08 agosto, 2011

A fotografia como poética crítica: Robert Frank e os “Stones”

Procuramos aqui abordar a breve sequência em formato Super 8 realizada por Robert Frank, anterior às filmagens da tour de 72 do grupo The Rolling Stones, trabalho que teve como produto final o documentário Cocksucker Blues. O fragmento escolhido, embora não pertença propriamente ao filme sobre a banda, foi retomado posteriormente, figurando como arte gráfica no álbum ‘Exile on the Main Street, de mesmo ano.

http://www.youtube.com/watch?v=_lNP-x94-SE

When people look at my pictures I want them to feel the way they do when they want to read a line of a poem twice.
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[Quando as pessoas olham para minhas fotografias quero que elas se sintam como quando são levadas a ler um verso de um poema mais de uma vez.]1





O registro de Robert Frank no ano de 1972, parece-nos hoje corriqueiro, ainda mais da maneira como foi utilizado, no formato videoclip. A razão disso - pouco evidente para a maioria das pessoas – é que a propaganda como dispositivo detém uma espantosa capacidade de apropriação e adaptação do discurso crítico aos seus próprios fins. O que hoje nos parece mais um vídeo mirabolante da programação 'MteleVisiva' pra vender música (ainda que de muito boa qualidade, o que é também raro), já foi encarado como subversivo, underground. Irônico o fato de que hoje, esse ritmo e essa atitude nos parecem mais que familiares: são repletas de glamour e atitude. E, ainda que pervertidas em seu sentido original, permanecem imagens ativas e ativadoras.
Felizmente, a crítica consciente - nela inclusa aquela de expressão artística, seja ela literária, musical, da imagem, do audiovisual - vem demonstrando habilidade em se valer desse mimetismo agressivo da indústria de marketing para tentar inverter tal relação parasitária, transformando o corpo translúcido e naturalmente flexível da propaganda comercial em vetor de questionamentos legítimos.




