29 novembro, 2012

Mudação


As pessoas costumam dizer que atitudes valem mais do que palavras.
Eu tendo sempre concordar, até mesmo porque verbalizar nunca foi meu forte.
Mas é preciso não esquecer que dizer também é uma atitude.
Assim como o é o ato de calar.

Meu forte é o silêncio, fortaleza impenetrável, só vence a gentileza.
Que o gesto mudo diz quase tudo
e o meu fraco é beleza.

Tendo a concordar, tendo que concordar

C/galo, nas c/gordas voc/gais.

Para ViVer (e eu não VolVer)


deixa, livre,
vaie, lixe,
vixe, Vivi,
vai e vive...

22 setembro, 2012

Correspondência amorosa entre Ofélia Queiroz e Fernando Pessoa (sabotada por Álvaro de Campos)

"(...) Passaram-se nove anos.
Um dia, o meu sobrinho Carlos Queirós trouxe para casa aquele famoso retrato do Fernando a beber vinho no Abel Pereira da Fonseca (tirado pelo Manuel Martins da Hora) (...) Trazia uma dedicatória: «Carlos: isto sou eu no Abel, isto é, próximo já do Paraíso Terrestre, aliás perdido. Fernando. Dia 2/9/29» Achei muita graça, como é natural, e disse ao meu sobrinho que gostava de ter uma para mim. O Carlos disse-lhe, e passado pouco tempo ele enviou-me uma fotografia igual com esta dedicatória: « Fernando Pessoa em flagrante delitro.»
Escrevi-lhe a agradecer e ele respondeu-me. Recomeçámos então o «namoro». Isto em 1929. Eu já não trabalhava nessa altura e continuava a viver em casa de minha irmã no Rossio.
O Fernando estava diferente. Não só fisicamente, pois tinha engordado bastante, mas, e principalmente, na sua maneira de ser. Sempre nervoso, vivia obcecado com a sua obra. Muitas vezes dizia que tinha medo de não me fazer feliz, devido ao tempo que tinha de dedicar a essa obra. Disse-me um dia : «Durmo pouco e com um papel e uma caneta à cabeceira. Acordo durante a noite e escrevo, tenho que escrever, e é uma maçada porque depois o Bebé não pode dormir descansado.» Ao mesmo tempo receava não poder dar-me o mesmo nível de vida a que eu estava habituada. Ele não queria ir trabalhar todos os dias, porque queria dias só para si, para a sua vida, que era a sua obra. Vivia com o essencial. Todo o resto lhe era indiferente. Não era um ambicioso nem vaidoso. Era simples e leal.
Dizia-me: «Nunca digas a ninguém que sou poeta. Quanto muito, faço versos.»"

In.: http://poemariopessoa.blogs.sapo.pt/18339.html



"Fernando,

Vai decerto parecer-lhe bastante estranho receber uma carta minha, mas já que foi tão amável não hesitando confiar-me a sua fotografia, sabendo que era para mim, e tendo o Carlos confessado que, não sabendo mentir, me traiu e traiu o Fernando - porque o combinado comigo era pedir-lhe a fotografia, sem dizer para quem era, e creio que o combinado com o Fernando era não me dizer que lhe tinha dito que era para mim. - Enfim, com tanta combinação tinha por força que dar asneira, asneira essa, que só resultou em benefício para a minha pessoa. 1.º porque alcancei uma coisa que tanto desejava e tanto prazer me dá. 2.º porque me encorajou a escrever-lhe para lhe agradecer de todo o coração a sua interessante fotografia - em fragrante delitro - não tem vergonha?!...

Também, se o Carlos não conseguisse que o Fernando lha desse, estava condenado a ficar sem a dele, com a dedicatória e tudo, porque eu já tinha jurado roubar-lha. Assim gostei muito mais por ter vindo propriamente das suas mãos, com destino à minha pessoa, embora da parte do Fernando sem prazer algum... Adeus Fernandinho, se quiser dar-me a alegria de receber notícias suas, pode fazê-lo para a Praça D. João da Câmara, que é onde tenho estado ultimamente. Subscreve-se muito grata a Ofélia"

Este post foi escrito a propósito do pedido de alguns leitores, após a leitura do post carta de Ofélia Queiroz a Álvaro de Campos*, que também me perguntaram em que livro podiam ser encontradas as cartas. Por minha falta (meu esquecimento) olvidei-me de referir o livro, e a edição. Aqui fica, para os interessados: Cartas de Amor de Ofélia a Fernando Pessoa, Assírio & Alvim, Novembro de 1996, organização de Manuela Nogueira (meia-irmã de Fernando Pessoa) e Maria da Conceição Azevedo.

(Extraído de André Benjamim: carta de Ofélia Queiroz a Fernando Pessoa
http://andrebenjamim.blogspot.com.br/2007/04/carta-de-oflia-queiroz-fernando-pessoa.html
)
*A propósito da carta mencionada, por parte de Álvaro de Campos, ver: http://arquivopessoa.net/textos/3667

e a resposta de Ofélia: http://andrebenjamim.blogspot.com.br/2007/04/carta-de-oflia-queiroz-lvaro-de-campos.html


            “E que sobressalto em que ando todo o dia! Cada vez que a campanhia do telefone toca, o coração dá-me um pulo, depois é claro tenho uma destas desilusões, fico nervosa para todo o dia. Com a porta é a mesma coisa, por este andar arranjo uma doença cardíaca com certeza. Eu não queria ser assim mas não me posso dominar, sou d’um nervosismo incomparável, por vezes não sou eu que falo, não sou eu que ando, não sou eu que governo em mim, e do dia 9 do mês passado (faz hoje positivamente um mês) dia em que tive a alegria de receber das mãos do Carlos, a sua “Abélica” fotografia, não consegui sequer um dia, estar absolutamente serena. O Fernandinho desarranjou-me d’uma tal forma que só um dia voltarei a arranjar-me.
            Faz hoje um mês que recebi o seu retratinho; no dia 12 que recebi a sua primeira carta, que me encheu de felicidade; no dia 13 que nos falámos, que me cumulou de alegria.”

