15 janeiro, 2011

O Cubismo de Gleizes e Metzinger e a pintura de Mondrian



“Um quadro que não contivesse senão retas ou curvas, não exprimiria a existência”. [1] (Albert Gleizes; Jean Metzinger apud CHIPP,1999, p. 215)

É quase impossível nos depararmos sem algum grau de perplexidade frente a essa afirmação, feita no início do século por dois dos maiores defensores do cubismo. Tal provocação nos traz à memória uma gama de obras de pintores renomados, obras que se encaixam perfeitamente nessa categoria e suscita em nós quase de imediato a seguinte questão: “_Mas e Mondrian?” Muito frequentemente, seja no restaurante, seja no banco, num anúncio de revista ou comercial de televisão, nos deparamos com reproduções de suas inconfundíveis composições: linhas verticais e horizontais em preto, distribuídas no plano e que formam retângulos em proporções variadas, preenchidos com as três cores pigmento primárias, amarelo, azul e vermelho, além do branco.

Mesmo quem não compreende o significado último das obras desse holandês, sabe, naturalmente, que elas não estariam estampadas por toda parte se não lhes fossem conferidos um valor e uma importância relevantes e pressente que, por detrás desse status cultural, deve haver algo mais, uma idéia. Pode acontecer ainda, de reconhece-las apenas em seu aspecto decorativo, como belos desenhos, agradáveis, negando-lhes impacientemente o estatuto de obras de arte (Quem nunca ouviu a clássica: “_Arte? Meu sobrinho de três anos faz isso!”). Atitude muito frequente em nossos dias frente aos supostos disparates da arte contemporânea. Fato é que, para bem ou para mal, tais obras não nos passam despercebidas e mesmo aquele que não têm o hábito ou mesmo o interesse de se dedicar à leitura sobre arte, muitas vezes identifica com facilidade os quadros e, caso interpelado, consegue com menor ou maior dificuldade trazer à tona o nome do pintor. Mondrian, em nossa sociedade, mais que um artista goza do status de celebridade.

Desse ponto de vista a afirmação de Gleizes e Metzinger, importantes figuras da história da arte, parece contradizer o trabalho do pintor holandês e este, por sua vez, parece comprometer a palavra de dois pintores e teóricos do cubismo. As obras de Mondrian distam do livro em questão, publicado em 1912, em quinze anos (“Composição em vermelho, amarelo e azul”, por exemplo, data de 1927). É algo que certamente tem de ser levado em conta. Seria, então, um simples caso de superação das idéias cubistas pelo neoplasticismo? Mas como tal estética se oporia essencialmente às idéias do cubismo quando reconhecemos que este “(…) é, de fato, a fonte imediata da corrente formalista da pintura abstrata e não-figurativa que dominou a arte o século XX”?[2] (CHIPP, 1999, p. 195) Estaria enfim tal afirmação em total desacordo com as obras do pintor? São duas posições irreconciliáveis?



Piet Mondrian, Composição em vermelho, amarelo e azul, óleo sobre tela, 61x40 cm, Stedelijk Museum, Amsterdam.


Se considerarmos a afirmação de que ambos, o cubismo - especificamente o de Gleizes e Metzinger, dado que o cubismo assumiu formas variadas ao longo do tempo - e o neoplasticismo de Mondrian encontram-se numa construção homogênea conceitual e prática que é a pintura abstrata, resulta difícil sustentar que há aí uma contradição insolúvel. De fato, uma das características mais marcantes da modernidade foi a estreita ligação que se buscava na expressão de sentimentos, idéias e emoções interligados o que se reflete claramente na abundante florescência de movimentos e estreita ligação entre poetas, pintores, críticos, músicos, ensaístas, etc. Muitos deles buscavam na arte como um todo, correspondências sinestésicas e parentescos comuns entre letra, pintura e música, chegando mesmo a associações com campos da matemática, da filosofia e até mesmo da esfera religiosa (dos quais o maior exemplo é, sem dúvida, Kandinsky).

