27 janeiro, 2011

O Poder do Mito

Revirando coisas antigas, deparei-me com um apanhado que fiz sobre algo da obra de Joseph Campbell. Especificamente sobre uma entrevista com Bill Moyers, cuja transcrição, aliás, daria ensejo ao que mais tarde veio a ser "O Poder do Mito". Dentre todas as fontes que possibilitaram a publicação, essa constitui material preponderante. Enfim, tal apanhado constitui-se de uma série de comentários, bastante superficiais, mas igualmente interessantes exatamente por essa razão: não têm qualquer pretensão de se estenderem ou aprofundarem as reflexões do autor mas são, antes, um passeio, um panorama no qual despontam, aqui e ali elencadas, questões curiosas que levanta em sua fala. Gostaria, assim, de postá-lo aqui.
Aos frequentadores do Poder do Mito e outras publicações de Campbell, não acharão nada de novo aqui. Para aquele que só agora toma contato com o autor ou para quem precisa de uma síntese geral, acreditamos ser esta uma alternativa razoável.

O Poder do Mito. Parte I - A saga do herói

A saga do herói trata de um dos aspectos fundamentais da teoria de Campbell, apresentada no seu livro, talvez o mais conhecido, “O Herói de mil Faces”.
Aí, trata ele da questão da universalidade da estrutura da narrativa heróica ao longo das culturas e épocas. A típica seqüência de feitos, um ciclo (partida, realização, regresso) que começa com o chamado para a aventura, passa por uma série de provas auxiliares e culmina na vitória do herói (um ser humano excepcionalmente forte, física ou espiritualmente), vitória sobre si mesmo, sobre suas limitações, e que volta para comunicar essa conquista e dividir com seus semelhantes essa descoberta.
Psicologicamente falando, poderíamos afirmar que a jornada do herói consiste no amadurecimento individual (ou grupal, dependendo da abordagem), na morte da persona infantil, heterônoma, para a “ressurreição” como adulto autônomo e responsável, integrado, “in-divíduo”. Mitos, segundo Campbell, tratam da transformação da consciência.
Numa abordagem sociológica a questão pode ser: Como viver como ser humano responsável e solidário numa realidade sócio-histórica que “instrumentaliza” pessoas, subjetivamente, através do consumo da propaganda e objetivamente através da exploração do trabalho.
Atualmente, como sempre fez em outros tempos e lugares, o mito nos questiona Como se relacionar com a sociedade e a natureza, o cosmos de maneira positiva, não destrutiva. Eis um grande desafio para todos nós, heróis e heroínas modernos.

O Poder do Mito. Parte II - A Mensagem do Mito

Nesse ponto entramos especificamente nas implicações religiosas dos mitos como narrativas provenientes de muitas culturas e, portanto, repletas de divindades, de diferentes deuses e deusas.
Eis um conceito complexo e delicado, mas que resulta, cremos, numa solução satisfatória na abordagem de Campbell.
Os mitos, por sua natureza são metáforas que se referem ao absolutamente transcendente, ao que não pode ser medido, pensado e só precariamente descrito, dentro das categorias que conhecemos. “E a palavra que, em nossa linguagem, serve prara designar o que há de mais transcendente é Deus”, diz Campbell.
A essa altura ele chama a atenção para o dualismo enraizado em nossa percepção (ser e não ser, claro e escuro, noite e dia, vida e morte, macho e fêmea, passado e futuro). Sobre este dualismo estão fundadas as religiões ocidentais, que carregam consigo, deste modo, uma profunda carga moral (Deus e homem, culpa e expiação, certo e errado, bem e mal) Freqüentemente o resultado é uma incongruente tríade Deus-homem-natureza, fonte de uma esquizofrenia que não permite ceder à natureza “pecaminosa” e implica forçosamente em afastar-se das “coisas do mundo”.
Em sentido oposto, a contrapartida necessária seria a adoção de uma postura de afirmação incondicional do mundo, com tudo o que nele nos aparece. O desafio, incontornável, se apresenta então num comprometimento radical com a realidade (isso incluiria não só o meio ambiente como a política), ao mesmo tempo que uma atitude de não julgamento e de reflexão sobre a essência do Bem realizado (não seria também ele uma ”verdade” imposta, pessoal e coletivamente?)
O cerne da questão figura na busca pela experiência de plenitude, felicidade, expressas nas formas do mito e da religião. Qual a natureza dessas duas esferas?
Para Campbell tanto uma como a outra são metáforas, que devem ser lidas conotativamente sob o risco de, do contrário, ficarem presas aos símbolos. Um problema puramente literário: saber ler poesia como tal, e não interpretá-la como prosa. Nesse erro reside a fonte das nossas chagas pessoais e mesmo daquelas chagas permanentes que se infligem mutuamente as civilizações do Oriente médio, onde convivem as três grandes religiões monoteístas. A solução seria buscar em seu próprio repertório, o referencial, aquilo que é a essência da mensagem.
Para Campbell “Céu e inferno, estão dentro de nós, assim como Deus”. Nesse sentido, uma definição campbelliana de mito muito segura pode ser aqui posta: mitos sãos metáforas, imagens simbólicas que representam e se reportam às diferentes energias internas de nosso corpo em conflito. A questão agora é procurar, igualmente dentro de si, o essencial, invisível, pra encontrar a felicidade, reconhecê-la e vivenciá-la pois “a eternidade aqui e agora é a função da vida”.

