09 agosto, 2010

O Importuno

O Importuno – Almeida Júnior

A obra retrata uma cena de interior representando episódio do cotidiano doméstico. Pode ser dividida, basicamente, em dois planos.
No plano ao fundo, há uma figura masculina. Pele clara. Cabelos pretos. Enverga uma espécie de túnica longa, de um violeta escuro e porta na mão esquerda, à maneira usual dos pintores, uma paleta retangular em que se podem divisar porções de tintas de diversas matizes, perfazendo um degradée preciso que, da esquerda para a direita, vai do tom mais escuro ao branco mais luminoso. Segura também pincéis. É sem dúvida um artista. Tem no topo da cabeça uma boina característica. Sua mão direita afasta um cortinado que pende do canto superior direito do quadro. A cortina, por sua vez, exibe um marrom escuro, marcado por estreitas listas horizontais, ocres e também de um outro tom, dificilmente distinguível, o mais escuro do tecido. Parece servir de anteparo, isolando o aposento que ora vemos daquele que lhe é contíguo. Encimando a porta, um escudo heráldico sob dois rifles, cruzados à meia altura dos canos. O pintor parece vislumbrar algo ou alguém que se furta ao alcance de nossas vistas, mas que é certamente visto por ele.
Ainda nesse plano, podemos ver nas paredes de um violeta pálido, uma paisagem que à primeira vista dá-nos a impressão exata de uma janela, mas cuja moldura denuncia como sendo obra do pintor. Igualmente, a presença sugerida de uma outra obra, de menores proporções, a essa superposta.
Imediatamente atrás da figura do homem, uma cadeira de madeira clara, torneada, donde pende um panejamento, talvez seu casaco. Em frente ao assento, um cavalete. Também um móvel reduzido, forrado por uma peça de tecido verde cuja barra é inteiramente ornada por rendas amarelas, pequeno cubo de tom escuro onde se apóiam os apetrechos de ofício do artista: valise, frasco com solvente, mais pincéis, pano para a limpeza destes. No cavalete, uma pintura incipiente: uma figura branca, negra cabeleira, ligeiramente recostada não se sabe onde pois ainda não há fundo. Dela só podemos distinguir o busto matizado e todo o restante resume-se ao contorno esboçado do corpo e do pano de fundo, levemente definidos.
Toda a metade esquerda do quadro constitui o primeiro plano. Nela encontramos uma figura de mulher, cabelos pretos, presos num coque ao alto da cabeça. Tem a pele clara como o pintor, mas nessa, predomina um tom mais encarnado, especialmente na face, sanguínea. Está trajando na parte superior uma peça branca, muito fina, cortada por listas cor de laranja ou vermelho pálido, que deixa entrever amplamente o colo e os braços nus. Por cima deste, um corpete de um violeta desmaiado lhe marca a silhueta delgada. Veste também um saiote claro, de aspecto similar ao da blusa, mas sem estampas, que se estende até pouco abaixo dos joelhos. Tem os pés e panturrilhas cobertos por meias tipo três quartos que, com exceção de uma estreita faixa horizontal que as encima, é dominada por um tom bastante escuro. Sua atitude parece ser de sobressalto e pudor. Atrás de si, encontram-se os sapatos dispostos em leve desalinho. Do espaldar de uma cadeira, idêntica à que usa o pintor, pende o vestido composto por um panejamento de um negrume sólido com áreas de tecido claro marcado por faixas de cor escura. Esses utensílios, situados à extrema esquerda, mesclam-se na penumbra a que os confina outra densa cortina. Esta parece querer separar agora, o atêlie do pintor do ambiente em que se encontraria o observador do quadro.
A jovem encontra-se atrás de uma tela emoldurada pousada sobre um cavalete robusto, munido com pequenas rodas nos pés para facilitar sua locomoção. Sobre o conjunto, que lhe serve de proteção, como um biombo, está depositada uma peça de tecido menos transparente, talvez uma peça intermediária de sua indumentária, vestimenta que cingia mas que retirou por um motivo bastante específico: é ela a modelo que ora posa para o artista que acabara de iniciar seu trabalho.
Alguém, contudo, solicitou a presença deste ou sua pronta resposta e viu-se compelido então a atender ao chamado.