Trecho de carta de Ofélia de Queiroz a Fernando Pessoa, 09/10/1929, extraído de
Cartas de Amor de Ofélia a Fernando Pessoa. Manuela Nogueira e Maria da Conceição Azevedo, ed. Manuela Parreira Silva, Lisboa, Assírio & Alvim, 1996, p. 239.
Disponível em: http://recursos.wook.pt/recurso?&id=3516367

11 agosto, 2012

Agradecimentos

Mesmo com todo incentivo - dos meus pais, irmãs, alguns dos meus professores - para que eu me empenhasse nos estudos, é fato inegável que eu vim de um lugar onde o acesso à cultura erudita e às artes em geral era bem complicado. Mesmo assim, dentro das minhas, das nossas limitações, tornei-me um dos melhores no que fazia. Desde muito pequeno, o aprendizado solitário, concentrado, sempre me deu enorme prazer. Por essa razão, julguei durante muito tempo que era bem inteligente, mais do que a maioria.
Isso também me dava certa segurança.
Ao encontrar, contudo, de volta aos bancos da universidade, homens e mulheres, jovens via de regra - ao menos mais jovens do que eu, predominantemente - percebi o quanto me falta a aprender e quantas inteligências e coisas há, as quais, tenho plena consciência, nunca estarei apto a desenvolver ou atingir em toda uma existência de aprendizado e vivências. É espantoso e angustiante.
Acho que é uma lição difícil, das mais complicadas de se levar pra casa.
Mas como todo fato inevitável, traz também uma parcela de paz e tolerância, uma espécie de compaixão para consigo e empatia para com os outros. Traz um sentimento de encontro e realização, e um forte senso de admiração e humildade.
Dificuldades ainda há, e muitas. E outras ainda hão de surgir e desaparecer.
Mas gostaria, sobretudo, de agradecer a todos - pais, irmãs, professores (os antigos e os novos), amigos (os antigos e os novos) - por colaborarem para que esse momento fosse possível, para que haja se tornado uma realidade para mim.
Meu muitíssimo obrigado.
Espero ser capaz de retribuir na medida de minhas limitações (perdoem, o excesso de formalidade certamente é uma delas), mas também, e principalmente, das minhas capacidades.

29 junho, 2012

Não sei.



"Não sei. Falta-me um sentido, um tacto

para a vida, para o amor, para a glória...

Para que serve qualquer história,

ou qualquer facto?

Estou só, só como ninguém ainda esteve,

Oco dentro de mim, sem depois nem antes.

Parece que passam sem ver-me os instantes,

mas passam sem que o seu passo seja leve.

Começo a ler, mas cansa-me o que inda não li.

Quero pensar, mas dói-me o que irei concluir.

O sonho pesa-me antes de o ter. Sentir

é tudo uma coisa como qualquer coisa que já vi.

Não ser nada, ser uma figura de romance,

sem vida, sem morte material, uma ideia,

Qualquer coisa que nada tornasse útil ou feia,

Uma sombra num chão irreal, um sonho num transe."

1-3-1917

Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993).
 - 20.

Atribuição a Campos rejeitada: Álvaro de Campos - Livro de Versos. Fernando Pessoa. (Edição Crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993.

"The chameleon is a shame-leon."

http://www.youtube.com/watch?v=0DwzEBcjaC4&feature=related

"O camaleão é o papagaio das cores."

http://www.youtube.com/watch?v=kLBIexwg5eM&feature=related

Do terror e do emprego do terrorismo.

Você começa a ler um artigo sobre a iconografia de anjos na História da Arte (1) - talvez a mais alta das abstrações a que alguém poderia recorrer para fugir ao cotidiano - e, sem que você se dê conta, eis que a realidade - política, como não poderia deixar de ser - invade a leitura, agarra-se à interpretação, lhe puxando de volta num turbilhão que acaba, vez após vez, no impacto doído contra o concreto armado.
E há acaso algo que escape à gravidade do contemporâneo?

"Kant despoja a estética de Burke do que penso ser o seu maior desafio: mostrar que o sublime é provocado pela ameaça de nada ocorrer. O belo dá um prazer positivo. Existe, porém, outro tipo de prazer ligado a uma paixão mais forte do que a satisfação, que é dor e a aproximação da morte. [...] No léxico de Burke, esta paixão extremamente espiritual chama-se terror. Ora, os terrores estão ligados a privações: privação da luz, terror das trevas; privação do outro, terror da solidão; privação da linguagem, terror do silêncio; privação dos objetos, terror do vazio; privação da vida, terror da morte. O que é assustador, é que o 'ocorrerá' não ocorra, cesse de ocorrer.
Para que este terror se misture com o prazer e componha com ele o sentimento sublime, é ainda necessário, escreve Burke, que a ameaça que o engendra seja suspendida, mantida a uma certa distância, retida."(2)

Sublime... e estranhamente familiar.
A propósito, uma das possíveis origens da palavra sublime é a concepção de se estar sob o estrado de uma porta a comtemplar a amplidão que não encontramos no interior. Do latim sub (sob) + límen ou limis (o limen, o lintel), que está também ligada à noção de limiar, "estar no limite", a um passo além do qual a segurança, sumamente doméstica, estaria ameaçada (sensação de deja vu).
Tudo isso nos faz pensar sobre uma certa incoerência da noção de "ação terrorista". Afinal o que é o terrorismo senão um suspender, um paralisar?
Não poderia o terrorismo, no final das contas, ser definido como um mal-Estar instituído e generalizado?