O Poder do Mito. Parte III - Os Primeiros Contadores de Histórias

Aqui o autor fala sobre a origem do mito e sua função de colocar em sintonia o homem como um todo e com as aparentes contradições da existência, sendo a morte a mais intrigante.
Discorre sobre a busca de significado para a morte por parte dos primeiros homens, nossos ancestrais. Morte da caça, ou seja, dos animais dos quais dependiam e morte de seus semelhantes. Com base em evidências de túmulos e sarcófagos dedicados a determinados animais e também a humanos, a partir do período Neandertal (200.000- 75.0000/ 25.000 a.C.*) A mitologia partiria desse princípio: a significação da morte.
Aí entram, por um lado a relação de expiação por matar o animal, um mensageiro divino (em muitos casos, como vemos em religiões que preservam o aspecto sagrado de alguns animais, o próprio deus) que se oferece voluntariamente como vítima sacrificial para servir de alimento e, de outro lado, a reverência pelo reconhecimento da dependência desses animais, o ritual como expressão de devoção, uma relação de respeito se impõe.
Campbell toma como exemplo as pinturas rupestres presentes nas cavernas de Troi-Fères e Altamira e aponta questões muito interessantes como sua função ritual (talvez, a introdução dos jovens na caça) e a intencionalidade - ou não - da beleza de tais obras (Em que medida uma teia de aranha ou o canto de um pássaro são intencionalmente belos? E em relação às pinturas desses proto hominídeos?).
Desse ponto de vista temos em conta que a arte e a mitologia estão intrinsecamente ligadas e caberia, não necessariamente aos sacerdotes, funcionários sociais, mas aos artistas, resignificar e criar novas mitologias contemporâneas.

O Poder do Mito. Parte IV - Sacrifício e Felicidade

Nesse capítulo, descreve a passagem, em algumas sociedades, do ambiente da caça para o da cultura de sementes e o impacto dessa mudança na construção mitológica: uma nova visão de mundo.
Surge mais forte a idéia de fazer parte de algo maior, como se cada pessoa não fosse simplesmente uma pessoa, um indivíduo, mas um ramo entre tantos da grande árvore da vida, cujas folhas caem e que precisa ser podada de quando em vez.
Ao observar similaridades nas mitologias ao redor do mundo e essas respectivas mudanças, o autor questiona duas possibilidades (e essa é uma questão central, muito controversa e debatida entre estudiosos):
1. Tese das “idéias elementares”( Adolf Bastian – 1826-1905) ou arquétipos (Carl G.Jung – 1875-1961). Nessa tese, utilizando e desenvolvendo conceitos desses dois pensadores, postula-se que a estrutura essencial da psique inerente ao corpo humano, que não se alterou significativamente desde as cavernas, preserva suas leis psicológicas relativamente invariáveis e uniformes por todo o mundo o que ocasiona mudanças independentes e simultâneas.
2. Tese difusionista, da qual Campbell era um dos defensores. A certa altura da História com a ”invenção” da agricultura (provavelmente na Ásia, no Crescente Fértil), espalha-se pelo mundo afora ao longo de milhares de anos a prática agrícola. e junto com ela a mitologia relacionada a esse modelo, a morte e o renascimento da vida vegetal.

A questão presente na mitologia ligada à vegetação é a da identificação por trás da aparência da dualidade. Morre a carne, mas o espírito se mantém. Vida e morte são manifestações de uma mesma realidade. Mais que interdependentes são correspondentes e equivalentes. Nesse ponto fala da estreita associação entre procriar e morrer. O sacrifício presente na maternidade/paternidade, no casamento, no engajamento político, etc.

O Poder do Mito. Parte V - O Amor e a Deusa.

Nesse trecho da obra, Campbell versa sobre o nascimento do amor romântico no século XII, quando se inaugura a concepção de relacionamento amoroso entre duas pessoas, extrapolando, por exemplo, a idéia do casamento como instituição em que as pessoas eram unidas por conveniência.
Essa experiência inovadora de amar indo mesmo contra a tradição religiosa dos casamentos arranjados tornou-se parte significativa da afirmação da experiência individual, pessoal, em detrimento da autoridade da tradição
Distingue o amor erótico (Eros) biológico, sensual do amor/ compaixão (Ágape), aquele que ama o próximo como a si mesmo.
E volta a discorrer sobre o amor como afirmação da vida com seu sofrimento, a compaixão que este desperta, abertura para o outro.
Continuando o tema, aborda a questão da reverência à mulher como símbolo da vida e da compaixão.
Nas primeiras sociedades agrícolas era determinante a imagem da terra como a imagem da mulher: fértil, nutridora, doadora da vida, mágica, misteriosa. A mulher é a Deusa, a Deus, mulher.
Seguem então as invasões semita e indo-européia de pastores nômades, guerreando por territórios e, de sua mitologia, anteriormente caçadora (mas ainda orientada aos animais) surgem os deuses guerreiros que subjugarão a deusa.
Essa perspectiva patriarcal, freqüentemente belicosa, exerceu grande influência no que hoje chamamos de machismo, subjugação da mulher, fortemente presente em grande parte das sociedades, ocidentais.
Finalizando, toma como ponto central o tema mitológico do nascimento a partir de uma virgem, motivo predominantemente grego que aparece incorporado no Evangelho de Lucas. Ele simboliza o nascimento espiritual do novo homem, nascido não mais da carne puramente, mas do espírito, do coração aberto, compassivo para com o sofrimento alheio, nascimento que simboliza uma transformação espiritual.