Além disso, na longa esteira das reflexões de pensadores e artistas como Delacroix, Baudelaire, Wagner, Gustave Khan, Maurice Denis, e muitos outros, a corrente abstracionista na pintura origina-se a partir de uma miríade de fatores comuns que compõem o que chamamos hoje de crise da modernidade. Ela nasce como necessidade de expressão, em reação à artificialidade e à falta de vitalidade da Academia, acusada de não mais suprir as necessidades espirituais de sua época. Ao mesmo tempo é impulsionada pela necessidade de busca da especificidade e portanto de legitimidade da pintura, tanto em relação à literatura, da qual era considerada mera auxiliar, como frente aos novos processos da fotografia, uma das muitas inovações técnicas que inauguravam um novo modo de vida (industrial, urbano, de produção mecânica, instantânea) e que ameaçava pôr fim ao status (e mesmo ao ofício) do pintor. O impressionismo foi um desses caminhos e trabalhou no sentido de captar a sensação visual imediata, definir a essência da operação pictórica e afirmar o estatuto da pintura na sua própria fatura e na sua pura materialidade: pintura como pintura.[3]

O cubismo por sua vez vem ao encontro de uma necessidade de superar o aspecto fugidio e superficial da impressão em benefício de uma representação menos instável, representação “(…) de elementos que permanecem no espírito pelo conhecimento e que não se modificam todas as horas.”[4] (Juan Gris apud CHIPP,1999, p. 280)

Essa busca pelo que há de essencial nos aspectos que compõem a natureza e a realidade chega às raias metafísicas em Mondrian quando afirma:

A arte nos faz compreender que há leis fixas que governam e nos indicam o uso de elementos construtivos, das composições e das relações inerentes a elas. Estas leis podem ser consideradas como subsidiárias da lei fundamental da equivalência, que cria o equilíbrio dinâmico e revela o verdadeiro conteúdo da realidade.[5] (Piet Mondrian apud CHIPP, 1999, p. 357)

É verdade que a declaração de Gris é tardia e que o que caracterizou o cubismo quando de sua eclosão[6] foi o sentimento de profunda incoerência e a tremenda incompreensão que gerou nos espectadores, despertando reações violentas por parte da crítica e acirradas discussões. Metzinger alude às pinturas de Picasso como portadoras de uma nova perspectiva, “(…) livre e móvel” e de uma forma que “(…) recupera finalmente o seu direito à vida e à instabilidade.”[7] (Jean Metzinger apud CHIPP. 1999, p. 198, o grifo é nosso.) Esta instabilidade parece estar bastante distante do equilíbrio pretendido por Mondrian. Mas não nos enganemos. A pespectiva já é algo que este busca suprimir da construção plástica enquanto quadro, insistindo na pura bidimensionalidade da tela, na superfície pictórica. Sua preocupação, no entanto, continua essencialmente a mesma que fundara a estética do cubismo uma década antes quando, em seu livro ‘Os Pintores Cubistas’, um dos maiores defensores do movimento, afirma que

A verossimilhança já não tem nenhuma importância, pois o artista sacrifica todas as verdades, às necessidades de uma natureza superior que ele próprio supõe descobrir. O assunto já não conta ou conta muito pouco”[8]( Guillaume Apollinaire apud CHIPP, H. B, 1999, p. 224)

Essa preocupação que visa privilegiar a forma e a expressão individual, descobrir a ordem subjacente oculta no caos aparente das coisas, da natureza e da realidade, aparecia já na corrente simbolista mas só com o cubismo, seus desenvolvimentos posteriores e outras correntes nascidas de outras fontes afins é que inaugura-se essa preocupação, intrínseca na pintura, de equilíbrio entre o figurativo e o não-figurativo. De fato, desde a categórica afirmação de Denis que constitui a idéia de preponderância material da pintura (enquanto superfície de cores combinadas de modo organizado) o desafio, o problema básico constituía-se em representar nas duas dimensões do plano, as três dimensões do real. Agora com o cubismo surge o que nas discussões do Bateau Lavoir, de Picasso ou mais tardiamente no estúdio em Puteaux, de Jacques-Villlon, ficou conhecido como a quarta dimensão, uma dimensão “maior do que a Terceira para expressar uma síntese de opiniões e sentimentos em relação ao objeto (…) dimensão ‘poética’, na qual todas as dimensões tradicionais são superadas”.[9] (Jean Metzinger apud CHIPP, 1999, p.226.)



