06 novembro, 2010

O Pitoresco segundo Pevsner*

Do objeto de estudo

Trata-se da transcrição de uma Conferência de Nikolaus Pevsner, estudioso de História da Arte, em especial da Arquitetura, proferida no Real Instituto Britânico de Arquitetura no ano de 1947 e cujo tema abordado é o pitoresco. Numa ordenada e crescente sucessão de desdobramentos, o autor parte da definição etimológica, passando pelo histórico do termo e seguindo através de uma rica sucessão de exemplos e imagens - ora da história da pintura, ora do panorama da arquitetura em si - rumo a uma sempre maior compreensão, em extensão e profundidade, do que foi arquitetura pitoresca na Inglaterra dos séculos XVIII e XIX, suas interações com o clássico e com o Moderno e o caráter permanente de seus elementos que sensivelmente emanam do complexo quadro da contemporaneidade do século XX. Pevsner convida, por fim, à reflexão sobre a necessidade de reconhecer, hoje, o pitoresco; redefini-lo, reinventá-lo, fazendo frente aos novos desafios que demandam soluções criativas, eficazes e harmônicas aos atuais problemas de planejamento e ordenação do espaço humano.


Picturesque

O mote do autor em sua muito didática explanação está fundamentado na sua questão inicial, na pergunta mesma acerca do o que é o pitoresco. É ela o nervo central que permeia todo o corpo da argumentação subseqüente, conduzindo o olhar numa bem orientada espiral descendente, até uma profunda e eficaz apreensão do conceito.
O primeiro movimento parte naturalmente da análise etimológica: pitoresco é aquilo que salta aos olhos do pintor, o que é sentido como motivo apropriadamente “pintável”, “pittoresco”. Tomando como exemplos paisagens e edifícios retratados na História da Arte européia, o autor pergunta-se /-nos: Como pode haver algo universalmente, ou mesmo culturalmente pitoresco, quando há no âmbito da pintura tanta variação de motivos, cada um deles chamando a atenção de um artista em particular? E por que nos dispomos tão prontamente a chamar algumas expressões de pitorescas e outras não?
Cambiando então a perspectiva, Pevsner apela para o histórico do termo a fim de que uma contextualização bem feita possa dar cabo da ambigüidade do conceito. O panorama é a Inglaterra do séc. XVIII cujas pinturas ostentam paisagens carregadas de contrastes, ferocidade, um caráter inóspito, quase hostil e onde as construções retratadas quase perdem sua solidez e permanência, repletas que estão de linhas dinâmicas, imprevisíveis. A arquitetura da época, porém, não parece refletir as mesmas inquietações da pintura. Com blocos ordenados, simetricamente dispostos e de uma leveza imperturbável nas formas e texturas, transparecem o clássico e o equilibrado, sem muito de pitoresco. Qual é a questão então?
Recorrendo mais uma vez à instância da pintura, o autor aponta um aspecto significativo: o contraste se revela, pois, na polaridade rigidez/ informalidade, na inquietude do conjunto construção/ paisagem. Essa composição do arquiteto/ pintor é, muitas vezes, não acidental, mas deliberadamente pitoresca. Impecáveis pórticos com colunas encimadas por frontões triangulares compõem com a irregularidade revolta e desordenada da vegetação. O pitoresco da época é o paisagístico.
Posto isto, resta definir quais suas características essenciais e então, pensar a aplicação intencional, de tais elementos na arquitetura, preservando a funcionalidade. Para isso, Pevsner volta-se novamente aos artistas, não só pintores, mas aos acadêmicos, autores, paisagistas do século XVIII. Das percepções desses homens, depreende critérios que constituem o contraste, a rusticidade, a variação súbita, a irregularidade, a intricidade, uma incongruência levemente sugerida, a complexidade e o movimento. Outros aspectos passam pela superfície, textura, luz e sombra, projeções e recuos, desenho da linha do horizonte.
Mas, ora, eis algumas preocupações que concernem também à arquitetura clássica. Anuncia-se aí uma linha tênue, flutuante, entre o clássico e o pitoresco, como que uma intersecção entre essas linguagens, na medida em que o conhecimento sobre o pitoresco aumenta e o conceito se dilata. Assim, o autor chega a uma efetiva definição do que seja o pitoresco e, conseqüentemente da arquitetura pitoresca (a saber, aquela em cujo domínio tais critérios de rusticidade, irregularidade, etc. se aplicam). Traça em seguida, o itinerário desta pelos séculos XIX, onde é aceita como válida estritamente para edifícios individuais, e ruma ao século XX, onde essa vertente é confrontada, com reações de repúdio, de apelo a um retrocesso ao belo clássico e de resgate da beleza simétrica, estritamente formal. Assim mesmo, ela perpetua-se na arquitetura formal de pequena escala, dos jardins, numa espécie de retorno ao paisagístico.
Por fim, o autor/ preletor chama a atenção para a importância de uma atitude não ingênua em relação à aplicação da arquitetura pitoresca no cenário moderno. Reforça a consonância e correspondência entre, de um lado, os velhos princípios consagrados pelos mestres do século XVIII, e por outro lado, as expressões recentes da arquitetura moderna, aberta, abrangente e dinâmica, frente aos desafios que naturalmente surgem da complexidade das relações no espaço social e urbano.

