30 agosto, 2010

Inquietude

Alvoroço repentino, súbita vontade de criar algo, dar vazão ao gestual anárquico do corpo que segue suas próprias regras, lutando contra essa obsessão da ordem racional e do auto-controle. Vontade de sujar tudo de cores como num gozo contido e longamente esperado.
Sim, gozar pra pelo menos dessa vez abortar Atená, ave cesária que irrompe à janela do ovo-cuca, nesse parto mais das vezes não natural.
Sim, preparar o gozo, que outra coisa se gesta e engole os miolos com pensamentos e tudo. Ave noturna, soturna e agourenta. Equidistante do galo madrugador, que canta a aurora do que há de vir e do corvo que colhe o brilho do olho que não mais há de ver.
Pomba-rola, que se infla ternamente no tesão da manhã. Pomba paz e amor.
Fênix renascida no peito. Se levanta.
Grávido de um parasita autoimplantado , paralisado, atônito e exultante, espero em dores, carne e entranhas carcomidas, ligamentos rompidos, o reverberar do grito primal espumado.
Viro do avesso.
Morro e renasço univitelino. Monstro ipsilone de carne e som, bicéfalo apolodionisíaco.

Vejo você onde não tem.

Sem qualquer esperança
Detenho-me diante de uma vitrina de bolsas
Na avenida nossa senhora de copacabana, domingo,
Enquanto o crepúsculo se desata sobre o bairro.
Sem qualquer esperança
Te espero.
Na multidão que vai e vem
Entra e sai dos bares e cinemas
Surge teu rosto e some
Num vislumbre
E o coração dispara.
Te vejo no restaurante
Na fila do cinema, de azul
Diriges um automóvel, a pé
Cruzas a rua
Miragem
Que finalmente se desintegra com a tarde acima dos edifícios
E se esvai nas nuvens.
A cidade é grande
Tem quatro milhões de habitantes e tu és uma só.
Em algum lugar estás a esta hora, parada ou andando,
Talvez na rua ao lado, talvez na praia
Talvez converses num bar distante
Ou no terraço desse edifício em frente,
Talvez estejas vindo ao meu encontro, sem o saberes,
Misturada às pessoas que vejo ao longo da avenida.
Mas que esperança! tenho
Uma chance em quatro milhões.
Ah, se ao menos fosses mil
Disseminada pela cidade.
A noite se ergue comercial
Nas constelações da avenida.
Sem qualquer esperança
Continuo
E meu coração vai repetindo teu nome
Abafado pelo barulho dos motores
Solto ao fumo da gasolina queimada.

Pela Rua, poema de Ferreira GULLAR in Dentro da noite veloz (1962-75)