(1) CALIANDRO, Stefania. O Anjo na Arte Contemporânea -  iconologia de uma presença da ausência. Cadernos de Semiótica Aplicada, Vol. 7.n.2, dezembro de 2009.
(Hiperlink disponível em: http://seer.fclar.unesp.br/casa/article/view/2322/1872)

(2) LYOTARD, [1988a, p. 110 do original] 1989a, p. 103. Retomando e criticando Kant a propósito do sublime, Lyotard (ibidem, [p. 110-111] trad. portuguesa. p. 104) Apud. CALIANDRO, op. cit.

27 junho, 2012

Carl Orff por ele MEME

Em entrevista a um correspondente do nosso blog, Carl Orff (não é o que fez o Frankenstein, hein, gentchi, Hello!!) gasta o seu latim e fala sobre sua obra aos juvenis.




"Recebi uma pá de email reclamando da peça, dizeno qui era mais hermética que pacote de bolacha brigadeiro genérica, potinho de alho em conserva e tigela nova da Tápauér (original, aquele que vem de brinde do gás num conta!).
Então eu resolvi fazer um pequeno glossário de termos mais ou menos obscuros que aparecem na obra para desfrute daqueles que, entre um Chu, um Cha, e um pop rock, gostam de lavá uma loça ouvindo os "Crássicos" (aqui entre nós, é o caso do dono desse blog ME-DÍOCRE).

Bem, então, aí vai rapeize. Paz! #partiu Schulwerk"





Omnes plangite = #todoschora 

Jubet nos gaudere = Para nossa alegria!

Vita detestabilis = CHATIADERRIMO

Ira vehementi = FUUUUUUUUUUUUUUUU

Verum est = True story

Rex sedet in vertice = Like a BOSS.

Miser, miser! = Forever alone

Ah! Sla! = Ah, vá! Também pode significar Aham, Cláudia, senta lá, dependendo da entonação; é o caso, por exemplo, do estribilho do canto 09:

"Swaz hie gat umbe,
daz sint alles megede,
die wellent an man
allen disen sumer gan! Ah! Sla!"

"Aquelas que ali giram em roda,
são todas donzelas.
Elas querem passar sem um homem
todo o verão! Aham!"

Dulciorque favis = Me gusta...

Voluptatis avidus = Daquele jeito.

Eia! = Ui!

Veni, veni, venias = Vem gente, vem gente!

Veni, veni, pulchra = Vem ni mim sua linda!

Hyrca, hyrce, nazaza, trillirivos = Que bruxaria é essa?!

Iam pereo! = #morri!

Totam tibi subdo me = Gat@, só chegar.

Virgo gloriosa! = MOTHER OF GOD!
 
Simus gloriantes et letantes = #todoscomemora

Risum dat, hac vario = LOL 





"Mar legal Carmina pira!" - comenta o genial compositor sobre a cantata.

A gente concorda, Carl, e assina embaixo: Ormano tamen curti pacarai!
Ist wir!

24 junho, 2012

Carnumen

Uma parte de mim é res de piranha
pra que outra possa seguir a salvo.
A estrada cascuda também sou eu.
E assim o montante de águas turvas,
que correm e pastam;
cruzam e somem,
sem nunca desaparecer.

Uma parte res de piranha.
Outra parte segue a salvo...
A salvo também é lá modo de dizer:
no fim das contas, o rebanho sempre vai a corte.

E acho que é exatamente por isso
que parte de mim anda já abatida.

23 junho, 2012

Unloveable



I know I'm unloveable
You don't have to tell me
I don't have much in my life
But take it - it's yours
I don't have much in my life
But take it - it's yours

I know I'm unloveable
You don't have to tell me
Message received
Loud and clear
Loud and clear

I don't have much in my life
But take it - it's yours

I know I'm unloveable
You don't have to tell me
For, Message received
Loud and clear
Loud and clear
Message received

I don't have much in my life
But take it - it's yours

I wear Black on the outside
Because Black is how I feel on the inside
I wear Black on the outside
Because Black is how I feel on the inside

And if I seem a little strange
Well, that's because I am
And If I seem a little strange
Well That's because I am

But I know that you would like me
If only you could see me
If only you could meet me

I don't have much in my life
But take it - it's yours
I don't have much in my life
But take it - it's yours
(da banda The Smiths, incluída no álbum Louder Than Bombs, 1987)

11 junho, 2012

Mihály Zichy



À primeita vista do conjunto das litogravuras de Mihály Alexandrovich Zichy (1827–1906), parece que não encontraremos mais do que o clichê, outra daquelas séries ordinárias de figuras do imaginário erótico/ pornográfico da virada do século: o repisado catálogo de posições sexuais mal disfarçado pelo voyeurismo usual sobre o corpo feminino (bastante criticado, inclusive, por correntes ativistas e intelectuais na moderna história da pintura).

Especialmente ao espectador acostumado a ver a arte como o sublime ideal clássico, romântico, da beleza elevada, pura e casta, a primeira tentação seria a de prontamente classificá-las como reles artigo de pornografia, afastando-as de uma vez por todas, afim de passar à serena comtemplação de paisagens, ao retrato ou à natureza morta.
Se nos detivermos mais cuidadosamente sobre elas, contudo, veremos que há nessas ilustrações elementos curiosos, qualidades suplementares, capazes de nos fazer pensar sobre o estatuto dessas imagens e querer experimentá-las de maneira diversa.

Não é o simples fato, ainda que significativo, de referir-se ao erótico. Boa parte da pintura do fim do século XIX e começo do XX têm, como já foi dito, o nu e o sensual como mote substancial. A questão é que podemos vislumbrar aqui boa parte dos grandes temas-tabu da história da produção visual e da expressão plástica ao longo do período. Sem qualquer critério ordenador preestabelecido e sem qualquer conotação indicativa de valor, temos: o ato sexual explícito, o homoerotismo, a sedição, o incesto e a pedofilia (ora apenas sugeridos, ora expressos de modo flagrante), a violência sexual, a masturbação _ e, se contarmos com os centauros, a prática da zoofilia.

