20 agosto, 2010

Eu rasgo seda à bessa...

"_ É lindo, destruir palavras. Naturalmente, o maior desperdício é nos verbos e adjetivos, mas há centenas de substantivos que podem perfeitamente ser eliminados. Não apenas os sinônimos; os antônimos também. Afinal de contas, que justificação existe para a existência de uma palavra que é apenas o contrário de outra? Cada palavra contém em si o contrário. "Bom", por exemplo. Se temos a palavra "bom," para que precisamos de "mau"? "Imbom" faz o mesmo efeito - e melhor, porque é exatamente oposta, enquanto que mau não é. Ou ainda, se queres uma palavra mais forte para dizer "bom", para que dispôr de tôda uma série de vagas e inúteis palavras como "excelente" e "esplêndido" etc. e tal? "Plusbom" corresponde à necessidade, ou "dupliplusbom" se queres algo inda mais forte. Naturalmente, já usamos essas formas, mas na versão final da Novilíngua não haverá outras. No fim, todo o conceito de bondade e maldade será descrito por seis palavras - ou melhor, uma única. (...) Não vês que todo o objetivo da Novilíngua é estreitar a gama do pensamento? No fim, tornaremos a crimidéia literalmente impossível, porque não haverá palavras para expressá-la. Todos os conceitos necessários serão expressos exatamente por uma palavra, de sentido rigidamente definido, e cada significado subsidiário eliminado, esquecido. Já, na Décima Primeira Edição, não estamos longe disso. Mas o processo continuará muito tempo depois de estarmos mortos. Cada ano, menos e menos palavras, e a gama da consciência sempre um pouco menor. Naturalmente, mesmo em nosso tempo, não há motivo nem desculpa para cometer uma crimidéia. É apenas uma questão de disciplina, controle da realidade. Mas no futuro não será preciso nem isso. A Revolução se completará quando a língua for perfeita."
(ORWELL, George - 1984)

Uma das coisas que me atrai e que admiro por demais nas pessoas é a preocupação com o emprego da palavra exata no lugar apropriado e no momento preciso.
Signos aleatórios, convencionais e já dados, palavras são objetos carregados de significado que aprendemos a usar ao longo da vida. Salvo as poetas e os poetas, que pra isso têm licença, nós, o grosso dos mortais, muito pouco preocupamo-nos em modificar os termos cotidianos que utilizamos para melhor expressar o que dentro nos vai. Tendo ultrapassado o aprendizado da língua, depois de conquistá-la - a ela então nos rendendo - na maior parte do tempo simplesmente não nos damos conta do caráter automático do exercício cotidiano da fala e da escrita.
Somente quando nos obriga um fator externo (quando nos são exigidas as formalidades de um requerimento ou contrato legal) ou quando nos impele uma moção interna, significativa (uma necessidade de expor impressões pessoais e sentimentos vitais, como na poesia e nas declarações amorosas), somente quando das palavras depende toda a diferença entre ser compreendido e não sê-lo, sem sombra de dúvida, é que a maioria das pessoas se inclina numa reflexão sobre o uso meticuloso das palavras. Quando o que está em jogo é um pedaço de terra (ou de um coração), elas são prontamente solicitadas a cumprir seu importante papel de esclarecer, de assegurar que estamos nos fazendo entender.
Há, no entanto, pessoas que muito naturalmente (e à custa de esforço e exercício continuados) têm o dom de se fazer entender e de ilustrar conceitos e convicções pelo uso do discurso verbal e/ou escrito. São pessoas prolixas, articuladas e convincentes.
Não adentrarei aqui a ambiguidade da retórica política nem a estrutura perversa em que se converteram os sistemas de comunicação da coletividade, sutis veiculadores de ideologias e lugares comuns, conformadores de opinião que pretensamente "fazem a cabeça da massa alienada". Não o farei, não porque não me preocupe seriamente com tais questões, mas por duas razões muito simples e que estão intimamente relacionadas: primeiro porque, intelectualmente falando, não me vejo suficientemente preparado para tal empreitada, para uma crítica dessa natureza, complexidade e de tamanhas proporções; segundo porque sinto que definitivamente a vocação política não está em mim, assim como não estão a facilidade e a perene disposição afetiva para o diálogo interpessoal. A natureza de meus escritos é preponderantemente de reflexão interna, busca de uma palavra que me proporcione um diálogo interno na busca de soluções para problemas inerentes à minha própria personalidade, exercício de busca da clareza, esvaziamento, aproximação, contraste e abandono de conteúdos para que, nessa dialética intimista, outras idéias possam tomar lugar àquelas que, paulatinamente, vão sendo descartadas. Dialética possível? Viável? Não sei ao certo. É provável que o leitor (se algum há) experimente profundo enfado frente a essas maciças e herméticas proposições e que tal texto seja efetivo soporífero, bastante recomendado à insônia crônica. A mim, me ajudam a organizar o caos dos pensamentos, das impressões e dos sentimentos.
Mas, à parte isso, gostaria sobretudo de fazer aqui o elogio às pessoas cuja preocupação com a expressão e cuidado com a língua tornam-se essenciais a ponto de constituirem, além de objeto de cuidado acadêmico, meio de subsistência, fonte de expressão e de gozo pessoais - como são para mim, o trabalho e o olhar cioso da imagem pictórica. Admiro tais pessoas com (e não há aqui outras palavras que caibam nesse espaço e contexto a não ser estas) verdadeiro fascínio.
Letra e Imagem são duas dimensões distintas, mas que caminham inseparáveis, complementando-se mutuamente e, nesse caminhar, seguem enriquecendo o panorama cultural, humano, historicamente construído - e mais recentemente em processo de (des)construção.
São campos que, simultaneamente, constituem e ilustram a própria vida. Espaços em que clareza e mistério, discurso e silêncio, cheio e vazio, olhar e imaginar assumem peso e importância equivalentes, ainda que particulares.
Por isso, e para finalizar, de coração reitero: viva o ato do dizer, salve a arte do calar!
Pra bom entendedor...