Você começa a ler um artigo sobre a iconografia de anjos na História
da Arte (1) - talvez a mais alta das abstrações a que alguém
poderia recorrer para fugir ao cotidiano - e, sem que você se dê conta,
eis que a realidade - política, como não poderia deixar de ser -
invade a leitura, agarra-se à interpretação, lhe puxando de volta num
turbilhão que acaba, vez após vez, no impacto doído contra o concreto armado.
E há acaso algo que escape à gravidade do contemporâneo?
"Kant despoja a estética de Burke do que penso ser o
seu maior desafio: mostrar que o sublime é provocado pela ameaça de nada
ocorrer. O belo dá um prazer positivo. Existe, porém, outro tipo de
prazer ligado a uma paixão mais forte do que a satisfação, que é dor e
a aproximação da morte. [...] No léxico de Burke, esta paixão
extremamente espiritual chama-se terror. Ora, os terrores estão
ligados a privações: privação da luz, terror das trevas; privação do
outro, terror da solidão; privação da linguagem, terror do silêncio;
privação dos objetos, terror do vazio; privação da vida, terror da
morte. O que é assustador, é que o 'ocorrerá' não ocorra, cesse de
ocorrer.
Para que este terror se misture com o prazer e
componha com ele o sentimento sublime, é ainda necessário, escreve
Burke, que a ameaça que o engendra seja suspendida, mantida a uma certa
distância, retida."(2)
Sublime... e estranhamente familiar.
A propósito, uma das possíveis origens da palavra sublime é a
concepção de se estar sob o estrado de uma porta a comtemplar a
amplidão que não encontramos no interior. Do latim
sub (sob) +
límen ou
limis (o
limen, o lintel), que está também ligada à noção de limiar, "estar no
limite", a um passo além do qual a segurança, sumamente doméstica,
estaria ameaçada (sensação de deja vu).
Tudo isso nos faz pensar sobre uma certa incoerência da noção de
"ação terrorista". Afinal o que é o terrorismo senão um suspender, um
paralisar?
Não poderia o terrorismo, no final das contas, ser definido como um mal-Estar instituído e generalizado?
(1) CALIANDRO, Stefania.
O Anjo na Arte Contemporânea - iconologia de uma presença da ausência. Cadernos de Semiótica Aplicada, Vol. 7.n.2, dezembro de 2009.
(Hiperlink disponível em:
http://seer.fclar.unesp.br/casa/article/view/2322/1872)
(2) LYOTARD, [1988a, p. 110 do original] 1989a, p. 103.
Retomando e criticando Kant a propósito do sublime, Lyotard (ibidem,
[p. 110-111] trad. portuguesa. p. 104) Apud. CALIANDRO, op. cit.