Tampouco trata-se de julgamentos acerca da moralidade ou não dessas diversas expressões, malgrado a nossa imcapacidade de suspender nossos próprios juízos e deixar de fora da equação nossas percepções e construtos socialmente herdados. O essencial, no tocante à nossa análise é que esses registros, independente de terem sido encomendados por um cliente em particular (o que, no caso, apesar de serem gravuras reprodutíveis, seria o mais plausível) ou para exposição aberta ao público, constituem fatos visuais que nos mostram algo do universo da sexualidade desse determinado lugar e dessa época em especial.
Produzidas para usufruto pessoal e privado ou para deleite e instrução públicos, podemos encontrar na grande maioria das cenas - com exceções daquelas que, aqui e ali, parecem servir a denunciar determinada casta social - um quê de livre naturalidade e profunda intimidade. Mesmo aquelas que poderíamos considerar como mais desconcertantes, parecem nos provocar, deixando-nos suspensos entre o que poderia ser a apresentação do drama humano em cada uma das personagens, que cega e sofreguidamente busca saciar suas necessidades - de contato, de afeto - ao ponto de atingir, em alguns momentos, o que a sociedade encararia como perversão. Ou, melhor dizendo, pelo fato mesmo de merecerem durar, perpetuando-se como obras materiais, visíveis, constituam uma crítica não verbalizada à ideia de perversão, daí sua dimensão subversiva e política, questionando os padrões em voga e o controle exercido na época tanto sobre as relações interpessoais, como sobre a vida prática de cada indivíduo em particular. Em última instância, sobre o seu próprio imaginário. Assim, tais imagem influiriam, assim, não só sobre os padrões de conduta e comportamento, mas também sobre o pensamento de uma época.
No fim das contas, parece que o mérito do artista é mexer com o imaginário do espectador.
Suas imagens certamente deveriam ter na época um quê de perturbador, ao dar a ver, de forma explícita, num contexto repressivo em certa medida, o caráter ambíguo do desejo e a força incontornável do impulso sexual, que é também afetivo, emotivamente carregado de memórias prazerosas e frustrantes. Impulso presente na criança, nos jovens, na pessoa adulta, no homem adulto, na gestante e naquela que dá o peito ao filho, permanecendo acesa a chama ainda, no velho já combalido e na mulher em idade avançada, até a morte. Desejo e vida, mistérios não passíveis de separação. E quem de nós irá dizer que elas perderam por completo esse qualidade de uma só vez familiar e inquietante?
Cremos que (também) por isso se destacaram de toda a produção semelhante que certamente havia na época e que por essa qualidade sejam hoje consideradas artísticas, posto que uma das funções primordiais da arte seja balançar os alicerces daquilo que se encontra há tempos estabelecido e solidificado.
Seriam, então, essas imagens capazes ainda de remexer no fundo do nosso armário/ imaginário já tão vasculhado pela psicanálise e pelas críticas contemporâneas e viciado pela rotatividade-repetição incessante da cultura visual das grandes mídias (pós-)modernas? Aos curiosos de plantão, uma parte do trabalho do gravurista e pintor húngaro pode ser vista em: http://www.eroti-cart.com/index.php?main_page=index&cPath=53_62
Resta, por fim, salientar que uma análise mais direta e pragmática sobre as influências, recursos e contatos de que dispunha o artista na época, faz-se necessária para formar um juízo mais crítico e embasado sobre a sua produção, determinar qual o peso real que desempenhou cada um desses fatores na sua trajetória.
Mas essa é uma tarefa para outra(s) madrugada(s) - ou outras pessoas que, como eu, sofram de insônia aguda e crônica.
Sendo assim, passo aqui a bola.
Ou a peteca.
Ou o bastão...

08 junho, 2012

Todos nós já ouvimos aquelas histórias de meninos e meninas-lobo, privados do contato humano, perdidos para a civilização. Bem, alguns de nós são o oposto disso, sem deixar de ser o contrário. Alguns de nós foram criados por livros, "ao pé da letra". Não Mogli, mas Bibli, meninos e meninas-livro.
É como me sinto, às vezes.
Talvez por isso a tendência ao literal, à compulsão analítica, a catalogar as pessoas, a interpretá-las, esgotá-las.
Talvez por isso o refúgio na academia, uma selva cheia de sons familiares, ecos reconfortantes de uma alcatéia cinzenta, ancestral.
Talvez por isso me apegue de modo desesperado a pessoas empáticas, sociáveis. Elas se comunicam de uma forma que não aprendi, regurgitam outras coisas.
Em grande parte sou produto da contingência dos livros a que tive acesso, que me cercaram e aos quais fui levado a abraçar.
A solidão permanece, contudo, assim como a busca.
There I go. Turn the page.

17 maio, 2012

24 abril, 2012

Veríssimo

"Bibiana tinha um rosto redondo, olhos oblíquos e uma boca carnuda em que o lábio inferior era mais espesso que o superior. Havia em seus olhos, bem como na voz, qualquer coisa de noturno e aveludado. (...) Pedro Terra às vezes inquietava-se pensando no gênio da filha. Era voluntariosa, duma teimosia nunca vista, e dum orgulho tão grande que era capaz de morrer de fome e de sede só para não pedir favores aos outros. No entanto, quem olhasse para ela julgaria, pelo seu suave aspecto exterior, estar diante da criatura mais meiga e submissa do mundo."

Trecho do romance Um certo capitão Rodrigo (1949), do escritor Érico Veríssimo, que compõe a robusta trilogia O Tempo e o Vento (finalizada em 1962).

19 março, 2012

ALGUMAS IDEIAS PARA UM PARALELO ENTRE O TRIO: CORINGA, DUAS-CARAS E BATMAN (THE DARK KNIGHT) E A NOÇÃO DE ARTE CONTEMPORÂNEA (numa noite de insônia e ócio).