Panorama histórico

Se voltarmos o olhar para a Europa do século XVIII o que vemos é um borbulhante caldeirão de acontecimentos políticos, econômicos, científicos, religiosos e artísticos. Isso também se aplica naturalmente à Inglaterra, frequentemente associada ao temperamento fleumático e extremamente racional imputado aos seus compatriotas. Temos aí a recente Revolução Inglesa que, junto com a crescente Revolução Industrial, estabelece as bases para o modo de produção capitalista e cria um panorama de tensões. Forças conservadoras e liberais, simpatizantes do antigo regime e a nova burguesia no poder, classe empregadora e proletariado. Nas ciências Físicas e Astronômicas cada vez mais desenvolvidas, ainda ecoam as descobertas das complexas relações do movimento elíptico de Kepler. E o rápido crescimento urbano, quase desordenado vigora no acelerado “spreading out” orgânico das cidades a despeito da decidida postura inglesa de manter-se a uma distância razoável dos excessos do barroco. Enquanto isso, no campo da Estética trava-se um caloroso debate a respeito da questão da identidade entre beleza e proporção das partes, da correspondência entre o belo e o simétrico. Pintores, escultores, acadêmicos, poetas, arquitetos, filósofos buscam definir a essência e as características do belo, que desdobra-se num caleidoscópio de novas categorias. A “Grande Teoria” renascentista, com seus cânones e regras para a produção e a apreciação da beleza, dão lugar a uma beleza inquieta e intimista. Esse estado de tensão reflete o sentimento de que há, entre a sobriedade da razão e as “volutas” do sentimento dos sujeitos particulares e imaginativos um “je ne sais quoi”, uma beleza indecisa, que não se sabe ao certo onde reside, se na coisa bela ou no espírito que a percebe. Nomes como Diderot, Edmund Burke, Willian Hogart esforçam-se exaustivamente na tentativa de definir o que seja essa beleza (a ponto de fazer o filósofo David Hume aceder ao senso comum e, a certa altura do debate, exclamar categoricamente: “Gosto não se discute”). É nesse cenário que surge o termo “pitoresco” como categoria estética, modalidade do belo, junto a outras como a “beleza vaga”, o sublime, o estupefaciente...
Expressivo é o fato de que Sir. Pevsner resgata esse conceito numa época tão conturbada como o pós II Guerra que expõe de modo tão brusco e toda a complexidade do ser humano (ele mesmo, embora em princípio simpático a algumas resoluções do regime, era de família judia e, já aos 38 anos de idade, morando e trabalhando na Inglaterra, recebe a notícia de que a mãe se suicidara para fugir aos campos nazistas).
Também hoje vivemos desafios grandiosos em relação às relações com nossos semelhantes e no tocante ao tratamento que damos à paisagem que habitamos. Novos problemas que se anunciam e que parecem soar tão distantes - falta d’água, aquecimento, colapso dos serviços, apatia, intolerância, violência - são parte de nosso cotidiano, de um modo ou de outro.
Penso ser a arquitetura um meio privilegiado, não só puramente instrumental, mas profundo, de manifestar essas preocupações comuns, antigas e contemporâneas. Ela, que também goza dessa tensão essencial entre técnica e arte, produtora do útil e fonte criadora do belo, constitui um instrumento igualmente privilegiado de fazer nascer do espaço e no espaço, interações, soluções, resoluções e novas provocações.

