19 agosto, 2010

Cantada

Você é mais bonita que uma bola prateada
de papel de cigarro
Você é mais bonita que uma poça dágua
límpida
num lugar escondido
Você é mais bonita que uma zebra
que um filhote de onça
que um Boeing 707 em pleno ar
Você é mais bonita que um jardim florido
em frente ao mar em Ipanema
Você é mais bonita que uma refinaria da Petrobrás
de noite
mais bonita que Ursula Andress
que o Palácio da Alvorada
mais bonita que a alvorada
que o mar azul-safira
da República Dominicana

Olha,
você é tão bonita quanto o Rio de Janeiro
em maio
e quase tão bonita
quanto a Revolução Cubana

(GULLAR, Ferreira in Dentro da Noite Veloz, 1962 - 1975)

Como andar de bicicleta.

Quando era pequeno e morava na casa de meus pais, tinha às vezes vontade de andar de bicicleta.
Não era simples.
Primeiro porque, quando criança, nunca tive bicicleta. Foram duros os tempos que se seguiram à abertura política, marcados pela inflação galopante, pelos infindáveis pacotes econômicos e malabarismos mirabolantes do Ministério da Fazenda. Lembro de alguns nomes, ainda sem compreendê-los totalmente. Figueiredo, Tancredo Neves (e aquela inesquecível cena do avião ao som de Coração de Estudante)... Congelamento de preços, gatilho salarial, Delfim Neto. Cruzeiro, Plano Cruzado, corte de zeros da moeda, Cruzado Novo. Sarney - "Seja Fiscal do Sarney!" Ulisses Guimarães e a relação infame do Deputado com o herói da Odisséia: "_Seria o helicóptero de Ulisses ao mar, obra de Netuno?"
Tudo isso e a vida megacomplicada de meus pais, dois nordestinos entre os muitos que, fugindo da fome, lutavam pra se estabelecer em São Paulo. Trabalhando duro pra criar minhas irmãs e eu, pra dar de comer a todos nós, nos educar dignamente. A eles devo tudo o que há em mim, de melhor e pior. Lhes devo cada dia da vida como um presente e uma carga.
Tempos difíceis, sem dúvida. Por conta disso nunca tive muitos supérfluos como vídeo game, por exemplo (e, honestamente, na época nunca me fez falta). Nem bicicleta.
Minhas brincadeiras prediletas consistiam em desenhar na rua de terra, construir castelos de areia com cavernas, pontes (e, quando chovia, com fossos)... Empilhar pequenos blocos de madeira que trazia meu pai do depósito onde trabalhava. Posso ainda sentir o cheiro.
Rabiscar os livros e folhas secretamente estocados sob o assento do sofá quadriculado azul.
Mas a real razão porque demorei tanto a andar de bicicleta - minha primeira me veio já na adolescência, mas soía, é claro, haver uma ou outra à mão -, a razão é que sempre fui muito cagão. rsrs
Me torturava entre o que seria pior caso eu caísse: a dor física de esfolar os joelhos ou a suprema vergonha moral de ser apontado fazendo coisas estúpidas. Chegava mesmo ao cúmulo de treinar no corredor lateral de casa (e mesmo isso quando os de casa não estavam olhando).
Muito tardiamente e sozinho (sempre sozinho) simplesmente aprendi, num dia qualquer, na magrela de um amigo. Que felicidade! Passei o dia todo contornando o canteiro central da avenida, tentando alçar vôos por sobre as lombadas (se diz lombadas, aqui? Quebra-molas!).
Dia bom.
À parte o fato de que não me lembro qual foi a última vez que andei de bicicleta (e o não menos triste fato de que continuo sem grana pra comprar uma! kkkk), sei que sou capaz de fazê-lo. Não sem uma boa dose de desalinho, é verdade, e uma tragicômica deselegância, mas o essencial é que certas coisas não se esquecem...
Desconfio que não seja muito saudável mas meu coração quase nunca pedala. Vez em nunca se aventura pela cidade. Vez ou outra ainda contorna o canteiro. Mas a verdade, verdade mesmo é que continua, na maior parte do tempo, a se espremer dentro da segurança invisível dos muros da casa materna, se apoiando pelas paredes do corredor, fingindo velocidade. E equilíbrio.
Isso nos fez - eu e meu coração - meio raquíticos. Cansados e cansativos. Graves. Compassados. Pedantes em vez de pedalantes.
A sensação de, depois de tanto tempo, pensar em voltar à rua é estranha e a determinação em fazê-lo, me sabe um pouco assustadora. As ruas mudaram, estão mais cheias, mais velozes. Há sinais que não entendo.
Minha bicicleta está velha e descalibrada.
É anacrônica, meio ridícula, com seu cestinho e uma buzina fanha e espalhafatosa. É meio tosca, reconheço, mas me serve.
É pesada, mas é minha.
Vou lubrificar a corrente (eterna mania de meu pai, em tudo pôr óleo! Pena não funcionarem com determinados atritos). Vou tentar insuflar alma nos pneus velhos, apertar os parafusos, (me) lixar (para) a ferrugem. Que mais?
Trocar as sapatas de freio, que minha inclinação é ir devagar, na defensiva, ao menos uma mão sempre no guidon...
Ah! e vou levar flores no cesto, sim. Foda-se (taí mais um chavão paterno)!
É começar.
O máximo que pode acontecer é sair machucado. Ou machucar alguém (pedir desculpas também está implícito no ato de aprender a dirigir).
Além disso, não importa mesmo o que se faça, parado ou correndo, não se pode fugir às coisas estúpidas. Temos com elas encontros marcados.
O negócio é botar a cara pra fora e dar uma volta.
Vocês vão ver. No fim da tarde já vou estar loucamente apostando corrida com ônibus.