22 setembro, 2012

Correspondência amorosa entre Ofélia Queiroz e Fernando Pessoa (sabotada por Álvaro de Campos)

"(...) Passaram-se nove anos.
Um dia, o meu sobrinho Carlos Queirós trouxe para casa aquele famoso retrato do Fernando a beber vinho no Abel Pereira da Fonseca (tirado pelo Manuel Martins da Hora) (...) Trazia uma dedicatória: «Carlos: isto sou eu no Abel, isto é, próximo já do Paraíso Terrestre, aliás perdido. Fernando. Dia 2/9/29» Achei muita graça, como é natural, e disse ao meu sobrinho que gostava de ter uma para mim. O Carlos disse-lhe, e passado pouco tempo ele enviou-me uma fotografia igual com esta dedicatória: « Fernando Pessoa em flagrante delitro.»
Escrevi-lhe a agradecer e ele respondeu-me. Recomeçámos então o «namoro». Isto em 1929. Eu já não trabalhava nessa altura e continuava a viver em casa de minha irmã no Rossio.
O Fernando estava diferente. Não só fisicamente, pois tinha engordado bastante, mas, e principalmente, na sua maneira de ser. Sempre nervoso, vivia obcecado com a sua obra. Muitas vezes dizia que tinha medo de não me fazer feliz, devido ao tempo que tinha de dedicar a essa obra. Disse-me um dia : «Durmo pouco e com um papel e uma caneta à cabeceira. Acordo durante a noite e escrevo, tenho que escrever, e é uma maçada porque depois o Bebé não pode dormir descansado.» Ao mesmo tempo receava não poder dar-me o mesmo nível de vida a que eu estava habituada. Ele não queria ir trabalhar todos os dias, porque queria dias só para si, para a sua vida, que era a sua obra. Vivia com o essencial. Todo o resto lhe era indiferente. Não era um ambicioso nem vaidoso. Era simples e leal.
Dizia-me: «Nunca digas a ninguém que sou poeta. Quanto muito, faço versos.»"

In.: http://poemariopessoa.blogs.sapo.pt/18339.html



"Fernando,

Vai decerto parecer-lhe bastante estranho receber uma carta minha, mas já que foi tão amável não hesitando confiar-me a sua fotografia, sabendo que era para mim, e tendo o Carlos confessado que, não sabendo mentir, me traiu e traiu o Fernando - porque o combinado comigo era pedir-lhe a fotografia, sem dizer para quem era, e creio que o combinado com o Fernando era não me dizer que lhe tinha dito que era para mim. - Enfim, com tanta combinação tinha por força que dar asneira, asneira essa, que só resultou em benefício para a minha pessoa. 1.º porque alcancei uma coisa que tanto desejava e tanto prazer me dá. 2.º porque me encorajou a escrever-lhe para lhe agradecer de todo o coração a sua interessante fotografia - em fragrante delitro - não tem vergonha?!...

Também, se o Carlos não conseguisse que o Fernando lha desse, estava condenado a ficar sem a dele, com a dedicatória e tudo, porque eu já tinha jurado roubar-lha. Assim gostei muito mais por ter vindo propriamente das suas mãos, com destino à minha pessoa, embora da parte do Fernando sem prazer algum... Adeus Fernandinho, se quiser dar-me a alegria de receber notícias suas, pode fazê-lo para a Praça D. João da Câmara, que é onde tenho estado ultimamente. Subscreve-se muito grata a Ofélia"

Este post foi escrito a propósito do pedido de alguns leitores, após a leitura do post carta de Ofélia Queiroz a Álvaro de Campos*, que também me perguntaram em que livro podiam ser encontradas as cartas. Por minha falta (meu esquecimento) olvidei-me de referir o livro, e a edição. Aqui fica, para os interessados: Cartas de Amor de Ofélia a Fernando Pessoa, Assírio & Alvim, Novembro de 1996, organização de Manuela Nogueira (meia-irmã de Fernando Pessoa) e Maria da Conceição Azevedo.

(Extraído de André Benjamim: carta de Ofélia Queiroz a Fernando Pessoa
http://andrebenjamim.blogspot.com.br/2007/04/carta-de-oflia-queiroz-fernando-pessoa.html
)
*A propósito da carta mencionada, por parte de Álvaro de Campos, ver: http://arquivopessoa.net/textos/3667

e a resposta de Ofélia: http://andrebenjamim.blogspot.com.br/2007/04/carta-de-oflia-queiroz-lvaro-de-campos.html


            “E que sobressalto em que ando todo o dia! Cada vez que a campanhia do telefone toca, o coração dá-me um pulo, depois é claro tenho uma destas desilusões, fico nervosa para todo o dia. Com a porta é a mesma coisa, por este andar arranjo uma doença cardíaca com certeza. Eu não queria ser assim mas não me posso dominar, sou d’um nervosismo incomparável, por vezes não sou eu que falo, não sou eu que ando, não sou eu que governo em mim, e do dia 9 do mês passado (faz hoje positivamente um mês) dia em que tive a alegria de receber das mãos do Carlos, a sua “Abélica” fotografia, não consegui sequer um dia, estar absolutamente serena. O Fernandinho desarranjou-me d’uma tal forma que só um dia voltarei a arranjar-me.
            Faz hoje um mês que recebi o seu retratinho; no dia 12 que recebi a sua primeira carta, que me encheu de felicidade; no dia 13 que nos falámos, que me cumulou de alegria.”

Trecho de carta de Ofélia de Queiroz a Fernando Pessoa, 09/10/1929, extraído de
Cartas de Amor de Ofélia a Fernando Pessoa. Manuela Nogueira e Maria da Conceição Azevedo, ed. Manuela Parreira Silva, Lisboa, Assírio & Alvim, 1996, p. 239.
Disponível em: http://recursos.wook.pt/recurso?&id=3516367