Sobre o autor

Pevsner, Nikolaus Bernard Leon, Sir; (1902- 1983).
Embora reconhecidamente britânico, nasce em Leipzig, Alemanha, numa família judia. A ausência do pai, um comerciante de peles, durante os anos da I Guerra Mundial permite a Pevsner freqüentar a “St. Thomas School” (curiosamente a mesma escola onde, quase 200 anos antes, J. S. Bach exercia a função de Cantor). Estuda História da arte em diversos estabelecimentos e sob vários mestres, que lhe influenciam fortemente o espírito. A lista inclui as Universidades de Munique (Heinrich Wölfflin), Berlim (Adolf Goldschmidt) e Frankfurt (Rudolf Kautzsch). Entre suas primeiras influências figuram também Emile Mâle (“Arte Religiosa na França do Século XIII”), Bruno Gebhardt (“Manual de História Alemã”) e Siegmund Hellmann (“A Idade Média até a saída das Cruzadas”).Em 1924 retorna à sua cidade natal e escreve sua dissertação, sob a orientação de Wilhelm Pinder. A tese versa sobre a arquitetura barroca de Leipzig.
Imediatamente após, deixa o lugar e vai trabalhar, voluntariamente, como curador assistente em Dresden, até o ano de 1929. Nesse ínterim, assiste, em Dessau, o surgimento da Staatliches Bauhaus de Walter Gropius e também do “Pavillon de L'Esprit Nouveau”, por representantes do purismo francês como Le Corbusier. Esses dois eventos de certa forma mudam sua trajetória.
Sua dissertação aparece publicada sob o título “A Pintura Barroca em terras latinas”, o primeiro de dois volumes sobre Pintura Italiana - o segundo escrito por Otto Grautoff - ambos compilados no 25o volume do prestigiado “Manual de Pesquisa da Arte”, série iniciada por Fritz Burger. Muda depois para Göttingen em 1929, onde leciona por um período de cinco anos. Em 1936 Pevsner publica seu primeiro livro em língua inglesa, “Pioneers of the Modern Movement”, corolário de sua viagem de pesquisa na década de 1920. Nesse mesmo período, começa a escrever para o “Architectural Review”, sob a coordenação de James Richards (mais tarde, durante ausência de Richards, assume o cargo de editor). Seu livro “Academies of Art”, de 1940, é dedicado a Pinder. Também nesse ano, recebe de Allen Lane, fundador da Penguin Books, incumbência de escrever uma publicação intitulada “Outline of European Architecture”.Inicia-se assim uma longa e profícua parceria entre Pevsner e a Penguin Books. Transcorridos cinco anos, sugere a Alen a produção do periódico “Buildings of England”, baseado nos guias de Georg Dehio, na Alemanha e propõe ainda uma versão inglesa do “Manual”, de F. Burger. Pevsner o edita em pessoa e o resultado é o “Pelican History of Art”, cujo primeiro volume é lançado em 1953.
Pevsner teve uma relação amigável com Ernst Gombrich, Fritz Saxl, Rudolf Wittkower e Edgar Wind, particularmente por ter dedicado seu “Academies of Art” a Pinder. Em 1946, após uma série de tentativas frustradas de transmissão pela BBC, Pevsner o faz através da "Third Programme" associada à BBC. Entre 1946 e 1950, ministra nove preleções examinando temas ligados à pintura européia. Concomitantemente, exerce o posto de Professor em Cambridge (1949-1955). Eventualmente realiza mais de setenta e oito discursos para a BBC até 1977. Em meados dos anos 70, crescentes questionamentos são levantados a respeito de sua metodologia como historiador da arquitetura e chega-se mesmo a duvidar abertamente de sua objetividade como crítico, devido à sua “indisfarçável lealdade a Gropius e ao modernismo”, além de acusações de que tenha inclinações nacionalistas. Passou seus últimos anos lecionando e viajando em pesquisas, para dar prosseguimento ao “Buildings of England” e “Pelican History of Art”.


Referências

ECO, Humberto. História da Beleza. Rio de Janeiro: Record, 2004, passim.

Dictionary of Art Historians, The
http://www.dictionaryofarthistorians.org/pevsnern.htm;
Portal São Fancisco
http://www.colegiosaofrancisco.com.br/alfa/revolucao-industrial/revolucao-industrial.php

*O presente texto data de junho de 2008.

E coisa e tal. E tal e coisa.

"Por um momento, êle se sentiu furioso. Naquele mês, volvido desde que a conhecera intimamente, modificara-se a natureza do seu desejo. No comêço, pouca sensualidade houvera nele. O primeiro contacto amoroso fôra simplesmente um ato de volição. Mas depois da segunda vez as coisas haviam mudado de figura. O aroma dos cabelos, o gôsto da bôca, a maciez da pele pareciam havê-lo penetrado, ou envolvê-lo. Ela se tornara uma necessidade física, algo que não apenas queria como sentia ter direito a gozar. Quando Júlia anunciou que não poderia ir, teve a impressão de estar sendo lesado. Mas naquele momento a multidão os apertou e, acidentalmente, as mãos se encontraram. Ela apertou-lhe ligeiramente as pontas dos dedos, num gesto que parecia pedir não desejo mas afeto. Winston raciocinou que, quando se vive com uma mulher, êsse tipo de desapontamento deve ser uma coisa normal, que acontece mais de uma vez; de repente, domínou-o uma profunda ternura, como nunca sentira antes. Desejou que fossem um casal com dez anos de existência em comum. Desejou passear com ela pelas ruas, como estavam fazendo naquele instante, mas abertamente, sem medo, falando de frivolidades e comprando pequenas bobagens para o lar. Desejou, acima de tudo, que tivessem um lugar onde ficar a sós, sem sentir a obrigação de fazer o amor, cada vez que se encontravam."

(George Orwell in 1984)