Capa da obra Cubismo de A. Gleizes et J. Metzinger, Paris, edição Eugène Figuière, 1912.
Centro Pompidou, Paris, Biblioteca Kandinsky.



E embora a profundidade perca prevalência nos quadros de Mondrian sua preocupação com a terceira dimensão não desaparece. Pelo contrário, segue no projeto construtivista de integração entre a pintura, a escultura, a arquitetura e o design, equilíbrio que é a própria beleza, reflexo da expressão da vida interior incorporada no ambiente onde a arte se imiscui e se mescla, constituindo a própria essência do espaço, a um só tempo racional, funcional e plástico. O espaço, instância coletiva, torna-se condensação do sentimento plástico e objeto agradável ao olhar.

Em ambos, cubismo e neoplasticismo, essa preocupação com uma dimensão ‘poética’ funda-se na preocupação com outras esferas humanas que não a pura racionalidade utilitarista que fazia sentir seus efeitos no início do século e que saltava aos olhos no subsequente espetáculo brutal da primeira Guerra Mundial. A importância dada a elementos como o sentimento e o instinto são uma constante na arte abstrata onde importam mais o ritmo e as relações mútuas das formas, a essência das coisas, deixando de lado as particularidades e os acidentes e buscando, acima de tudo, a liberdade e a imaginação, as formas enraizadas no homem, os valores intrinsecamente humanos e humanizantes.



A esse respeito afirma Daniel-Henry Kahnweiler:

“As linhas retas verticais e horizontais e o círculo são o fundamento da visão e da sensação objetivas e a lírica do cubismo, expressão da vida espiritual da época revela uma busca pelo essencial das coisas e do mundo, ao mesmo tempo que pela síntese e unidade.”[10] (Kahnweiler apud CHIPP, 1999, 251)

Eis uma descrição que poderia aplicar-se quase que completamente à pintura de Mondrian: expressão unificada das oposições que para ele constituem o cerne da natureza do real, plasmadas harmonicamente em formas neutras, cores puras (primárias em Mondrian) e linhas livres, puramente ortogonais.

Essa bem orientada e disciplinada ortogonalidade em Mondrian revela sua visão plástica de mundo, totalidade crivada pela perene dualidade tornada visível em seus quadros, retrato de sua época, que ainda é nossa modernidade, e que se apresenta sobre os extremos de figura/ não-figura, desenho/ cor, profundidade/ plano, motivo/ forma, concreto/ abstrato, objetivo/ subjetivo, realidade/ imaginação, razão/ sensibilidade, material/ espiritual, universal/ individual, massa/ elite, realismo/ idealismo.

Se “(…) as obras de arte são o que de mais enérgico, do ponto de vista plástico, uma época produz”[11] (Apollinaire apud CHIPP, 1999, p.227), os quadros de Mondrian encerram essa qualidade vibrante das formas que intuitivamente se prestou a condensar e integrar em suas composições onde há um equilíbrio que não é monoliticamente estático, rígido, mas dinâmico, lúdico como a vida, apesar de sua dimensão trágica de solidão e violência.

