13 julho, 2011

Yes, we cane!

Estive pensando recentemente na figura significativa do aleijado, "the crippled", na sua presença constante e de certa forma insuspeita em meu repertório pessoal de imagens.
Se me fosse possível determinar um ponto cronológico determinante, consciente, acredito que poderia ser quando de meu primeiro HTP.
O HTP é um antigo teste projetivo de desenho aplicado no diagnóstico de personalidade e faz parte - hoje com menos relevância, suspeito eu - do instrumental utilizado no processo terapêutico.
Como as iniciais indicam, consiste no ato de desenhar três figuras em grau crescente de complexidade: uma casa (House), uma árvore (Tree) e uma pessoa (Person), além de proceder ao preenchimento de algumas questões sobre cada uma dessas figuras em particular, conforme solicitado ao 'analisando'. Naturalmente tudo é levado em conta, desde hesitações, até à orientação do papel, o uso da borracha, etc. etc. Interessa-me aqui sobretudo o desenho da pessoa que à época impôs-se a mim no papel: um homem ereto, de elevada estatura, trajando roupas formais, peças sobrepostas em camadas - camisa de alto colarinho, gravata, calças cingidas, colete, terno, sobretudo - cabeça encimada por uma distinta cartola. Um verdadeiro dândi - embora na ocasião eu ainda não conhecesse o termo. Uma das mãos rente ao corpo e outra firmemente apoiada sobre uma irrepreensível bengala. Inegável condensação de controle, defesa e agressão.
Resgatada essa figura, pus-me então a pescar de memória ícones afins aos quais me sentia ligado, aos quais me identificava de um modo ou de outro.
Dr. House de imediato, mais próximo a mim no tempo - bem como em muitos aspectos de meu próprio imaginário e disposição anímica.
Depois o paranóico Winston Smith de Orwell que, apesar de não se utilizar da bengala, ostentava uma repelente variz, uma chaga ulcerosa e comichante no tornozelo, visível sintoma que lhe tolhia o gozo pleno, dos movimentos e da vida.
O disforme ferreiro Hefesto (também conhecido como Hefaísto ou Vulcano), único deus grego fisicamente defeituoso, me acompanha coxeando desde longa data, martelando em recolhimento e fúria, condensando ódio fumegante e transmutando-o em beleza e perfeição.
O furioso e louco Alexander DeLarge (moralmente aleijado?), e sua bengala fálica, desejosa de violar quem atravessasse seu caminho.
O Mahatma, pequeno Gandhi a se inssurgir e a resistir com sua postura flexível mas firme contra todo o Imperio britânico na Índia.
Moisés, a abrir com seu bastião teriomórfico o mar, caminho sinuoso entre as uróboras águas vermelhas.
O sumamente ingênuo Forrest Gump, sempre a correr apavorado da ameaça do dano físico - mas mais angustiante, a correr precipitada e inconscientemente do invisível e intangível, mas não menos contundente, destino inexorável - era sustentado por tutores ortopédicos, arautos mecânicos, batedores que acompanhavam e restringiam seu passo.
Oscar Wilde, fera esplêndida, recolhido por dois longos anos ao circo claustrofóbico de uma sociedade sensacionalista, mas que, por razões outras, maiores, converteu-se em espetáculo, transmutando-se num verdadeiro "tigre de bengala" a desferir seus golpes de feérica ironia contra aqueles que o pretendiam domar.
O próprio Édipo que, ao abrir só muito tardiamente os olhos para sua trágica condição, arranca-os inúteis das órbitas, assumindo o paradoxal cajado do não-vidente que tudo vê com clareza, e, se até então parece-nos irremediavelmente retardatário, antecipa agora sua condição de animal trípode, do velho cansado à frente do qual não há mais nenhum enigma, pois vislumbrou de modo precoce tudo o que havia de essencial para ser visto.
Também Fera (the Beast), integrante do esquadrão X, criatura bizarra que, literalmente trocando os pés pelas mãos, se afunda mais em sua inadequação na tentativa frustrada de, deitando-se no leito de Procusto que constrói para si, mutilar o animal e assim alcançar a normalidade.
Mestre Yoda, Gandalf, Carlitos, Hermes e seu camafeu, Toulouse-Lautrec, Asclépio, Charles Xavier, os aleijados de Brüeguel, Stephen Hawking, Fred Astaire (Puttin' On the Ritz), Simon Bishop (As Good as it gets), Dan (Animatrix - The World Record episode)...
Tudo isso me fez pensar em minhas muitas muletas condensadas nesse artefato controverso e seus contatos recíprocos com outros objetos funcionais e simbólicos: o cajado do Pastor, o bastão xamânico, o cetro real, a lança, o poste, o báculo episcopal, o taco de beisebol, a estaca e o esteio da vindima, o melancólico guarda-chuva, o totem, o obelisco, a cruz, o áxis, a Árvore, o pára-raio do raio sibilino.
Muletas. Objetos que são confissões tácitas e eloqüentes de nossas próprias limitações e imperfeições, fontes de apoio, de agressão, de orientação, de defesa, de status. Extensões, prolongamentos, ferramentas, órteses, armas, próteses, vetores, amuletos, eixos, mecanismos, discursos, cânones, monumentos, virtualidades, agências.
São de uma só feita chifres, cascos e falos ostentosos, armas, couraças e estandartes, daqueles que, coxeando num declive infinito, tortuoso abismo espiralado, lamentam a perda e insuspeita do que pode algum dia ter sido um par exuberante de asas e carregam a dávida dolorida do cacho pendente, espremido entre as patas igualmente tortas, que se alternam, uma após outra, projetando-se ao longo de um lancinante fractal descendente. Coxos, cegos. Para onde?