Like a Rolling Stone: Robert Frank e a fotografia como poética crítica

No caso do documentário de Robert Frank, o material original constitui-se de um fragmento de Super 8, formato que na época tornou-se bastante popular no uso de produções experimentais e cinema semi-profissional. Originalmente não havia som. A película não era munida de banda magnética sonora, o que ocorreu somente no ano subsequente ao do filme em questão.
De qualquer forma, ele está diretamente ligado à produção do grupo musical The Rolling Stones, que na época planejava uma grande tour americana para o álbum ‘Exile on Main Street’.2
Em seus temas e formas podemos perceber uma atmosfera característica que remete à obra de Walker Evans, fotógrafo que documentou os efeitos da Grande Depressão americana entre os anos de 1920 e 1930. Evans registra um panorama que contrasta drasticamente com a imagem oficial veiculada pelos grandes meios de imprensa: América, uma impávida nação, dotada de imperturbável tradição, predestinada a um futuro promissor, terra de riquezas, radiante e bem sucedida a despeito de crises esporádicas de adaptação (Vale lembrar o mote significativo da Revista Life, “Where there’s Life, there’s hope”).
Trinta anos passados, nos deparamos novamente com uma série de elementos comuns. A escrita, sobretudo a da propaganda massiva (aos quais já se voltava Eugène Atget (1857 - 1927) nos seus daguerreótipos da deserta Paris matutina, prestes a desparecer sob o rolo compressor da moderna reforma haussmaniana). Em Frank, cartazes, luminosos, placas de sinalização, de estabelecimentos comerciais, logomarcas, outdoors, cartazes, parados ou correndo, em relevo ou piscando, tudo grita, rivaliza, disputa o espaço público e a atenção do passante, revela a dinâmica esfuziante do ambiente urbano, em grandes centros como Nova Iorque e Los Angeles, onde foram realizadas as filmagens.
Também o reclame da violência aparece em letras garrafais na primeira página do noticiário impresso (RESCUER STABBED/ VAI AJUDAR E ACABA ESFAQUEADO3)
O filme, como empreendimento experimental, materializa as investigações do artista. Efeitos de transparências, gradações, layers. É surpreendente que a fotografia de Frank dialogue tão intimamente com as já citadas criações de Atget, e pareçam adentrar já no universo de outros media, que surgirão posteriormente. Certamente podemos contá-lo entre os inspiradores de uma estética da superfície, com suas justaposições e fusões de camadas variadas que vão compor a imagem ambígua, “híbrida”, entre a profundidade do cinema e a espessura do vídeo, da qual fala Dubois.4
Evidenciando a presença da câmera, questiona a transparência do cinema convencional jogando com o estatuto identitário da imagem. O receptor flutua entre múltiplos avatares: ora como cinegrafista, artífice da imagem, assume o lugar deste; ora incorpora o pedestre inserto no meio do caótico turbilhão urbano; ora volta-se para si mesmo, enquanto espectador de um fragmento cinematográfico - mas quem é esse si mesmo, afinal de contas? A obra suscita dessa forma questionamentos acerca de outros modos de apreensão da realidade, de percepção do espaço-tempo: movimentos irregulares de aparelho e o uso de distanciamentos e aproximações bruscas em zoom denotam o aspecto fragmentário da percepção, do olhar fugaz e da atenção constantemente dividida do moderno habitante da cidade; cortes abruptos sugerem saltos, elipses, intermitências. Tomadas cujo grau de enquadramento e desfoque limitam a compreensão imediata e integral do todo, constróem um espaço ambíguo; mesmo sem integrar ao seu trabalho um amplo espectro de cores, o fotógrafo/ cinegrafista não negligencia a saturação, a solarização, exibe a imagem estourada, ofuscando a sensibilidade retiniana potencializada. Sim, pois o que são esses flashbacks, esses ecos e repetições, todo esses malabarismos reunidos numa amálgama de sensações estimulantes, levadas ao extremo, senão uma experiência-limite, de estados alterados de consciência similar àqueles proporcionados pelo uso de determinadas substâncias narcóticas? Não seria uma alusão ao seu estatuto de interdito em nome da lei e da ordem por serem encaradas, em sua essência, como desencadeantes de atitudes e comportamentos subversivos?
Eis aí mais um elemento importante dessa estética do deslocamento: o de ato performático, que se pretende divergente, mesmo contraventor.
Gesto emblemático que ilustra tal condição é a escrita transgressora de Mick sobre a cédula de dólar que entrefigura em meio à enxurrada de takes que se derramam sobre a tela. Essa disposição contestatória é manifesta na expressão visual do grupo, no gestual, na indumentária. O aspecto bruto, cabelos em desalinho ou simplesmente desgrenhados, o riso sardônico a exibir dentes irregularmente dispostos. O indecoroso abrir de olhos e pernas, a confrontação acintosa, provocadora, entre agressiva e sarcástica. A onipresente brasa acesa do cigarro.
Ou, ainda melhor, o ar mesmo de apatia, escapando em tediosos bocejos, os braços cruzados, fazem sentir uma espécie de lassidão algo passivo-agressiva, de velada intolerância a todo o discurso ufanista da máquina oficial. Aliado a isso o uso de óculos escuros que instituem a recusa, o olhar interdito, que vê sem sem visto, objetiva sem ser objetivado, o olhar outsider de Teseu que não se permite transformar em pedra, coisificar-se. A cortina de fumaça.
Essa energia também está fortemente presente nas composições dos Stones.
Sweet Black Angel é uma delas. Nesta faixa, do álbum Exile on Main Street (1972), resulta bastante explícita a dimensão da expressão artística como ativismo político. Ela é um manifesto à causa da ativista de direitos civis Angela Davis, acusada na época de participação no sequestro e morte do juiz Harold Haley do condado da Califórnia.
A própria incorporação mais recente ao Super 8 de Frank, de uma outra canção do mesmo disco, ainda que não fosse originariamente a intenção de quaisquer dos artistas envolvidos no projeto, adiciona aspectos interessantes à interpretação. Explicitamente inspirada por “Get your rocks off” (1964), de Dylan, ícone da contracultura dos anos 60, o refrão de Rocks off anuncia: “I only get my rocks off while I'm dreaming/ sleeping”. No nosso entender, uma alusão à rotina sisífica do eterno recomeço, expressão do cotidiano esquizofrênico do universo do trabalho titânico, infinito, deceptivo e necessário - incluso aí o trabalho criativo e contestador - de quem "vai colhendo as ilusões sucessivas no pomar", diria o escritor português Michel Torga.5
La Carotte et le Bâton.
A incorporação dos metais, irrompendo a certa altura da música tem tudo a ver, por exemplo, com o universo da cidade de Los Angeles onde parte das filmagens acontecem. Coro de trombetas a anunciar tickets premiados para os primeiros assentos de um espetáculo apocalíptico urbano, essa sonoridade é a ‘cara rasgada’ da metrópole dos Anjos.
No mais, o elemento predominante tanto no trabalho de Frank, como no álbum Exile dos Stones é a rua e sua diversidade, sua ‘fauna urbana’, seus diferentes tipos e expressões, suas ‘grandes minorias’ relegadas à invisibilidade por não se enquadrarem no sistema (ou exatamente porque enquadradas nele). Nela, a rua, coexistem em constraste o marketing mais ou menos impessoal de um entusiasmo difusamente generalizado, digerível, reproduzido na forma de chavões, slogans que ‘acabam pegando’ (‘Love America’, ‘I  NY’...) e também as irreverentes expressões da oralidade de grupos urbanos heterogêneos (‘You got to scrape the shit off your shoes’, coisa que, convenhamos, só pode ser feita mesmo... na rua!). Tais dizeres populares figuram em cartazes à mão e versam sobre as dificuldades reais pelas quais atravessam as pessoas reais, de carne e tutano, porém, anônimas, à margem do mercado formal e da garantia de seus benefícios. Mas não de suas promessas.
Fazendo seus ‘bicos’ diários, são o esteio e o refugo da cidade: sapateiros, ‘flanelinhas’, músicos, vendedores ambulantes, artistas, mendigos.
O guardador de carros, mesmo que pareça incorporar uma personagem extraordinária diante da câmera, não parece interessado nela. Não se deixa agarrar pela lente, não se contém, extravasa a moldura, explode a pausa. Toureiro urbano, ele mesmo suspenso, no fio da navalha, em trânsito, dança no inconstante equilíbrio vida/ morte - ‘yin, yang, you’re my thing’. No labirinto móvel, de ferro e concreto, carne e osso da cidade, sem perder o fio da meada, ele é o sangue que por ela corre, escorre. A vida como arena (o 'um leão por dia' cabe bem num contexto imperialista). Ao mesmo tempo é ele o boi diário, procurando escapar da hecatombe, do holocausto.
Soul survivor, soul survivor...
É de tirar o chapéu diríamos nós. É de passar o chapéu talvez replicasse ele!
E há também os cegos, placas a tiracolo (Please, help the blind. Thank you), cuja iconografia encontra referente na fotografia de Julius Kirschner, Jacob Riis (1849 - 1914), Lewis Hine (1874 - 1940), August Sander (1876 - 1964), Paul Strand (1890 - 1976), Lisette Model (1901 - 1983), John Gutmann (1905-1998), Jed Fielding (1953 - ), entre outros; presente na pintura, remonta aos primórdios passando pelo Velho Brüegel (1525 - 1569), Velásquez (1599-1660), Goya (1746 - 1828), Millais (1829 - 1896), Bastien-Lepage (1848 - 1884), Picasso (1881-1973); na contemporaneidade, o escritor Saramago (1922 - 2010) em seu 'Ensaio sobre a Cegueira'. E até produções high-tech holywoodianas como Matrix (1999) revisitam incessantemente essa personagem tão rica em sua simbologia.
Outras dessas personagens igualmente marginais são bem conhecidos nossos na história moderna das artes, desde Courbet, por exemplo, e Manet: crianças indigentes, ciganos, o boêmio, o violinista ambulante, o trapeiro, o bebedor de absinto, o judeu errante...6 Mesmo nos artistas - e tentamos aqui nos abster de excessiva inclinação romântica - ainda que enquadrados e taxados hoje como membros de tal ou tal vanguarda (Dadaístas, surrealistas, pop, Beatniks) é flagrante essa identificação com a marginalidade, a solidão e o deslocamento. Os Stones são, nessa época, e na acepção forte da palavra, legítimos boêmios. Robert Frank botou o pé na estrada e aí permaneceu durante dois anos, coletando material para suas séries. Ao retornar, durante uma festa, mais precisamente do lado de fora (sempre a rua!), conheceu Jack Kerouac, que assinaria então o prefácio da edição americana de seu The Americans, publicado em 1958).
É possível olhar estas e outras personagens ao longo do tempo, e também hoje reconhecê-los, porque os artistas sentiram a necessidade de torná-los visíveis e memoráveis. Reconheceram a necessidade de chamar a atenção para cada uma destas pessoas em particular, para o modo como cada um de nós as vê. A partir daí podemos nos questionar a respeito da visão que temos acerca de nós mesmos e também, e não menos importante, para o modo de relações que cultivamos nos nosso convívio social.
Essa poética do deslocamento, do estranhamento do inventário urbano, carrega consigo uma estética, aquela da decepção, pois é preciso saber que nem tudo - na verdade, quase nada, diríamos - é como na propaganda. Nem tudo vai bem como numa pintura de Caillebot. Nem tudo acaba bem. E dependendo do que se entenda por bem, nem tudo tem que acabar bem.
Por isso ela é também uma ética e uma tática. Envolve ações sutis, encaradas como microscópicas sob nossa ótica usual, acostumada a uma visão tradicional de história, sociedade e cultura, perspectiva que ainda carregamos, ajeitando sobre o nariz. E ainda que a sensação seja a de que, sem saber, possamos estar caminhando para isso, arrancar os olhos não é mais uma alternativa.
Num mundo em que a realidade está morta (nós a matamos) e no qual o pior cego é rei é preciso saber admirar o que quer que seja. Utopia é tirar os óculos e há que se considerar, afinal já dizia Herbert Vianna: “eu não nasci de óculos...”
É tirar os óculos apelar pra Drummond:

“Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.”




Notas

1. Robert Frank. Life Magazine, 26 november 1951, p. 21/ Livre tradução.

2. Curiosamente o título seria uma referência, entre outras possíveis, ao período no qual os Stones alugaram a Ville Nellecôte na França, por conta de sérios problemas com impostos na Inglaterra. O dinheiro angariado na tour serviria ao propósito de quitar suas pendências fiscais no país de origem.

3. Livre tradução. A crítica irônica deixa entrever a questão subliminar da “arma branca”, em oposição ao aparato bélico legítimo do Estado. Armas brancas são consideradas armas impróprias porque objetos que eventualmente podem ser utilizados agressivamente, embora sua utilização normal não seja esta. Enquadram-se nessa categoria ferramentas e utensílios (martelos, machados, navalhas e lâminas de modo geral) de amplo uso e fácil acesso às populações pobres. A notícia como foi veiculada, serve como confirmação do estereótipo do marginal (elemento naturalmente agressor, que se utiliza da arma de maneira gratuita e covarde) ao mesmo tempo que mina o impulso de solidariedade, reforçando o individualismo e a apatia.

4. DUBOIS, Philippe. Cinema, Vídeo, Godard.Trad. Mateus Araújo Silva, São Paulo, Cosac & Naify 2004 (passim).

5. Excerto do poema Sísifo de Miguel Torga, pseudônimo de Adolfo Correia Rocha (1907-1995), poeta e prosador português. In Diário (vol. XIII), Coimbra, Ed. Autor, 1983.

6. Ver BLAKE, Nigel; FRASCINA, Francis. As Práticas Modernas da Arte e da Modernidade In Modernidade e Modernismo - A Pintura Francesa no Século XIX, São Paulo, Cosac & Naify, 1998. p. 82.



