato. Que melhor símbolo de domesticidade e dissimulação? De familiaridade e impessoalidade? Baluartes da carruagem de Freya, a quem era dedicada a sexta-feira (Freya/fri-day) a parelha de gatos conduz a deusa. Dia ansiado por todos, cai profano toda santa semana, com uma única exceção ao ano. Santa sexta-feira! Ocasião do happy hour que se estende após a jornada de trabalho (e não raro converte-se em boêmia) é a morte do dia útil e a reencarnação, sob o olhar de um Deus banqueiro e patrão, da inútil euforia do viver. Dia da permissividade institucional, nosso pequeno carnaval cotidiano, a sexta feira está intimamente ligada, no imaginário coletivo e no repertório cultural do Ocidente, ao gato, de temperamento volúvel e de comportamento devasso e traiçoeiro.
Este sorri, formidável garoto propaganda. Não é um gato qualquer. A figura que aqui vemos é ninguém menos que o próprio Garfield, personagem do cartunista Jim Davis, com sua coloração berrante e sua expressão zombeteira. Personificação irônica do tédio do homem moderno, mais especificamente do estereótipo do cidadão estadunidense, avesso ao universo do trabalho: repetição cíclica, penosa e sem sentido. Obeso, inadequado frente aos inatingíveis padrões de beleza que construiu. Consumidor contumaz do fast-food, da programação trash televisiva, turista do itinerário kitsch das praias da West coast. Preenchendo o laconismo hesitante, a pura indefinção de seu dono, o gato, igualmente irresponsável, converte-se assim no efetivo dono da casa.
Mas além (ou aquém) desse “País das Maravilhas”, há o riso sem gato. O deslocamento, o ligeiro desconforto, o insólito, o non sense. O ar de deboche só tem por efeito contrapor-se maiormente, na imagem, à facticidade e ao caráter objetal do corpo.
Não há aqui a exuberância, a beleza hiperbólica, padronizante, nem a energia de corpos admiráveis, joviais movendo-se elástica, livre e sensualmente pela praia... Não há, sobretudo, a leveza, a clareza do crystal insinuado, valores oferecidos no pacote midiático. Não, a sacralidade não reside aí nessa confusão circundante. Pisemos com os olhos, como que pela primeira vez o solo dessa câmara (digital) funerária e calquemos o corpo mesmo, essa efígie já saqueada, cuja múmia, por não estar em lugar algum, não a guarda Bastet. Quando voltamos à atenção o silêncio da figura, que não é simplesmente o silêncio do retângulo de plasma, mas um silêncio que nos interpela, ela nos sussurra: “Decifra-me!” Quanto voltamos o olhar para este corpo, a abismo que não nos vê, ele nos devolve o olhar. Memento mori. Esses cacos, vertiginosos, fractais, nos ameaçam arrombar os olhos.
Há aí tão somente a presença/ausência de um corpo não artificialmente estetizado. São vislumbres, fragmentos, sintomas: um rosto, máscara verdadeira, manifesta inexpressividade. E a mão, hierática, pousada como mais um objeto dessa natureza morta. Há a composição, mas há o peso. Há a cena, mas, sobretudo o olhar. Emblema, não alegoria. O que há aqui é uma carcaça abandonada, esvaziada pelos excessos.
Os óculos, em sua inutilidade, depositados ao lado. Esse corpo que não me olha nem me sabe, como não mais me verão meus poucos amigos, nem me saberão seus descendentes. Ou devo dizer sucessores?
Não é raro ouvirmos alguém dizer: ”_Meus descendentes eram...” quando na verdade querem dizer antepassados. Tal confusão é compreensível se tomarmos o termo descendente como ‘aquele que desce’. O corpus familiar há muito esvanecido. O cadáver, o corpo mesmo, de que fala Debray, há pouco vivo falante e saltitante, despenca desde o alto de seu estatuto de ser para o de coisa inanimada. Converte-se, não em vítima visto que desprovida de culpa, mas em alvo preciso da lei da vida, da morte e sua gravidade. Anã branca. Estrela de braços abertos que, atingida pelo vento frio e cortante, desprende-se do móbile humano num salto mortal.
No nada? Há o eterno? Posso querer ver aí pura e simplesmente a máquina. Viatura abandonada no caminho. Talvez um aeroplano caído no meio do deserto, à espera de reparo, retificação. O que ascende nesse corpo? A alma repousa na placidez do éter celestial ou paga suas penas no lugar que a cabe na hierarquia espiralada dos infernos? Ou retorna para mais uma prova evolutiva ou purificação final? Ou finda mais morta que possa imaginar? O corpo templo sagrado parte para a solução final, liquefaz-se longe de nossas vistas ou desaparece como fumaça/ prece/holocausto. Isso, claro, antes que seja entronizada a Summa Scientia, assuma a cátedra e, daqui em diante, catalogado e rotulado, provisoriamente socializado e virtualmente disponível, membro do metacorpo, do hipercorpo humano, componha outros corpos dentro desse Corpo Sagrado, glorificado. Talvez tome seu banho nitrogenado e repouse no leito criogênico à espera do despertar para a esperada individuação ou para uma atualização de uma novíssima superumanidade. Julgamento final ou atualização biomecânica. Ser humano 2.0. Corpo novo, vida nova. Ou...