Nesse momento nos permitimos indagar se não terá sido esse imenso trabalho sistemático, ao longo dessa dupla extensão, do plano e do tempo, labor poderosamente sintético do pintor que fez com que suprimisse o círculo, imagem da eternidade por excelência, transmutando-o em existência, absoluta, ainda que concreta.[12]

Não há síntese mais poderosa da existência dual e contraditória da humanidade em sua busca espiritual pelo equilíbrio no turbilhão das muitas viscissitudes - biológicas, intelectuais, psicológicas, afetivas, sociais, políticas, espirituais – quebra-cabeças no qual nos constituímos. Mondrian visa a harmonia livre de todo conflito, das mesquinharias irrelevantes, superficiais e efêmeras da materialidade comparadas ao reino do espírito puro. Talvez nesse, e somente nesse sentido, possamos suspeitar que seus quadros realmente não exprimissem a existência, não por falta de visão ou qualquer outra qualidade que lhe faltasse como artista mas porque realmente o que almejava fosse a prefiguração desse ideal, de paz e harmonia numa época em que grassavam as atrocidades da guerra.

Produtos e reprodutores que somos de uma sociedade paranóica e esquizofrênica, radicalmente dualista, nos reconhecemos nas palavras de Fernand Léger (1924 apud CHIPP, 1999, p.281): “(…) vítimas de uma sociedade crítica, cética e inteligente, eles se empenham em compreender em vez de se deixar levar pela sensibilidade”.[13]

A despeito da razão exata e instrumental, pronta a demonstrar a verdade unívoca e irrecusável, quase sempre pela coerção institucional, pela privação econômica e cultural, quando não pela violência belicosa, a arte de Mondrian aspira universalidade, aproximação e consenso.

Ingênuo? Talvez o consideremos hoje. Mas há um só dia em que não ensaiemos um gesto ou ao menos pensemos em como fazer do mundo um lugar mais equilibrado, mais justo e melhor?





[1]GLEIZES, Albert e METZINGER, Jean. Cubismo, 1912. In:_ CHIPP, H. B. Teorias da Arte Moderna, 1999, p 215.



[2] CHIPP, H. B. op. cit., p. 195.

[3] ARGAN, Giulio C. Arte Moderna, 1992, passim.

[4] GRIS, Juan. Resposta a um questionário sobre o cubismo, 1925. In:_ Idem. p. 280.

[5] MONDRIAN, Piet. Arte Plástica e arte Plástica Pura (Arte Figurativa e Arte Não-Figurativa, 1937 In:_ Idem. p. 357.

[6] O termo ‘cubismo’ foi cunhado pelo crítico Louis Vauxcelles numa conversa com o pintor Henri Matisse durante a exposição do Salon d’Automne de 1908, a respeito das Paisagens de L’Estaque, de Georges Braque. Foi empregada num atigo por ocasião do Salon des iIndépendants no ano seguinte)

[7] METZINGER, J. Artigo para a rev. Pan (Paris), 1910. In:_ CHIPP, H. B. op. cit., p 198.

[8] APOLLINAIRE, G. Meditações Estéticas: Os Pintores Cubistas, 1913. In:_ Idem, p.224

[9] METZINGER, J. Artigo para a ver. Pan (Paris), 1910. In:_Idem, p.226.

[10] KAHNWEILER, D.-H. A Ascenção do Cubismo, 1915. In:_Idem, p. 251.

[11]APOLLINAIRE, G. op.cit. In: Idem, p.227.

[12] Mais tarde, Naum Gabo em sua obra Escultura: a Talha e a Construção do Espaço, 1937, vai afirmar que toda forma materilizada já é concreta e que o termo ‘forma abstrata’ não é passível de ser aplicado. A ele preferia o termo ‘forma asoluta’. In:_Idem, p.340.

[13] LÉGER, F. A Estética da Máquina, 1924. In:_Idem, p.281.

Referências


_ARGAN, Giulio C. Arte Moderna, Companhia das Letras, São Paulo, 1992.

_CHIPP, H. B. Teorias da Arte Moderna, Ed. Martins Fontes, São Paulo,1999.

_MERQUIOR, José G. Formalismo e Tradição Moderna: O Problema da Arte na crise da Cultura, Ed. Forense, Rio de Janeiro, 1974.