Referências Bilbliográficas

_ ANDRADE, Carlos Drummond de. Sentimento do Mundo, 8 edição, Rio de Janeiro, Ed. Record, 1999.

_ DUBOIS, Philippe. Cinema, Vídeo, Godard.Trad. Mateus Araújo Silva, São Paulo, Cosac & Naify 2004.

_ FRASCINA, Francis et al. Modernidade e Modernismo - A Pintura Francesa no Século XIX, São Paulo, Cosac & Naify, 1998. p. 82.

_ TORGA, Michel. Diário (vol. XIII), Coimbra, Ed. Autor, 1983.



Sites

_ American Museum of Natural History (Galeria virtul de imagens do Museu Americano de História Natural)
Disponível em: http://images.library.amnh.org/photos/ptm/catalog/desc/183974/

_Flickr (site de hospedagem de imagens. Galeria de fotos favoritas de Rachel Citron)
Disponível em: http://www.flickr.com/photos/rachel_citron/favorites/with/3037440100/#photo_3037440100

_ Me and my Mamiya (blog de Pamela Pike, Toronto, Canadá, especializado em fotografia).
Disponível em: http://meandmymamiya.blogspot.com/2009_08_15_archive.html

_ Turn me on, dead man (Blog de uma estação de radio on line especializada em punk, garage rock e psychedelia).
Disponível em: http://www.turnmeondeadman.net/index.php?option=com_myblog&show=robert-frank-and-the-rolling-stones.html&Itemid=5

A experiência antropológica como “Contato”

O presente escrito tem como objetivo explorar temas do panorama atual da reflexão antropológica tomando como objeto predominante de análise o filme Contato (Contact, Robert Zemeckis, 1997), adaptação do romance homônimo do astrônomo estadunidense Carl Sagan, estabelecendo paralelos com os desdobramentos decorrentes das noções, em antropologia, de objetividade relativa e relatividade cultural, empregadas por Roy Wagner em sua obra A Invenção da Cultura.
De caráter ensaístico, este exercício mais livre de reflexão não se furta a tomar de empréstimo elementos heterogêneos do nosso repertório pessoal, inserindo-os no debate, na medida em que tais produções, cremos, como aglomerados de formas amplamente compartilhadas, constituem elas mesmas o mar de significações no qual estamos mergulhados. Oceano índico, indicial.
Nesse sentido tomamos a liberdade de privilegiar o elemento cinematográfico, estreitamente relacionado ao âmbito específico do fazer artístico e ao universo imagético, abstendo-nos da recorrência incessante ao texto de Wagner. Achamos por bem assim proceder por compreendermos como sumamente manifestas as múltiplas correspondências entre as implicações da excepcional escrita do autor e a película em questão.



“The question that I'm asking is this: Are we happier as a human race? Is the world fundamentally a better place because of science and technology? We shop at home we surf the web... but at the same time we feel emptier, lonelier, and more cut off from each other than at any other time in human history. We're becoming a synthesized society.... In a great big hurry to get the next (...)
We're looking for meaning. What is meaning? We have mindless jobs, we take frantic vacations, deficit finance trips to the mall to buy more things we think will fill these holes in our lives. Is it any wonder that we've lost our sense of direction?” (Rev. Palmer Joss)



“ A arte é necessária porque a vida não é suficiente.”
(Ferreira Gullar)



Ao não iniciado ou àquele cuja familiaridade com a disciplina é pequena torna-se sobremaneira custoso falar em antropologia. Quando este o faz, é obrigado a mover-se num terreno eminintemente filosófico, espécie de pântano movediço onde cada passo implica em prosseguir adiante ou acabar retido nas areias traiçoeiras da linguagem e da convenção. Não deixa de ser esse o nosso caso.
A título de exemplo, se estivéssemos acompanhados de um antropólogo durante o desenvolvimento da escrita do presente ensaio, uma, dentre as muitas objeções que ele certamente nos colocaria já de saída, seria: “_Por que utilizar precisamente dessa selvagem analogia topográfica?”
Uma das razões é a concepção usual que culturamente herdamos do antropólogo, vinculado à figura do intrépido explorador, acossado pelos perigos de uma natureza indomada e de hostis povos primitivos - canibais em sua maioria - que o herói invariavelmente consegue superar para, finalmente lograr, quem sabe a solução de algum enigma mágico ou capturar valiosos tesouros. Certamente o último é verdadeiro. Embora não guarde hoje correspondência com o (pós-) moderno profissional da antropologia, essa imagem do etnólogo como uma figura mercenária não é de todo gratuita.
Como disciplina a Antropologia nasce dos procedimentos etnográficos e etnológicos na Europa do século XIX, devotado inicialmente à afirmação universal da identidade moderna e ocidental mediante a constituição do 'outro', quem quer que fosse, como objeto de estudo, como reflexo em negativo de uma civilização esclarecida e em pleno desenvolvimento. Apesar do perfil unilateral de tal movimento não é nossa preocupação primordial aqui implicar o caráter fundamentalmente 'maquiavélico' de um projeto imperialista tomado assim a frio; levamos em conta o fato de que esse amplo e complexo conjunto de processos, que envolvem também a coletividade, carregam consigo, como quaisquer desenvolvimentos históricos e culturais, tanto deliberações intencionais quanto inflexões inconscientes.
O fato é que, com o passar do tempo, a antropologia transmuta-se ironicamente no maior e mais eficiente instrumento de crítica desse projeto de prolongamento e replicação do si mesmo sobre um outro. Projeto grandioso porque redutor.
O estudo do antropológico enquanto disciplina abrangente e dinâmica liga-se a todas as esferas da produção humana, sejam elas teoréticas ou práticas. Melhor dizendo, ele as problematiza mesmo enquanto “esferas”, buscando relativizar as divisões às quais encontram-se submetidas, além de outras, como aquela entre teoria e prática. Em última instância, busca indagar a respeito da própria concepção do que seja o humano, encarado antes como fenômeno do que como algo dado, completo, imutável. Como se pode “ver”, não é tarefa fácil.
Assim, para tentar torná-la mais comprensível, propomos adotar como guia de análise o filme Contato, adaptado para a grande tela a partir do romance homônimo de Carl Sagan1.
A abordagem é bastante interessante e o tratamento visual, de um viés escópico que permeia todo o filme, constitui uma poética singular. Tais qualidades são identificáveis logo na primeira seqüência que estabelece paralelos entre o olho, o macro e o microcosmo, o universo convergindo para o buraco negro da pupila, Big Crunch, supremo distanciamento que chega por oposição à proximidade mais radical, a uma visão absoluta, que compreende a totalidade.
Na mesma seqüência, após o contato pelo radioamador, a configuração cartográfica desse primeiro projeto exploratório da pequena Ellie Anne Arroway, personagem principal da trama – e nossa antropóloga, de fato ou por analogia - apresenta o modelo de um núcleo centralizador do qual se irradiam prolongamentos correspondentes aos múltiplos contatos periféricos estabelecidos mas que não mostram a preocupação com o registro entre esses pontos. Essa forma visual centrípeta irá se repetir durante toda a película, assumindo significados diversos. Situada dentro de nossa análise particular, aqui ela resulta claramente atrelada aos primeiros desenvolvimentos da etnologia do século XIX já mencionados.
Reforça essa metáfora uma outra que se segue imediatamente a esta: o fato de que, pendurado no quadro pelo pai de Ellie, Theodor, o desenho da praia de Pensacola contrapõe-se àquele da cidade, justaposição de maneira nenhuma despretensiosa. Ela é um alusão inequívoca da constituição do “primitivo” elemento mais puro, autêntico, exótico, pardisíaco em contraposição aos barulhentos, perturbadores e viciados centros urbanos da modernidade onde o que se estabelece é o sintomático culto do “ir embora” (PERRY, Gill apud GOLDSTEIN, 2008, p. 282).
A catalogação que ela empreende dos corpos celestes traz à baila alguns dos asteróides visitados pelo Pequeno Príncipe, como aqueles habitados pelo Homem de Negócios que dizia possuir as estrelas e o do Geógrafo que procurava exploradores de boa índole (como Pitt Rivers?), que trouxessem provas materiais para registrar suas descobertas. Curioso observar também, como configura-se a apresentação diagramática do mapeamento do universo onde cada corpo celeste possui uma ID (identity) que corresponde às suas coordenadas. Isso implica que a sua identidade repousa sobre o quanto distam de nosso “marco 0" fundante. Mais interessante ainda, é o fato de que essa configuração indicativa de identificação da posição ocupada por um corpo determinado lembra o sistema de localização e mira dos modernos equipamentos de destruição à distância, temática abordada pelo artista argentino Enrique Jezik na obra Estreno de la OTAN, exposta na 29 a Bienal de Artes de São Paulo.
A personagem do astrônomo Kent Clark, doravante parceiro e confidente de Ellie 'observa' entusiasmado o fato de que ela escute a frequência emitida pelas estrelas que mapeia, estando aberta a um espectro mais abrangente e variado de informações, numa recepção que envolve outros sentidos, mais física e direta (pelo menos desde o abandono da teoria ótica de Leucipo), ao que ela responde displicentemente que isto é um hábito que torna a experiência mais real. Ao estabelecer, contudo, no convencional aperto de mão, os termos do contato, Kent introduz o caráter de diferença: ao fazer com que Ellie adeque seu gesto ao dele, permite a ela compreender que é cego. Assim, neste gesto tanto casual como emblemático do encontro, corrige, numa significativa metáfora visual, a assimetria da postura de Arroway. Percebe-se ainda que o caráter da diferença é valorizado ao sublinhar-se, no ato de se acender a luz, que ele independe dessa nossa ‘muleta’ e que, apesar de sua limitação, ele é extremamente perspicaz em reconhecer as pessoas ao seu redor.
Os uso de determinados efeitos técnicos (como a transposição pela câmera de janelas de vidro, da penetração retiniana) caminha paralelo à narrativa propiciando a coerência interna da produção e ao mesmo tempo jogando com a instabilidade da construção diegética. Um bom exemplo disso encontra-se ao final do dramático plano seqüência extendido no qual a personagem central sobe em disparada as escadas até alcançar o fim do corredor, provocando uma sensação de súbito deslocamento por parte do espectador, obrigando-o a suspender momentaneamente seu ponto de vista que resultara um tanto ambíguo e a recompor mentalmente todo o trajeto percorrido. Mal processada essa informação, imediatamente segue-se o movimento que introduz a moldura caleidoscópica, incessantemente multiplicada pelos seus sucessivos enquadramentos: imagem fotográfica, porta-retrato, espelho, tela do cinema. Essa imagem, registrada pela lente fotográfica, cuidadosamente emoldurada em vidro, reduplicada pela superfície refletora, registrada pela câmera cinematográfica, decomposta num sem número de fotogramas, projetada na grande tela e captada pela atenção do olhar do espectador, é dada contudo, de modo simultâneo, constituindo o retrato por excelência, como apresentação - não só no contexto ficcional - de uma profunda ausência. Tais recursos formais e estilísticos aí empregados como desdobramentos auto-rerferentes, que reforçam em particular esse caráter da (meta)linguagem tanto narrativa como midialógica, podem ser usados como uma analogia poderosa da investigação sobre a cultura. Esse choque proporcionado pela técnica cinematográfica equivale ao que Roy Wagner denomina choque cultural: “é apenas por meio do contraste experenciado que sua própria cultura se torna “visível” (WAGNER, 2010, p. 31).
O núcleo duro da narrativa,caracterizado pelas personagens de Arroway e Palmer Joss, estabelecem igualmente entre si contínuas interações dessa natureza, questionando-se mutuamente a respeito de seus pressupostos e objetivos. Isso está bem expresso no diálogo durante a recepção de gala na Casa Branca:

“Ellie: _ I got something for you: Occam's razor. You ever heard of it?
Palmer: _ Hack-em's Razor. Sounds like some slasher movie.
Ellie: _ No. Occam's razor. It's a basic scientific principle, and it says: all thing s being equal, the simplest explanation has to be the right one.
Joss: _ Makes sense to me.
Ellie: _ So, what's more likely: an all powerful mysterious God created the universe and decide not to give any proof of His existence or, had He simply didn't existed at all and we have created Him so we wouldn't have to feel so small and alone?
Joss: _ I don't know. I couldn't imagine living in a world where God didn't exist, you know. I wouldn't want to.
Ellie: _ How do you know you're not deluding yourself?I mean, for me, i need proof.
Joss: _ Proof. (he pauses meditating) Did you love your father?
Ellie: _ What?
Joss: _ Your dad, did you love him?
Ellie: _ Yes, very much!
Joss: _ Prove it.”

Não só o casal como cada uma das personagens _ condensação estereotípica representativa de uma instâcia particular, emblemática da nossa contemporaneidade ocidental - projeta sobre os indícios alienígenas uma interpretação imbuída de seu repertório ideológico: para Michael Kitz, pragmático e ambicioso assessor da Segurança Nacional, são agressivas estratégias de inteligência de guerra, de ordem tática e aniquilatória; para Palmer Joss, estudioso de teologia e inclinado à filantropia e à militância política nas subculturas, são mensagens benignas de natureza puramente espiritual em conformidade com os planos do Criador universal, um Reino de justiça , paz e fraternidade a ser conquistado aqui e agora; para S. R. Hadden, industrioso e excêntrico empresário, alheio às normas, intenções ou propósitos de quem quer que seja, parece-nos ligado ao universo da arte modernista, plenamente absorvido no jogo ('the game of the millenium'), em como este mobiliza as pessoas. De fato, apesar de manter-se distante, sua agência pode ser sentida durante a maior parte do tempo; para Ellie, uma cientista sobremaneira curiosa e exploradora, eles têm a ver com a transmissão de conhecimento, sendo de cunho epistêmico-pedagógico. Como ela mesma expressa ao saber da possibilidade de que uma única pessoa possa ser enviada para estabelecer o Contato com os aliens:

“For long as I can remember I've been searching for something, some reason why we're here. What are we doing here? Who are we? If there's a chance to find even a little part of that answer... I don't know, I think it's worth a human life. Don't you?

É esta justamente uma das questões-chave do filme, expressa na trama pelo conhecido apresentador Larry David, interpretando a si mesmo,nesses termos: “ On what bases do you choose a human being to represent humanity?”
A resposta de Ellie é coerente com seu caráter e com as informações disponíveis que possui do interlocutor alienígena até o momento. Esse ser humano modelo: “deve ser alguém fluente na língua em que foi transmitida a mensagem, no caso , a ciência.”
Somos levados então a adentramos no debate sobre o que seria essencialmente característico no ser humano como espécie. É essencialmente o homem um animal racional? Sapiens sapiens? O temperamento racional de Ellie seria uma manifestação inata e incontornável da natureza do ser humano? Essa curiosidade natural ligada à concepção de Aristóteles aplica-se universalmente? Como se sustenta essa máxima se a ela contrapusermos, por xemplo, a gama típica de personalidades idealizada por Jung? Ellie seria apenas um dos tipos possíveis de ser humano?
Esse distanciamento crítico de toda categoria estabelecida, que está na base das assim chamadas feridas narcísicas (choques que deslocam o sujeito de um centro privilegiado: cósmico, com Copérnico, biológico, no caso de Darwin e psíquico, na psicanálise freudiana), pode ser encontrado em determinados momentos do fazer antropológico, constituindo objeto de suas preocupações e métodos: a busca de instâncias comuns a todos os seres humanos, o que constitui sua identidade como um todo e, no caso da antropologia da arte, a investigação estética como categoria transcultural, investigação da qual se ocupa Tim Ingold e cujo debate envolve pensadores como Howard Murphy, Jeremy Coote, Sonia Greger, Joanna Overing e Peter Gow. Este último defende uma nova postura, diferente da referida há pouco, quando argumenta:

“Os antropólogos explicam as pinturas em areia dos Navajo situando-as num contexto, explicando como funcionam nos rituais. Mas eles nunca explicam por que são tão belas, por que possuem esse poder estético.
A questão é real e merece uma resposta, mas não é um problemna antropológico” (GOW apud INGOLD, 1996, p. 273)

Segundo o mesmo autor, o próprio Lévi-Strauss utiliza sua 'estética', não como categoria transcultural, mas como perspectiva transcultural.2
Parece ser o procedimento adotado por Hadden, na decodificação do sistema de caracteres alienígenas. A solução por ele apresentada, ao enigma, ainda que brilhante do ponto de vista da compreensão de uma nova gramática visual, de um novo paradigma estrutural por eles proposto, encontra-se ainda num nível de categorias razoavelmente domésticas de compreensão, o campo conceitual, instrumental, semântico. A chave para decodificar a mensagem é “pensar como os veganos” diz Hadden, ignorando solenemente o fato de que eles não o são. Tal colocação reflete um modo assimétrico de apropriação, equivalente ao do curador que se utiliza de analogias superficiais formais para dispor, numa mesma configurção expográfica, de objetos absolutamente distintos sob o rótulo comum de arte. É o caso da justaposição da pintura ritualística dos yuendumu, aborígenes da Austrália, e da obra Mud Circle, de Richard Long, na exposição parisiense Magiciens de La Terre, ocorrida em 1989 (curiosamente no mesmo ano, Ronald Kitaj apresenta seu First Diasporis Manifesto). Como observa Robert Layton, a imagética visual talvez possa dar conta da identificação do assunto sujeito à representação mas não do conhecimento do significado cultural. (LAYTON, 2001, passim.)
Quanto à organização formal, há exemplos interessante na construção diegética do filme em que tipos conhecidos do repertório cultural são utilizados para conotar significados não explicitamente expressos como o enfoque privilegiado que recebe o altar japonês no quarto de Ellie quando da construção da segunda máquina, simbolizando uma espécie de conversão gradual mas de certa forma ainda difusa, surgimento incipiente de uma disposição apropriada, que vai se harmonizar com o empreendimento espiritual que terá de realizar.
Dentre os objetos presentes encontra-se uma flecha, que pode ser interpretada de vários modos. Ela pode ser vista como uma demonstração de cortesia, reveladora, nesse sentido, de aspectos da cultura do 'outro' como por exemplo o caráter hospitaleiro dos anfitriões japoneses já que faz referência ao sobrenome e ao caráter de Ellie. Também pode ser uma alusão à sincronicidade do caminho espiritual de Ellie que estará pronta para atingir o alvo depois de percorrer todo o caminho. Pode ser abordada de modo matemático como a flecha estacionária de Zenão, um dos muitos paradoxos por ele proposto e que tinham por escopo negar a existência do movimento ilusório e superficialidade plural das coisas, desarmar a percepção do estatuto aparente do mundo em nome do ser verdadeiro, uno e imutável. Esse paradoxo em particular envolve a ideia de uma linha contínua como seqüência infinitamente divisível de pontos discretos, questão resolvida apenas no século XIX no debate acirrados entre a tese do cálculo infinitesimal de Newton e Leibniz de um lado e a crítica, apoiada em Locke, por parte de Berkeley do outro. Descreve-o assim Ray Monk (2000, p. 15):

“( ...) Tomemos por exemplo o vôo de uma flecha. Zenão argumentava que antes que ela atinja seu alvo, ela deve atingir um ponto a meio caminho em direção ao alvo; mas, antes que ela possa atingir esse ponto, ela deve atingir um ponto a meio caminho dele, e assim por diante, ad infinitum. Como a cadeia de pressuposições envolvidas na alegação de que a flecha se move, nunca termina, seu suposto movimento nunca começa e, assim, argumenta Zenão, deve ser considerado ilusório. Apesar do que parece que vemos com nossos prórios olhos, a razão vai nos dizer que a flecha nunca se move!”

Além disso, há certos grupos que vinculam esse pensamento matemático ao estudo místico da Cabala e vertentes gnósticas, por exemplo, onde compreende-se que 'o alvo é o próprio caminho'.
Seja qual for a perspectiva de abordagem, a mensagem, condensada e veiculada através de um simples objeto, que de modo efêmero cruza o plano defronte aos nossos olhos, é comunicada de modo eficaz. A metáfora é polissêmica e esse é o grande trunfo da construção do filme.
Logicamente, como já dissemos, isso ocorre dentro de um contexto razoavelmente doméstico. Se um cidadão iraniano, por exemplo, assistisse ao filme, é provável que a gama de sentidos que nós atribuímos quedasse drasticamente reduzida. O que não o impediria, por outro lado, de formular uma série de outros sentidos possíveis e perceber outras qualidades que não as que privilegiamos.3
Assim, num contexto ocidental, as três ‘estações’ nas quais Ellie se detém durante a viagem parecem representar três estágios qualitativos e consecutivos de recepção: natureza, civilização e arte. Na terceira instância, demonstra reconhecer a impossibilidade de processar a experiência pelos meios racionais da ciência dedutiva e de traduzi-la pelos meios convencionais de expressão da linguagem cotidiana. É uma espécie de limiar, onde se inaugura de modo definitivo o processo de reconhecimento das própria categorias como ‘muletas’ . Uma espécie de panorama cartesiano, mas às avessas no final das contas, pois não se pretende homogeneizador.
Uma a uma, as categorias convencionais, mesmo aquelas mais básicas, ligadas a processos biológicos elementares como percepção do espaço revelam que aí não se encaixa o modelo pretensamente universal que ela havia introjetado. No ambiente em que se encontra os objetos são percebidos como estabelecendo relações inusuais quanto às respectivas distâncias ótica e tátil, relações estranhas àquelas a que, durante toda a vida, ela estivera habituada.
De fato, é interessante observar como esse modelo foi construído pelas especulações e experimentos de cientistas como o já citado Berkeley, por exemplo, em sua Nova Teoria da Visão (1907). Relata Capello (CAPELLO, s/ data, p. 51):

“ Locke no Ensaio sobre o Entendimento Humano, já havia apresentado o problema que lhe fora proposto por Willian Molyneaux: (...) Suponha um homem nascido cego, que, quando adulto, aprendeu a distinguir, pelo tato, um cubo e uma esfera de mesmo material e tamanho, de modo a poder dizer, ao tocar um e outro, qual é o cubo e qual é a esfera. Suponha, então, que o cubo e a esfera são colocados sobre uma mesa e que o homem cego passe a enxergar. Eu pergunto: pela visão, poderia ele distinguir a esfera do cubo, antes de chegar a tocá-la?”