Mas eis que a o corpo ressuscita na imagem, corpo presente, senhor morto, naquilo que lhe falta, na sua ausência, nos interroga. Carcaça descartada, carta fora do baralho. O enforcado, a Morte. Nada nessa manga... A imagem volta à vida. Nada na outra. O Mago, O Louco. Magie, image como observa igualmente Debray. É assim que talvez, nessa vida, a imagem converta-se em cartão de fazer renascer.

Je pense je sui Renée Descartes.
Je revê je suis renée des cartes.

Mas outra questão me assalta: se essa reflexão, se esse discurso só me é possível porque é meu próprio corpo que ali jaz, naquilo que me desperta de surpresa, angústia, de sublime e de abjeto porque possivelmente e virtualmente morto. Ouso arriscar que não. Ouso imaginar que essa imagem fala aos outros. Além daquela reação primeira de comicidade, daquele sarcasmo, instinto tão gregário que se auto-reafirma numa tentativa de evadir-se a um mal estar e pôr-se a salvo de uma reflexão mais ponderada, grave e solitária. Não posso assegurá-lo. Muito se falou sobre isso desde a invenção da arte e da Estética. Nessa matéria somos obrigados a nos remeter ao passado, temos que recorrer ao labirinto de termos e conceitos que constituem aquilo que convencionamos chamar de disciplinas de História da Filosofia e História da Arte. Espelho, espelho meu... Na Promenade de Vasari os eleitos emergem, projetam-se, nascem para a história, trazidos à luz, para o desejo de eternidade. Aos outros, não os abrange o occhio, resultam invisíveis, relegados à esfera do invisível e, portanto da não existência. O Juízo final da arte é contínuo. Também o é o da imagem jornalística, televisiva.
Mudando constantemente de perspectiva nesse caleidoscópio de temporalidades progressivamente mais longas e espaçadas, em que o olhar se olha, saindo continuamente de camadas e camadas de bonecas russas, cuja faces e padrões só conhecemos no instante em que acabamos de sair ao cabo de mirá-las, para em seguida nos perguntarmos novamente “_Onde estamos?” Matroshka, caldeirão da bruxa, ventre da Babayaga. Saímos da arte para a imagem, desta para o olhar, e daí para encarar a morte até que ela, definitivamente(?), nos olhe de volta. Eis o que a imagem, como (auto-)conhecimento, espécie de fruto original, nos revela e com este olhar transfigurado, pomo-nos a olhar atentamente as coisas que me cercam.
Creio que começo a vislumbrar, a partir dos textos, discursos e imagens e seus desdobramentos, de cada uma dessas perspectivas, a natureza e os desafios de nossa reflexão feita ofício. Começo a divisar os desafios, a miríade de possibilidades e a dinâmica desse complexo problemático arte/imagem cujas bordas se fundem e se confundem cujo espectador deve munir-se de óculos de lentes eficazes, ora superpostas, ora excludentes. Que, sobretudo, este deva estar disposto a olhar e ver.
Acredito que a abordagem inédita, em certos momentos inusitada, com aproximações e distensões temporais abruptas, mas coerente com a abordagem dinâmica do curso tenha sido um ponto positivo a despeito do estranhamento inicial. Percurso riquíssimo em imagens, espetacular e profícuo.
Certamente houve dificuldades pessoais inerentes em definir e expressar minhas dúvidas e perplexidades tanto em sala de aula como por escrito assim como limitações e deficiências relativas ao repertório cultural necessários a assuntos tão abrangentes e em nada superficiais.
O corpo é uma interface/intersecção fascinante e depois de séculos de desvios e contornos, ruas sem saída e barreiras, há décadas começa a ser ‘sujeito’, a recuperar seu estatuto de ser, sua ‘autonomia anatômica’. Começa a revaer sua particularidade e buscar sua dignidade de ‘coisa-animal-humana-resplandecente’ tudo ao mesmo tempo, sua aura, sua inteligência própria.
Penso que a produção/fruição da imagem e da arte sejam fazeres, lugares privilegiados, onde podemos captar e jogar com nossas percepções e reflexões. Como indivíduos geografica, historicamente situados e como coletividade, cultura. Corpo considerável, corpus, constelação.