Sabemos da dificuldade extrema de definir e delimitar os contornos do que seja a arte contemporânea, nas suas expressões plurais e também na crítica, que constitui posicionamentos e apreciações diversas e quase sempre divergentes em relação a ela.O que nos propomos aqui é um exercício de reflexão mais livre e mesmo aporístico a respeito dessas concepções e impressões a partir de uma obra da indústria cultural cinematográfica estadunidense: o filme Batman, O Cavaleiro das Trevas (2008), dirigido por Christopher Nolan e suas correspondências e divergências com a noção corrente de arte contemporânea.


Alguns predicados comumente atribuídos à arte contemporânea são que ela:

  •  Relaciona, historicamente, política e identidade - Há uma tradição por parte de determinados grupos politicamente engajados de, através de ações artísticas, buscar a afirmação de uma identidade (negros, mulheres, homossexuais). A princípio na esteira dessa tradição opera-se, contudo, no filme uma inversão dela ao ter como atores da performance os internos do hospício de Arkhan, perfil majoritário entre os homens do Coringa. Ao mesmo tempo em que protagonizam como grupo a performance, ambiguamente realizam a negação, dessa vez não do estereótipo, mas da noção mesma de identidade e seus atributos elencados e criticados por Foucault e Bourdieu, entre outros (constância, coerência, presivibilidade,inteligibilidade, confiabilidade, autoridade). O  próprio Coringa constitui a figura do "outsider" por excelência (sem nome,digitais, DNA, registro dentário ou histórico de qualquer espécie. Mesmo sua biografia varia de interlocutor para interlocutor, constituindo uma performance que procura conversar com a sombra do outro, com seu aspecto negado e reprimido); Percebemos aí outra característica atribuída à arte contemporânea que é aproximar-se do gosto pelo trocadilho, pelas inversões, jogos complexos de movimentos sucessivos, trocas de sinal, ambigüidades.
  • Privilegia o corpo como meio de expressão, levando-o ao extremo - Desafia os limites habituais entre a arte e a vida; (como quando o Coringa coloca-se em meio ao tráfego, em linha de colisão, literalmente "na contra-mão", Duas-Caras alvejando o motorista de Maroni estando no interior do veículo em alta velocidade. As cicatrizes de Bruce Wayne e a própria máscara do Coringa (e depois a do Duas Caras) inscrevem-se na própria carne, inseparáveis desta) ilustrando sua condição (marcados, cindidos em si mesmos, mas expressamente em conformidade com um mundo em crise);
  •   Incorpora e transforma o espaço, especialmente o urbano (carro de bombeiro em chamas no meio da avenida (mais um exemplo de inversão), explosão do hospital, interdição das pontes e viadutos de Gotham);

  •  "_Hoje à noite vocês participarão de um experimento sociológico." (Coringa)
Experimental, suscita a reação ou participação ativa, e no mais da vezes, efêmera, do público (hapenning), no extremo, como é o caso do filme, chegando ao suicídio ou homicídio (roubo ao banco, atentado contra o prefeito, caça a Coleman Reese, seguidos lances de moeda de Duas-Caras para decidir sobre a vida ou morte de si e de outros, explosão das duas balsas - sintomática a duplicação : Liberty (que transporta civis)/ Spirit (que carrega prisioneiros) ();
  • "_Havia um projeto nos anos 60 chamado SkyHook..." (Lucius Fox)
 Apropria-se do repertório, temática e do métier tradicionais, num diálogo que procura correspondências e transformações (Lucius: )
  • "_Pela magia do diesel e do nitrato de amônia eu estou pronto a fazê-los decolar às alturas." (Coringa)
 Enfatiza o conceito e o processo, evidenciados na materialidade e/ou explicitados no fazer, seja ou não registrado para a posteridade ("mágica" do desaparecimento do lápis, registro prévio em vídeo da instalação "o batman enforcado".);
  • "_Não se trata de dinheiro, trata-se de mandar uma mensagem" (Coringa)
 Interpreta e questiona o mercado, o sistema de arte e a renda da arte (o bandido de Burma que jogava fora pedras preciosas, o Coringa queimando dinheiro (numa alusão inequívoca à noção de potlatch à que alude Marcel Mauss no seu Ensaio Sobre a Dádiva)
  