Segundo o cientista a resposta só poderia tender para a negativa pois, ainda que, pela experiência, ele saiba como a esfera e o cubo afetam seu tato, ele não teve a experiência de como aquilo que afeta seu tato, deve afetar sua visão. (BERKELEY apud CAPELLO, idem, p. 52).
Essa é uma página fascinante da história, a da aquisição do instrumental teórico do saber ocidental moderna. A teoria só foi comprovada empiricamente em 1728, quando um cirurgião de nome Willian Cheselden, removeu a catarata dos olhos de um menino de 13 anos:


“Quando ele viu pela primeira vez, estava tão impossibilitado de julgar distâncias que pensou, como ele mesmo disse, que todos os objetos tocavam seus olhos, como quando sentia que tocavam sua pele.” (Idem, p.52)

Relato admirável, dispara uma série de associações possíveis com toda a história da filosofia, dos pré-socráticos à pós-moderna caverna platônica dos Wachowski Bros. (Matrix, 1999).
Além da ruptura, para Ellie, das categorias habituais de espaço também a noção costumeira de tempo, talvez a mais insensível de todas, revelar-se-á, mais tarde, relativa.
Desconfiamos que haja somente uma dimensão em nossa cultura que tenha equivalência com esse ambiente imponderável em que a nossa personagem se encontra e essa é o sonho. Lugar (? estado?, período?) em que grande parte das relações habituais do 'real' quedam implodidas, retrospectivamente incompreensíveis. Quem nunca teve um sonho em que reconhecesse alguém com o máximo de certeza sem que para isso tivesse acesso ou mesmo necessidade de recorrer a qualquer aspecto acidental exterior? Ou no qual uma pessoa fosse, simultaneamente, ela mesma e outra pessoa, ou qualquer outra coisa ao mesmo tempo? Isso a título de exemplo pois, quem pretendesse elencar o repertório de 'incongruências' do onírico seria presa de um exercício virtualmente infinito! Tal tarefa já é por si surreal! Os surrealistas que o digam.
A experiência inicial do Contato acontece num nível biográfico, pessoal, envolvendo a totalidade da experiência humana. De fato não chegamos a conhecer muito o alienígena pois o horizonte possível entre o que ele deixa entrever de si e o que conseguimos apreender é constituído a partir de categorias partilhadas, mais ou menos familiares com as quais somos capazes de lidar. Novamente Wagner:

“Um antropólogo experencia, de um modo ou de outro, seu objeto de estudo; ele o faz através do universo de seus próprios significados, e então se vale dessa experiência carregada de significados para comunicar uma compreensão aos membros de sua própria cultura”. (WAGNER, op. cit., p. 29)

A experiência entre Ellie e o alien é o estabelecimento de um Contato que se pretende duradouro ('Small moves...') Por enquanto, sabenos que os aliens preservam um sentido de um percurso de tradição de longa duração ('isso é feito assim há bilhões de anos'), que se encontram comparativamente num nível de tecnologia superior ao nosso e que parecem não separar a 'esfera' científica do aspecto afetivo. Isso, porém, não implica que sejam melhores. Seria apenas mudar o foco de identificação, simplesmente transferindo a carga projetiva de Ellie para o alien. Ambos são, simultaneamente, objetos e exploradores, de si mesmos e um do outro.
O conselho que Theodor dá à pequena Ellie radioamadora, retorna ressignificado no devir da antropóloga: “Just be yourself.” Ele é fundamental para o efetivo Contato e, por mais que nos esforcemos, é muito difícil ter uma idéia de todos os problemas decorrentes do choque cultural experimentado pelo antropólogo no trabalho de campo. O grau máximo de que dispomos para uma comparação mínima é a nossa própria convivência cotidiana com pessoas de diferentes temperamentos.
E em se tratando de choque, há uma frase polêmica proferida pelo alien que de modo súbito implode todo um modelo de crenças - ou de certezas, se há ainda a essa altura alguma diferença entre elas - e instaura outro abalo imprevisto: ele afirma que Ellie tem “as mãos de sua mãe”, que ela não chegara a conhecer. Essa afirmação em particular compromete toda a ideia de que ele estaria usando os conteúdos mentais de Ellie para construir a interface 'Pensacola'. Fica no ar de modo desconcertante, o tema da morte e da sobrevida, mais um elemento de desequilíbrio em jogo. Seria o alien realmente o pai de Ellie como uma espécie de espírito evoluído que migrou para outro plano?
Nossa inclinação primeira seria a de criticar a doutrina do Espiritismo como construção e por a nu suas contingências como produto humano historicamente situado. De toda forma, ela é uma resposta dada, ainda que pesem todas as questões que envolvem, a necessidade da religião para as pessoas enquanto depositário de sentido, a defesa contra uma experiência de crise psicológica, a instâcia de dominação ideológica, o espaço intersubjetivo de troca comunitária entre tantos outros fatores.
Obviamente, não só a religião, como todas as instituições estão sujeitas ao crivo da relatividade desconstrutiva, como bem temos experimentado num presente recente através das reflexões do Estruturalismo, da Nova Históia, da Virada Icônica. Nossa recusa em considerar o aspecto religioso como legítimo funda-se nas raízes históricas da reação iluminista ao poderio polítíco e simbólico da Igreja, crítica que, passando pela denúncia de Nietzche ao aspecto inautêntico e degradante da moral cristã, questiona hoje a pretensão universalista de um ocidente monoteísta e eurocêntrico cujo Deus, Alteridade suprema, não passa de mais um simulacro. Como expressa Campbell em O Poder do Mito:

“Nosso desejo é pensar a respeito de Deus. Deus é um pensamento. Deus é um nome. Deus é uma ideia. Mas sua referência é a algo que transcende a todo pensamento. O supremo mistério do ser está além de todas as categorias de pensamento.”

ou ainda Gullar, em entrevista concedida ao programa 'Roda Viva' da TV Cultura: “_ O homem inventou Deus para que Este o criasse porque como diz o Waldick Soriano: Eu n sou cachoro não!”
Seria o pai-morto-ET de Ellie, um Iconoclash? Mistura de realidade e ilusão ícone, ídolo (paterno, inclusive) e psiqué (psiquém ?) que deixa em suspenso todo o sistema de postulados e crenças da personagem e por extensão também os nossos! Colossós virtualmente controverso, ele é sonho, sombra e fantasma.
Fato é que a abordagem semiológica e a atual prática antropológica colocam em cheque as próprias categorias de linguagem, pensamento... e categoria.
O alien busca dialogar com Ellie nos termos, códigos e valores da exploradora. Teria ele as mesmas concepções de “ sonhos maravilhosos” e “pesadelos terríveis”, sentimentos como solidão, tristeza e solidariedade? Importa-nos colocar isso tão somente para reforçar a ideia de que não podemos assumir o discurso do outro de modo ingênuo. Passando desse limiar, toda e qualquer afirmação que lançarmos sobre o outro, uma palavra que seja, não passará de mera suposição visto que encontra-se fora do limiar de nossa experiência fenomênica. O outro guarda uma alteridade radical, conceito bem explorado pelo filósofo Emmanuel Mounier e, no campo antropológico, por Tzvetan Todorov. Nunca saberemos. Resta-nos reelaborar a ocorrido nos termos de nossa experiência, criticando-nos a nós mesmos.
Dessa forma, o questionamento avança no sentido de abolir definitivamente o modelo cêntrico como se vê nas abordagens estruturais e mais recentemente de devir sistêmico, abolindo definitivamente um paradigma que se revela insuficiente e seguindo em busca de outras respostas. Citamos como exemplo, a abordagem, no campo da psicanálise por Rorty (referido no texto de Ana Maria Lofreddo):

“Enfim, haveria duas maneiras de interpretar o deslocamento coperniciano promovido por Freud, ao retirar a consciência do centro da vida psíquica (Bezerra, 1994). De um lado, considerando que esse centro estaria noutro lugar; a análise se voltará, então, a sair do superficial em busca do profundo, do ilusório em busca do verdadeiro, do contingente em busca do essencial. A outra maneira inspirada pelas idéias que estão sendo exercitadas aqui , representada pela linguagem antiessencialista de Rorty (1989), que se ampara nas concepções de Davidson (1982), Wittgenstein (1979) e Austin (1990), entende que essa novidade instaurada por Freud "... põe abaixo todas as distinções tradicionais entre o mais alto e o mais baixo, o essencial e o acidental, o central e o periférico. Ele nos deixa com um sujeito que é um tecido de contingências..." (Rorty, 1989, p. 32).


