14 agosto, 2010

Estado: Líquido

Existem pessoas que, inexplicavelmente, nos fazem sentir à vontade.
Elas têm, assim que chegam, o poder de transformar qualquer ambiente em lar e aconchego. Quando digo 'poder' estou claramente atribuindo valor a essa capacidade ou atributo. Em grande parte por, como introvertido por excelência, não possuir esse caráter.
Creio não ser algo absolutamente intencional. Parece ser uma disposição natural, inconsciente, de tais pessoas que, são agradáveis porque... são! rs
Pessoalmente falando é uma experiência rara perceber essas pessoas iluminadas.
E o mais engraçado é que esse poder de certa forma escapa a uma definição, o que paradoxalmente aumenta o fascínio por elas. Não se preocupam muito com auto-análise. Às vezes nos dão a impressão de não ligar mesmo pra análise nenhuma! Fogem a toda a (nossa) compulsão classificatória.
Desenvoltura? Simples alegria? Talvez espontaneidade... Acho que é o mais próximo que pode chegar uma aproximação verbal. É uma espécie de pessoa afortunada, dona de uma riqueza, de um patrimônio que é inútil pra si mesma mas que, alheia a esse valor incauculável, inadvertidamente o distribui generosamente aos outros.
É patente, é visível, que ela não precisa comprar ninguém. Está estampado (e essa alegoria de cor não poderia ser mais própria, mais feliz).
Refletindo sobre elas (prestando atenção nos muitos significados, mas indo além deles, 'entrando na metáfora'), compreendi finalmente o sentido da alegoria da fonte. Definitivamente elas são fontes de água fresca, límpida, transparente, sonora, abundante, de maneira alguma insípida, torrente caleidoscópica, inesgotável... Tais pessoas são vitais. Garantem a experiência de uma vida vivida, saciada.
Ao ler esse texto cheio de clichês (porque quando as palavras não bastam à expressão, é inevitável cairmos em clichês - quão paradoxal!) talvez uma ou outra pessoa fará o percurso que fiz, se reconhecerá como o andarilho que foi levado por esse percurso.
Enfim, essas pessoas nos teletransportam a dimensões onde podemos pensar e falar simultaneamente em várias dimensões.
Em que prestar atenção enquanto conversamos com elas? No modo como falam? Na boca que abre e fecha? Na altura do tom? No timbre? No conteúdo do discurso? Nas palavras? No que essas palavras representam? No que elas significam? Na cor dos olhos? No olhar? No corpo? No cheiro? Em que parte? No gesto? No todo? Tudo fala! Essas pessoas são como que uma somatória de variadas expressões de arte (são pintura, são música, são narrativa, são poesia). São mais que a somatória pois são o fundamento que possibilita e o lugar de onde brotam essas experiências tornadas reais. Ainda assim, escapam a qualquer generalização abstrata dessa natureza porque concretas, reais, idiossincráticas.
Independente de nosso agnosticismo, pra lá de nossas dúvidas e convicções, elas nos proporcionam igualmente pensar a partir de uma perspectiva religiosa, de transcendência. Sobretudo do mistério de nossa singularidade, de nossa finitude, de nossa grandeza, de nossa pequenez, de nosso (parafaseando o pensador) encontro nesse vasto panorama de tempo imenso e espaço infinito.
Até que ponto essa experiência nasce de minha própria fonte, de minha própria sede, o que significa que muito provavelmente eu possa estar "fazendo água" é um outro mistério. Seria por demais ingênuo ignorar essa possibilidade de auto ilusão tão útil e benéfica. Não é doce morrer na praia, mas mais salgado é morrer no mar.
Uma coisa é meu universo interior, outra o cosmo, suas limitações e possibilidades. E a incontornável liberdade do outro.
Uma coisa é pensar, outra é fazer.
E o ato criativo nada mais é do que a soma dessas duas. A obra de arte nasce também daí, dessa possibilidade e dessa abertura.
No fim das contas, é melhor estar inspirado do que não estar.