  • "_Esse cara não tem regras!" (gangster em relação ao Coringa)
Ao mesmo tempo parece fechar-se num formalismo em que o único valor é a obra em si e por si mesma - como define o próprio Coringa:"Sabe o que eu sou? Eu sou um cão perseguindo carros! Eu não saberia o que fazer com eles se eu os alcançasse! Sabe? Eu simplesmente faço coisas. A máfia tem planos, a polícia tem planos... São maquinadores, maquinadores tentando controlar seus mundinhos. Eu não sou um maquinador. Eu tento mostrar a eles quão patéticas são suas tentativas de controlar as coisas. Os maquinadores o colocaram onde você está. Você mesmo [Duas Caras] era um maquinador,você tinha planos e olha só onde eles o levaram [condição de cisão fundamental, beirando a esquizofrenia]! Eu só fiz o que de melhor eu sei fazer: peguei seu planozinho e o fiz sair pela culatra! Olhe o que eu fiz a essa cidade com uns poucos galões degasolina e um punhado de balas. Hum? E sabe o que eu percebi? Ninguém entra em pânico quando as coisas "correm de acordo com o plano". Mesmo quando o plano é horripilante! Se eu disser à imprensa que, por exemplo, um bandido será baleado ou que uma tropa de soldadinhos vai explodir, ninguém entra em pânico, porque tudo isso é parte do plano.Mas se eu disser que um só prefeitinho vai morrer, então todo mundo perde a cabeça! Introduza um pouco de anarquia, irrite a ordem estabelecida, e tudo vira um caos. Eu sou um agente do caos. Você sabe qual é o problema do caos? É que ele é imparcial."
  •  "_A única maneira sensata de se viver nesse mundo é sem regras." (Coringa)
 Critica a ordem das coisas relativizando o código moral e social.
  • "_Vê, eu não sou um monstro, só estou um pouco à frente!" (Coringa)
 Dialoga estreitamente com a ideia de originalidade, inovação e vanguarda.  Esta noção parece estar ligada às ações terroristas que, em reação ao chamado terrorismo de Estado (ou institucional) reage levando ao extremo, extrapolando assim as consequências mesmas do sistema, já implicadas em sua dinâmica (ver o pronunciamento de Stockhausen a respeito do 11 de setembro e as muitas crítica que suscitara);
  • Comunica-se com o público por meio de figuras emblemáticas da indústria cultural, signos e símbolos do cotidiano e utiliza-se da máquina do espetáculo para que esta capte e retransmita sua mensagem (a chuva de cartas, a figura do palhaço maldito, o "Batman" enforcado na janela);
  • Combina elementos híbridos da forma consagrada - teatro (máscara, maquiagem, capa, fantasia, uniforme), artes visuais, pintura, escultura, literatura com o uso de mediações tecnológicas (televisão, cinema, informática).
  •  " _ Sou um cara de gosto simples. Aprecio dinamite, pólvora e gasolina. Sabe o que essas três coisas têm em comum? São baratas." (Coringa)
 Preza pelo despojamento dos materiais, simplicidade, neutralidade (especialmente no caso do Coringa).
  • "_Belo, não acha?" 
         "_Belo?! Antiético! E perigoso." (Breve diálogo entre Batman e Lucius Fox)
 Ao mesmo tempo faz circular volumes significativos do capital (principalmente no caso da Wayne Enterprises) estabelecendo vínculos com o mundo empreendedor da tecnologia e do design que desafiam e quebram limites (Batmóvel, batmoto, Lamborghini, galpões high-tech esteticamente minimalistas, salas corporativas dos arranha-céus de Manhattan), da indústria bélica "inteligente"(armaduras, armas e munição, explosivos), de telecomunicação (celulares e outros dispositivos) e da imagem (scanners avançados, gráficos que se utilizam de logaritmos  complexos para reconstituição de imagens, sonar e outros tipos de mecanismos de amplo espectros da visão); 
  • Faz-se coletivamente, questionando o mito do gênio subjetivo do atelier embora conserve o aspecto fetichista de marca (Coringa e pessoas com quem estabelece parcerias temporárias de uma lado e Batman (um mega empresário), Alfred, Lucius e todo o departamento de pesquisa ligado ao subsídios do governo de outro lado - Lei Rouanet*? fica a pergunta);
  • Restringe-se a um pequeno círculo de iniciados (modo de seleção do Coringa; círculo político, social e econômico do Batman) 
Parece-nos que a obra cinematográfica reafirma de um lado a noção formalista da arte como imparcial, arte pela arte e do outro ressuscita um certo funcionalismo à medida em que vincula a arte ao mundo maravilhoso da inovação e da criação, desta feita não mais artística e artesanal mas tecnológico-corporativa. O script reafirma o mito da neutralidade descomprometida da arte, quando na verdade é sabido que ela, especialmente na performancedos anos 60 e 70, tentava fugir à lógica do capitalismo em expansão - que por sua vez apresentava-se, e agora mais do que nunca, como única via de liberdade, democracia e felicidade. Por essa razão tais artistas são rotulados como puramente irracionalistas e em última instância, anárquicos. Entretanto, se o Coringa afirma ser um cão e atacar como um (cf. o caráter originário do cinismo no mundo grego), acontece que mesmo cães raivosos têm um dono como afirma Duas Caras: "_O Coringa é apenas um cão raivoso (cachorro louco). Eu quero quem o soltou da coleira". De maneira alguma os artistas podem se eximir de suas reponsabilidades e de sua função social escondendo-se atrás de uma pretensa imparcialidade ou neutralidade, ou ainda sob a impostura do ismo, do estilo (como o "dadaísmo"**).
Quanto à utopia tecnológica de paz social pelo controle por parte do Batman sabemos há tempos das muitas mazelas que o sistema de monopólio capitalista impõe sobre as economias e, em últma instância sobre os cidadãos destituídos de seus direitos nas periferias dos grandes centros  e sobretudo na periferia do capitalismo global. Parece que, no fim das contas, não há heróis nessa história. É isso?


*Sérgio Paulo Rouanet, Secretário de Cultura, lança Lei Federal de Incentivo à Cultura (1991), garantindo isenções fiscais, seja nos âmbitos municipal (IPTU, ISS), estadual (ICMS) ou federal (IR) - Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac). A Lei é regulamentada em 1995. Concomitantemente, empréstimos junto ao Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), investindo na reurbanização de centros históricos como área de turismo cultural. Nos dizeres de Renata da Motta:“A partir dos anos de 1990 (…) [a] preservação do patrimônio histórico de centros urbanos torna-se prioridade nos discursos governamentais, com foco no potencial turístico e na construção de equipamentos culturais de grande porte. Esse discurso encontrava-se em consonância com a visão empresarial sobre gestão urbana proposta nos planos estratégicos das agências multilaterais como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento que, posteriormente pautariam o convênio do Programa Monumenta, voltado à recuperação do patrimônio histórico de diversas cidades brasileiras. (…) Com a implantação da Lei Federal de Incentivo à Cultura (Lei Rouanet), consolida-se o discurso de substituição de parte da ação do Estado pela dos empresários e a modernização da gestão pública. A cultura brasileira é elevada (sic) a instrumento de marketing nacional, reafirmando o país como um destino turístico privilegiado pela sua singularidade cultural. Nesse movimento criou-se um ambiente favorável ao fomento no Brasil de um nicho já desenvolvido nos países centrais: das intervenções urbanas que incluem equipamentos culturais, envolvendo artes e instituições financeiras” (MOTTA, Renata Vieira da. Museu e Cidade: o impasse dos MAC's, Tese de doutorado, FAUUSP,  São Paulo, 2009. p. 76-77).