Podemos ver assim, que as várias análises (psicológica, semiológica, sociológica, etc.) são todas válidas em algum momento. Imprescindível é saber evitar o reducionismo do “sta” .
Quanto à análise fílmica, pretende analisar o objeto como aquilo que é: produção de nossa própria cultura, película, obra de ficção inserida num circuito doméstico de entretenimento não podendo assim fugir aos ditames da forma cinematográfica tradicional, de uma narrativa transparente, da própria língua vernacular e de uma gramática visual familiar, compreensível a um grande contingente de pessoas. Mais importante para a nossa investigação em curso, é o fato de que, configurado numa forma determinada constitui-se, enquanto imagem e discurso, como metáfora.
O filme, como representação é, na sua recepção, fonte de conhecimento, objeto de fruição estética e vetor de relações sociais. Assim, como a rede de caça Zande na exposição Arte/ Artefato sob curadoria de Susan Vogel, como agência de seu(s) autor(es), provisória ou permanente ausente(s). Informando um modelo de caçador e de presa para assim poder estabelecer um sistema de contatos, pode ser considerado obra de arte.
É também assim, presa no emaranhado dessa rede - essa Ponte de Einstein-Rossen - que Ellie vai experimentar a autêntica experiência antropológica do Contato, mediante um deslocamento radical e de uma saudável objetividade relativa. Porque torna-se exploradora também de si, e de seus 'conTerrâneos', e estranha a ambos, é que ela vai enfim realizar a vocação que carrega seu nome (Ellie Anne, corruptela, na língua inglesa, de ‘alien’), resultando estrangeira onde quer que se encontre:

“I had an experience. I can prove it. I can even explain it. But everything that I know as a human being, everything I am tells me that it was real.
I was given something wonderful, something that changed me forever. A vision of the universe that tells us undeniably how tiny and insignificant, and how rare and precious we all are. A vision that tells us that we belong to something that is greater than ourselves, that we are not, that none of us, are alone.
I wish I could share that. I wish everyone, if only for a moment, could feel that awe, and humility and hope. But that continues to be my wish.”

Torna-se compreensível desse ponto de vista a afirmação do Theodor-alienígena:
“_ See, in all our searching, the only thing we found that makes the emptyness bareble is each other.”
Assim, o antropólogo não precisa necessariamente ser um explorador de campo para experimentar a invenção da cultura: “(...) pode-se dizer que ela ocorre toda vez e onde quer que algum conjunto de convenções “alienígena” ou “estrangeiro” seja posto em relação com o do sujeito” (WAGNER, 2010, p. 39).
Gostaríamos finalmente de 'dizer' (a propósito, há uma voz na sua cabeça enquanto você lê isso?) que, durante esse período de estudo e reflexão fomos surpreendidos pela percepção de que, guardadas as especificidades de cada uma dessas construções, a antropologia tem em comum com a arte o fato de ser, também de um modo dinâmico, uma instância essencialmente disruptiva, criativa e agregadora de ideias, de pessoas, de suas produções, significações e afetos.
Usando de “licenciosidade poética” talvez Ellie não devesse se preocupar tanto. O poeta não precisa ir às estrelas, ele as encontra aqui mesmo sem precisar sair do chão. Ele as tem nos olhos e na palma da mão.
Assim, permitam-nos concluir com o mesmo Gullar que abre nossas reflexões. É com o poeta - que diante de uma forma de expressão que julgava obsoleta, ambicionava a despropositada poesia na qual a linguagem nascesse junto com o poema - poesia impossível, reconhece, já que a linguagem antecede o poema - , com ele é que encerramos:

“O outro é o sentido, mas de onde tudo isso veio, não existe resposta.”



Referências Bibliográficas

_ BERKELEY, George. Dos Infinitos, Trad. Jean Rodrigues Siqueira, Trans/Form/Ação, São Paulo, 28 (2), 2005.

_ CAPELLO, Maria A. Camargo. Berkeley, A Natureza como Linguagem, In. Col. Mente, Cérebro & Filosofia), Rev. Mente & Cérebro, Ed. Duetto, 2 a , ed.

_ GOLDSTEIN, Ilana, Reflexões sobre a arte “primitiva”: O caso do Musé´Branly, In. Horizontes Antropológicos, vol.14, n o .29, Porto Alegre, janeiro/ junho 2008.

_ LATOUR, Bruno. O que é Iconoclash? Ou Há um Mundo além das Guerras de Imagem?, Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 14, n o . 29, janeiro/ junho 2008.

_ LÉVI-STRAUSS. A Via das Máscaras, Lisboa, Ed. Presença, 1979.

_ LAYTON, Robert. Antropologia da Arte, Col. Arte e Comunicação, São Paulo, Ed. 70, 2001.

_ MONK, Ray. Bertrand Russel. Matemática: Sonhos e Pesadelos, São Paulo, Unesp, 2000.

_ SILVA, Tomaz Tadeu da. O Currículo como Fetiche: a Poética e a Política do Texto Curricular, São Paulo, Ed. Autêntica, 2006.




Sites

_ GULLAR, Ferreira, o poeta aos 80 (Excerto do programa 'Roda Viva', exibido em 28 de Fevereiro de 2011, pela TV Cultura.)
Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=4gEGCMMDVXY

LOFFREDO, Ana Maria. Par olas freudianas: as narc icas feridas e o arque ogo, In. Jornal da psican ise., v.39, n.70, S Paulo, junho 2006.
Disponível em:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S0103-58352006000100019&script=sci_arttext

TOSSATO, Claudemir R. A fun o do olho humano na tica do final do s ulo XVI, In.Scientiae studie, vol.3, n o .3, S Paulo, julho/setembro 2005.
Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1678-31662005000300004




Vídeos

_CAMPBELL, Joseph. O Poder do Mito (entrevista com Bill Moyers), DVD 1, Log ON ed.multimídia, 1988.

_ Contato ( filme, Parte 1)
Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=fiU77PamYls

_ Contato ( filme, Parte 2)
Disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=xCy5GqYqPmU&feature=related

_ Contato ( filme, Parte 3)
Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=1wSj74kLHKs&feature=related

_ Contato ( filme, Parte 4)
Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=eyYdJ_YgUmQ&feature=related

_ Contato ( filme, Parte 5)
Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=7a1iKvttEAk&feature=related

_ Contato ( filme, Parte 6)
Disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=EOntR_aPzeE&feature=related

_ Contato ( filme, Parte 7)
Disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=MEOkjDGP00w&feature=related

_ Contato ( filme, Parte 8)
Disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=RVljE2MjxDU&feature=fvwrel

_ Contato ( filme, Parte 9)
Disponível em: http://www.viddler.com/explore/FactVsReligion/videos/51/

_ Contato ( filme, Parte 10)
Disponível em: http://www.viddler.com/explore/FactVsReligion/videos/52/

Sobre os museus de arte

Nossas reflexões se desenrolam frente a uma constatação: há um mal-estar provocado, há muito, pelos museus, encarados como “cemitérios da arte” desde Alphonse de Lamartine (1790-1869), passando pela radicalidade modernista, avessa a toda e qualquer conservação do passado e expressa no Manifesto Futurista até, mais recentemente, à revolução cultural de 1968, onde a classe estudantil francesa, defendia enfaticamente que era preciso “incendiar o Louvre” (cf. MENESES, 1994, p. 11).
Curioso observar hoje que a memória do poeta Lamartine conta com seu próprio museu, - Le Musée Lamartine em Mâcon, sua cidade natal, perto de Lyon; desde 1969, ano do centenário de sua morte, essa antiga mansão privada do século 18, abriga uma coleção de documentos sobre sua vida e obra.
Igualmente irônico é o fato de que a estética fantástica das novas “catedrais” da arte, observada por exemplo, na mostra “Museus do Século 21” no museu Pergamon, Berlim, em 2008, mostra que conta com expoentes da arquitetura espetacular como Frank Gehry e Daniel Libeskind, seja chamada precisamente de “mostra de museus futuristas”.
Parece que, a despeito da controvérsia acirrada da morte da arte, da história, e da história da arte (e de seus respectivos renascimentos), o museu permanece incólume, sobrevivendo a tudo e a todos.

