11 junho, 2012

Mihály Zichy



À primeita vista do conjunto das litogravuras de Mihály Alexandrovich Zichy (1827–1906), parece que não encontraremos mais do que o clichê, outra daquelas séries ordinárias de figuras do imaginário erótico/ pornográfico da virada do século: o repisado catálogo de posições sexuais mal disfarçado pelo voyeurismo usual sobre o corpo feminino (bastante criticado, inclusive, por correntes ativistas e intelectuais na moderna história da pintura).

Especialmente ao espectador acostumado a ver a arte como o sublime ideal clássico, romântico, da beleza elevada, pura e casta, a primeira tentação seria a de prontamente classificá-las como reles artigo de pornografia, afastando-as de uma vez por todas, afim de passar à serena comtemplação de paisagens, ao retrato ou à natureza morta.
Se nos detivermos mais cuidadosamente sobre elas, contudo, veremos que há nessas ilustrações elementos curiosos, qualidades suplementares, capazes de nos fazer pensar sobre o estatuto dessas imagens e querer experimentá-las de maneira diversa.

Não é o simples fato, ainda que significativo, de referir-se ao erótico. Boa parte da pintura do fim do século XIX e começo do XX têm, como já foi dito, o nu e o sensual como mote substancial. A questão é que podemos vislumbrar aqui boa parte dos grandes temas-tabu da história da produção visual e da expressão plástica ao longo do período. Sem qualquer critério ordenador preestabelecido e sem qualquer conotação indicativa de valor, temos: o ato sexual explícito, o homoerotismo, a sedição, o incesto e a pedofilia (ora apenas sugeridos, ora expressos de modo flagrante), a violência sexual, a masturbação _ e, se contarmos com os centauros, a prática da zoofilia.

Tampouco trata-se de julgamentos acerca da moralidade ou não dessas diversas expressões, malgrado a nossa imcapacidade de suspender nossos próprios juízos e deixar de fora da equação nossas percepções e construtos socialmente herdados. O essencial, no tocante à nossa análise é que esses registros, independente de terem sido encomendados por um cliente em particular (o que, no caso, apesar de serem gravuras reprodutíveis, seria o mais plausível) ou para exposição aberta ao público, constituem fatos visuais que nos mostram algo do universo da sexualidade desse determinado lugar e dessa época em especial.
Produzidas para usufruto pessoal e privado ou para deleite e instrução públicos, podemos encontrar na grande maioria das cenas - com exceções daquelas que, aqui e ali, parecem servir a denunciar determinada casta social - um quê de livre naturalidade e profunda intimidade. Mesmo aquelas que poderíamos considerar como mais desconcertantes, parecem nos provocar, deixando-nos suspensos entre o que poderia ser a apresentação do drama humano em cada uma das personagens, que cega e sofreguidamente busca saciar suas necessidades - de contato, de afeto - ao ponto de atingir, em alguns momentos, o que a sociedade encararia como perversão. Ou, melhor dizendo, pelo fato mesmo de merecerem durar, perpetuando-se como obras materiais, visíveis, constituam uma crítica não verbalizada à ideia de perversão, daí sua dimensão subversiva e política, questionando os padrões em voga e o controle exercido na época tanto sobre as relações interpessoais, como sobre a vida prática de cada indivíduo em particular. Em última instância, sobre o seu próprio imaginário. Assim, tais imagem influiriam, assim, não só sobre os padrões de conduta e comportamento, mas também sobre o pensamento de uma época.
No fim das contas, parece que o mérito do artista é mexer com o imaginário do espectador.
Suas imagens certamente deveriam ter na época um quê de perturbador, ao dar a ver, de forma explícita, num contexto repressivo em certa medida, o caráter ambíguo do desejo e a força incontornável do impulso sexual, que é também afetivo, emotivamente carregado de memórias prazerosas e frustrantes. Impulso presente na criança, nos jovens, na pessoa adulta, no homem adulto, na gestante e naquela que dá o peito ao filho, permanecendo acesa a chama ainda, no velho já combalido e na mulher em idade avançada, até a morte. Desejo e vida, mistérios não passíveis de separação. E quem de nós irá dizer que elas perderam por completo esse qualidade de uma só vez familiar e inquietante?
Cremos que (também) por isso se destacaram de toda a produção semelhante que certamente havia na época e que por essa qualidade sejam hoje consideradas artísticas, posto que uma das funções primordiais da arte seja balançar os alicerces daquilo que se encontra há tempos estabelecido e solidificado.
Seriam, então, essas imagens capazes ainda de remexer no fundo do nosso armário/ imaginário já tão vasculhado pela psicanálise e pelas críticas contemporâneas e viciado pela rotatividade-repetição incessante da cultura visual das grandes mídias (pós-)modernas? Aos curiosos de plantão, uma parte do trabalho do gravurista e pintor húngaro pode ser vista em: http://www.eroti-cart.com/index.php?main_page=index&cPath=53_62
Resta, por fim, salientar que uma análise mais direta e pragmática sobre as influências, recursos e contatos de que dispunha o artista na época, faz-se necessária para formar um juízo mais crítico e embasado sobre a sua produção, determinar qual o peso real que desempenhou cada um desses fatores na sua trajetória.
Mas essa é uma tarefa para outra(s) madrugada(s) - ou outras pessoas que, como eu, sofram de insônia aguda e crônica.
Sendo assim, passo aqui a bola.
Ou a peteca.
Ou o bastão...