**De fato, segundo declarações dos artistas envolvidos à epoca com essa expressão, não existe dadaísmo ou o movimento dadaísta, só o Dada. Ver os manifestos proferidos pelo poeta romeno Tristan Tzara. O dadaísmo russo, contudo, já apresenta uma outra conformação, abarcando um componente de ironia política bem mais pronunciado.

13 março, 2012

Eu com pra2o, ela compra2ia, nós compra(s2)eremos

Logo tipo,
não é preciso TV
pra sentir, pra saber.
Leve, de olhos fechados,
a comer-se, a alisar,
sobretudo deixar marcas,
sem anúncio, sem etiqueta.
Amor é com sumo
(propaga, anda!).
Produto é só mercadoria.

24 fevereiro, 2012

Repisando Metáforas Pessoais

Mais que as percepções abstratas das impressões intelectuais e sentimentais traduzidas em palavras,  esbarram-me em Pessoa, há muito antecipadas, as imagens mesmas que eu, iludido, estivera convencido de ter acabado de inventar!
Quase chego a querer acreditar haver céu só pra poder encontrar Pessoa. Mesmo no inferno seria consolo.
No purgatório, a perfeição.

"Nunca pude convencer-me de que podia, ou de que alguém seguramente poderia, dar alívio certo ou profundo, e muito menos cura, aos males humanos. Mas nunca, também, pude tirar deles o pensamento; a mais pequena angústia humana - mais, a mais leve imaginação dela - sempre me angustiou, me transtornou, me tirou do poder de me concentrar e de me egoizar. O convencimento da futilidade de toda a terapêutica para a alma deveria, por certo, erguer-me a um píncaro de indiferença, entre o qual e as agitações da terra velassem tudo as nuvens daquele mesmo convencimento. O pensamento, porém, poderoso como é, nada pode contra a rebeldia da emoção. Não podemos não sentir, como podemos não andar. Assim assisto, e assisti sempre, desde que me lembro de sentir com as emoções mais nobres, à dor, à injustiça e à miséria que há no mundo do mesmo modo que assistiria um paralítico ao afogamento de um homem que ninguém ainda que válido, poderia salvar. A dor alheia tornou-se em mim mais do que uma só dor - a de a ver, a de a ver irreparável, e a de saber que o conhecê-la irreparável me empobrece até da nobreza inútil de querer ter os gestos de a reparar. A minha falta de impulso foi sempre, afinal, a fonte da origem destes males todos - o não saber querer antes de pensar, o não saber entregar-me, o não saber decidir do único modo como se decide - com a decisão, que não com o conhecimento -, burro de Buridan morrendo na bissectriz matemática da água da emoção e da palha do esforço, podendo, se não pensasse, morrer sim, porém não de fome nem de sede.

Tudo, quanto penso ou sinto, inevitavelmente se me volve em modos de inércia. O pensamento, que em outros é uma bússola da acção, é para mim um microscópio dela, que me faz ver universos a atravessar onde um passo bastara para transpor - como se o argumento de Zenão, da intransponibilidade de cada espaço, que, por ser infinitamente divisível, é pois infinito, fosse uma droga estranha com que me houvessem intoxicado o organismo espiritual. E o sentimento, que em outros se introduz na vontade como a mão na luva, ou a mão nos copos da espada, foi sempre em mim uma outra maneira de pensar - fútil como uma raiva com que trememos até nos não podermos mexer, espécie de pânico da exaltação que, como o pânico, deixa colado ao chão o medroso a quem o mesmo medo deveria fazer fugir.


Toda a minha vida tem sido uma batalha perdida no mapa; a cobardia nem sequer foi no campo, onde talvez a não houvesse, mas no gabinete do chefe do Estado Maior, e de ele a sós com a sua convicção da derrota. Não se ousou o plano porque haveria de ser imperfeito; não se ousou torná-lo perfeito, ainda que não pudesse realmente sê-lo, porque a convicção de que não seria perfeito quebrou a vontade com que ele, ainda que imperfeito, sempre se poderia tentar. Nem me ocorreu nunca que o plano, embora imperfeito, poderia ser mais perfeito que o do inimigo. É que o meu vero inimigo, vitorioso contra mim desde Deus, era aquela mesma ideia de perfeição, que me saía à frente antes que todas as hostes do mundo, na vanguarda trágica de todos os comandos do mundo."

s.d.

Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.
- 197.

«A Educação do Estóico»

19 fevereiro, 2012

Been há long time (in fact a have bread one) que não shove it na minha aorta.

Queria colar no seu pescoço. Ser colar e circular.
Ao invés sento só, pés coçando.
Jugo lar.

algebra I

Wish I could, rebel, all loose from sanctity, only grab her. That would be beauty.

Pes-coçando.

https://www.facebook.com/media/set/?set=a.2163456944904.81683.1801030330&type=1
Inter-posto, entre parentes(es), inter-ligando,  inter-esses, entre-tido, inter-regnos, inter-agindo, entre-meado, inter-conectando, inter-stício, en-cabeçado, en-troncado, entr-in-cheirado, inter-urbano, inter-dependente, inter-dito, entre-olhado, inter-rogado, inter-calado,entre-linha, inter-(h)ino, inter-jetivo, inter-me-diário, inter-cessão (secção), inter-pelado, inter-laçado, inter-mittente,  inter-minável, entre-aberto, entre-tanto, inter-ruptor, entre-torcido, inter-ferindo, entre-cortado, inter-nauta, inter-nação.

25 janeiro, 2012

In diesem Haus gibt es eine Gottheit (und es ist bei mir tropft)


Esgotamento, sono, reencontro com o silêncio, coincidindo com aquela nostalgia - misto de solidão, (até onde necessária?) e a eterna tentação de fugir ao nada, ao quotidiano existencial. Re-sentimentos. "Louco,
fora das fronteiras da internabilidade", eu dizia,
dando ouvidos a Pessoa. Nada poderia ser
 mais enganoso. Não. Não fora posto
que internado em mim mesmo,
paciente (que remédio?), submetido
à mesma ração de pensamento,
regime de autome(n)dicação.
Meu sanatório sou eu.
Eu, minha perambulância.
Eu, comprimido.
Eu, prontuÁrio.
Pra onde vou quando me der a(u)ta?
Quando me alt(u)ar? (mia alto o ar, me out to art, autuar, toire, toir, toi, oi...       
Abraço a camisa.
In s(ómnia)...
De-mentia.
Se(m)cura.
esgota-mento
esgota-ment
sgota-me
got a
got
go
o
o ) )  )    )       )          )

10 janeiro, 2012

Com fiança:

eu nunca a prendo...