Museu Valéry-Proust

“Ninguém deveria, porém, se tranqüilizar com reconheciment geral da situação negativa. Uma disputa intelectual, como a referente aos museus, deveria ser travada com argumentos específicos.”

Esta contundente assertiva, atualíssima, poderia constar em qualquer publicação corrente de Arquitetura ou poderia facilmente ser interpretada como fragmento transcrito de um pronunciamento recentemente feito por ocasião de algum Congresso Internaional da área.
A frase é de autoria de Theodor Adorno (1903 - 1969) e está contida em seu artigo Museu Valéry-Proust, escrito em 1953, e publicado no mesmo ano. Nele o pensador aborda de forma bastante interessante tal problemática, já repisada, mas sem perspectiva imediata de solução facilmente articulável.
De fato, várias dessas questões encontram-se intimamente relacionadas aos desafios com os quais ainda hoje temos de lidar, dentre elas assinalamos a da função, importância e destino dos museus de arte; do valor, natureza e conformação de seu acervo; das diferentes perspectivas envolvidas - do artista, do observador, do curador. Devemos somar a estas, naturalmente, a do historiador da arte e teremos algo com o que trabalhar.

***

O ponto de partida da análise do autor é a análise historiográfica que contrapõe dois escritos literários: O problema dos Museus, de Paul Valéry e o terceiro volume de À Sombra das Moças em Flor*, de Marcel Proust, são documentos realmente díspares mas não tiveram, originariamente, a intençãode serem polemicamente opostos.
Em ambos os autores, Adorno estabelece como fator comum a ambos, o prazer da fruição através da obra de arte. A partir daí segue propondo alternativas, relativizando o que seja a obra de arte, o museu e todos os seus desdobramentos lógicos. De fato, grande parte da riqueza de seu texto advém da crítica sistemática e desconstrutiva que aplica a praticamente todos os conceitos estabelecidos relacionados ao universo estético e museal. Ele conversa conosco.
Aborda, por exemplo, tanto a questão das tentativas malfadadas de uma contextualização canhestra, anacrônica, sem sentido, como das tentativas supostamente modernizantes de resgate da obra em si, que buscam situar o antigo e “sagrado” no ambiente cotidiano, “profano”, numa tentativa de preservar a qualquer custo, os artefatos, que permanecem ainda assim deslocados e vazios.
Uma das questões principais é sobre a própria função do museu. Na palvras de Valéry ( 1931, p. 32):

“Vim instruir-me ou buscar encantamento, ou, de outro modo, cumprir um dever e satisfazer convenções? Ou, ainda, não seria este um exercício de tipo particular (...)?”
Identificamos aqui a questão da diversidade de artefatos preservados, que comportam possibilidades de apropriação - seja como instrumentos de conhecimento histórico, seja como instâncias de prazer estético – e que por sua vez encontram-se insertos de maneira cumulativa num monumento também ambíguo, o museu.
A questão maior, então, fonte do mal-estar cultural, diagnosticado em Valéry-Proust e amplificada por Adorno é a questão da possibilidade dos museus de permitirem uma compreensão do mundo como realidade dinâmica, em constante transformação, e deixar entrever igualmente as forças que estão por detrás dessa mudança.

Museu Tradicional e TV
Este é um desafio que se coloca em várias frentes e levando em conta o contexto e a época do texto, bem como a afinidade do aporte crítico de Adorno com o universo dos media, gostaríamos aqui de traçar um breve paralelo entre a conformação museológica tradicional que ele põe em cheque e aquela da comunicação de massa, suas afinidades, especificidades e, se possível, pontuar soluções.
Se tomarmos tanto os museus como o veículo televisivo como conjunto de representações coletivas, veremos que há neles uma série de elementos em comum.
Em primeiro lugar são instâncias amplamente difundidas. Hoje, mais do que nunca vemos um movimento crescente de estímulo à experiência de visita aos museus como ambientes de encontro, de recreação familiar, ocasião privilegiada de aquisição de cultura e de entretenimento. Essas tarefas, à décadas, têm sido atribuídas aos programas de TV.
Em segundo, são experiências compartilhadas. Assim como comentamos entusiasmados a lembrança de termos experimentado uma tarde agradável no museu, termos desfrutado da oportunidade de estar diante de ícones consagrados da nossa cultura, que permanecem em nós, é também através dos antigos programas televisivos (desenhos animados, séries antigas, filmes, novelas, jogos esportivos) que reconhecemos um repertório mental de imagens e um patrimônio de memórias afetivas compartilhado, o que Proust chama “la postérité de l'oevre” (Proust apud Adorno, idem, p.181), e que constitui, por conseguinte a posteridade da tradição cultural. Eles são assunto nos poucos encontros de que dispomos, especialmente no contexto urbano das grandes cidades.
Além disso, esse repertório de imagens que compõe em grande parte a tradição cultural, privilegia sobretudo nosso sentido de visão. Como na experiência a TV, não nos é dado, como já observava irritado Valéry, aproximar-se mais das imagens, tocá-las, experienciá-las de modos diversos, mais espontâneos. Temos para ambos, códigos implícitos de fruição, que se supõem naturais e transparentes mas que não fundo revelam-se convencionais e arbitrários. Qual o alcance da nossa liberdade ao desfrutamos tais instâncias de lazer e aperfeiçoamento pessoal?
Ambos operam a partir de discursos predominantemente visuais - discursos que encerram valores, visões de mundo - sobre o que foi/ é(/ será) a realidade anulando outras possíveis leituras e interpretações.
Além isso, há obviamente o fato de que ambos compõem-se ou são munidos de dispositivos, supõem, como produto materiais, um mercado, público alvo e mecanismos de propaganda.
Contudo, guardadas as proporções, e a despeito de tais similitudes, tal analogia revela-se bastante frágil. E isso porque entre as especificidades do museu, o âmbito de ação em relação a este é muito maior do que na indústria televisiva, por exemplo. O museu é espaço de circulação e cremos poder transmutar-se mais facilmente em via de mão dupla para as idéias, comportamentos e atitudes. Por incrível que possa parecer o museu é mais passível de dinamicizar-se que a TV. Essa constitui um vetor unidirecional enquanto aquele pode servir como espaço que comporta vetores de relações mais dinâmicas. Artistas, observadores e curadores enquanto cidadãos têm a possibilidade de utilizar-se, de forma cooperativa, de seus saberes para engendrar uma visão crítica do museu e da realidade através de ações pontuais que os integrem em experiências como as do Moinho Colognese, em Ilópolis, na Serra Gaúcha que, apesar de não se enquadrar propriamente ao museu de arte, que quisemos aqui privilegiar, aponta,contudo, para soluções interessantes nos campos de gestão comunitária, mínima intervenção e preservação auto-sustentável do patrimônio local e da memória do grupo.



Referências bibliográficas

_ ADORNO, Theodor W. Museu Valéry-Proust In Prismas: crítica cultural e soiedade, Trad. Augustin Wernet e Jorge de Almeida, São Paulo, Ed. Ática, 1998.

_ MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. Do teatro da memória ao laboratório da História: a exposição museológica e o conhecimento histórico, In Anais do Museu Paulista, v.2, 1994.

_ VALÉRY, Paul. O Problema dos Museus (1931), Trad. Sônia Salzstein, Rev. ARS (São Paulo), vol.6, n.12, pp 31-34. julho/Dezembro, ECA – USP, 2008.

Sites

_ CRESCENTI, Marcelo. Mostra em Berlim destaca museus de arquitetura futurista, Artigo na BBC Brasil, 24 de março, 2008.
Disponível em: http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2008/03/080321_museusfuturistasmc_fp.shtml

_ OECHSLIN, Werner. Museus do Século XXI: Conceitos, Projectos, Edifícios, Lisboa, CulturGest, Grupo Caixa Geral de Depósitos, 2008.
Disponível em: http://www.culturgest.pt/docs/museus_sec_xxi.pdf