E agora, José? (Carlos Drummond de Andrade)

Se um homem encara a vida de um ponto de vista artístico, seu cérebro passa a ser seu coração. (Oscar Wilde)

"O coração, se pudesse pensar, pararia. (Bernardo Soares/ Fernando Pessoa)

09 janeiro, 2012

allembru

"Há um grande número de amigos de Robert presentes, mesmo no inverno. Penso que é porque Robert era incomum. Creio que é o que trouxe muitos de vocês aqui.
Marido e pai amoroso por anos. Bom amigo de alguns de vocês há ainda mais tempo.
Tenho certeza que é por isso que apreciamos e amamos Robert.
Ele foi excelente.
Altruísta.
Resoluto.


(Dave, em off) Lembro-me uma vez ... ficar imaginando como seria minha vida, o que eu poderia ser. Imaginei ter todas essas qualidades. Fortes, positivas... atributos ali, à mão, que a gente pudesse simplesmente pegar do outro lado do quarto. Mas com o passar do tempo ... poucas tornaram-se quaisquer qualidades que eu realmente tivesse. E todas as possibilidades que eu enfrentei, e as muitas pessoas que eu poderia ser, quedaram todas reduzidas a cada ano para menos e menos ... até que finalmente se restringiram a uma... a quem eu sou.
E isso é quem eu sou... o homem do tempo."


(The weatherman/ O Sol de Cada Manhã, 2005, direção de Gore Verbinski)


08 janeiro, 2012

Irã

Responda rápido, Joãzinho: Se os persas vêm da Pérsia, daonde vêm os Medos?
Da Mídia, professora!

03 janeiro, 2012

Diário lúcido (Bernardo Soares)


A minha vida, tragédia caída sob a pateada dos anjos e de que só o primeiro acto se representou.

Amigos, nenhum. Só uns conhecidos que julgam que simpatizam comigo e teriam talvez pena se um comboio me passasse por cima e o enterro fosse em dia de chuva.

O prémio natural do meu afastamento da vida foi a incapacidade, que criei nos outros, de sentirem comigo. Em torno a mim há uma auréola de frieza, um halo de gelo que repele os outros. Ainda não consegui não sofrer com a minha solidão. Tão difícil é obter aquela distinção de espírito que permita ao isolamento ser um repouso sem angústia.

Nunca dei crédito à amizade que me mostraram, como o não teria dado ao amor, se mo houvessem mostrado, o que, aliás, seria impossível. Embora nunca tivesse ilusões a respeito daqueles que se diziam meus amigos, consegui sempre sofrer desilusões com eles — tão complexo e subtil é o meu destino de sofrer.
Nunca duvidei que todos me traíssem; e pasmei sempre quando me traíram. Quando chegava o que eu esperava, era sempre inesperado para mim.
Como nunca descobri em mim qualidades que atraíssem alguém, nunca pude acreditar que alguém se sentisse atraído por mim. A opinião seria de uma modéstia estulta, se factos sobre factos — aqueles inesperados factos que eu esperava — a não viessem confirmar sempre.
Nem posso conceber que me estimem por compaixão, porque, embora fisicamente desajeitado e inaceitável, não tenho aquele grau de amarfanhamento orgânico com que entre na órbita da compaixão alheia, nem mesmo aquela simpatia que a atrai quando ela não seja patentemente merecida; e para o que em mim merece piedade, não a pode haver, porque nunca há piedade para os aleijados do espírito. De modo que caí naquele centro de gravidade do desdém alheio, em que não me inclino para a simpatia de ninguém.
Toda a minha vida tem sido querer adaptar-me a isto sem lhe sentir demasiadamente a crueza e a abjecção.
É preciso certa coragem intelectual para um indivíduo reconhecer destemidamente que não passa de um farrapo humano, abono sobre-vivente, louco ainda fora das fronteiras da internabilidade; mas é preciso ainda mais coragem de espírito para, reconhecido isso, criar uma adaptação perfeita ao seu destino, aceitar sem revolta, sem resignação, sem gesto algum, ou esboço de gesto, a maldição orgânica que a Natureza lhe impôs. Querer que não sofra com isso, é querer de mais, porque não cabe no humano o aceitar o mal, vendo-o bem, e chamar-lhe bem; e, aceitando-o como mal, não é possível não sofrer com ele.

Conceber-me de fora foi a minha desgraça — a desgraça para a minha felicidade. Vi-me como os outros me vêem, e passei a desprezar-me não tanto porque reconhecesse em mim uma tal ordem de qualidades que eu por elas merecesse desprezo, mas porque passei a ver-me como os outros me vêem e a sentir um desprezo qualquer que eles por mim sentem. Sofri a humilhação de me conhecer. Como este calvário não tem nobreza, nem ressurreição dias depois, eu não pude senão sofrer com o ignóbil disto.

Compreendi que era impossível a alguém amar-me, a não ser que lhe faltasse de todo o senso estético — e então eu o desprezaria por isso; e que mesmo simpatizar comigo não podia passar de um capricho da indiferença alheia.

Ver claro em nós e em como os outros nos vêem! Ver esta verdade frente a frente! E no fim o grito de Cristo no calvário, quando viu, frente a frente, a sua verdade: Senhor, senhor, porque me abandonaste?
s.d.
 
Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.I. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.
 - 243.
"Fase confessional", segundo António Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Vol II. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América, 1986.