Abaixo à direita, um fragmento bastante indefinido de um objeto insinua-se, como que projetando-se para dentro do quadro. Supomos ser a borda de um manto de peles que cobre um canapé ou estofado onde posava a modelo antes do importuno e que parece estar igualmente esboçado na tela do pintor, que temporariamente se ausenta. No canto direito, ainda em primeiro plano, anuncia-se, sobre um assoalho de madeira, um tapete à moda persa com seus arabescos de cores vermelhas, azuis e pardas. A luz advém de uma fonte precisamente acima do recinto. Talvez uma clarabóia, visto que não parece imprimir o tom amarelado característico da iluminação artificial.
A superfície de longos tacos, dispostos de forma a cruzar horizontalmente a tela recebe em cheio a luminosidade intensa que invade a cena. Suas linhas servem para equilibrar a verticalidade do cavalete de grande porte que atravessa o centro do quadro demarcando nitidamente os dois planos básicos da composição. Vários elementos apresentam tal caráter ortogonal (quadros, pequeno móvel, segundo cavalete, listras da cortina) mas a composição é especialmente caracterizada pelos elementos transversais, linhas diagonais que servem como guias, conduzindo, o olhar do espectador para o desenrolar da cena ao fundo. Isso é feito por um arranjo de elementos primários e fortes que o fazem de modo flagrante (olhar da modelo, linhas inclinadas do primeiro e segundo cavaletes, bem como do móvel escuro) e por componentes secundários que, gradativa e sutilmente reforçam indiretamente esse percurso (a orientação do tapete persa, bem como as divisões que delimitam perpendicularmente as longas tábuas levam à tela em andamento, desta para o vermelho muito vivo, central no degradée na paleta do pintor e assim para este, absorvido pela temporária distração.
É significativo que o título da obra denomine o invisível da pintura, esclarecendo e, de certa forma, enriquecendo o sentido da composição. Se é uma voz, se é familiar ou estranha, nunca saberemos ao certo. A natureza do importuno permanecerá para nós um mistério. Seu autor, desconhecido.
Mas, a bem da verdade, há outro elemento invisível e anônimo no conjunto e este é o olhar: permanecemos nós, espectadores, testemunhas furtivas e silenciosas do acontecimento. Diante dessa mágica janela, divide-se nossa curiosidade entre a possível e misteriosa fonte de tal importuno e a nudez duplamente interditada, mas também duplamente sugerida da modelo. Como assim? - perguntaria o leitor. Primeiro pela atitude cuidadosa com que cobre seu corpo. Ao mesmo tempo que escrupulosamente recolhe instintivamente o saiote sobre as coxas, no gesto mesmo de fazê-lo, evidencia o colo nu, o volume do busto, marca detidamente a silhueta das ancas, deixa entrever algo das pernas, ainda objetos de tabu na época. Segundo pela suspensão da atividade do pintor, átimo, mas além do qual nada mais da cor carnal da mulher será revelada, nada além daquela mancha evanescente que se estendeu até o seio lácteo - e que não prosseguirá - mas que o desenho de um corpo completamente nu nos revela através de seus contornos.




Espectador observa a obra de José Ferraz de Almeida Junior, “O importuno”, 1898, óleo sobre tela, 145x97cm, Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo.


São aqui facilmente identificáveis os elementos de leve erotismo, característico das pinturas do Salon e o aspecto de decoro, pré requisito da pintura acadêmica. Poderia ser caracterizada na época como pintura de gênero.
Tal afirmação estaria em concordância com a existência de um outro ‘Importuno’, de autoria de Pedro Weingärtner (1853 – 1929), obra datada de 1919 (posterior, portanto, à obra de Almeida Júnior, mas que poderia sugerir que este seria um motivo usual na pintura de gênero). Também reforçam essa assertiva, como veremos mais à frente, dados de que dispomos relativos à biografia do pintor paulista. Em especial o fato de ter estudado pintura sob a tutela de Alexandre Cabanel. Outras influências diretas são Jules Le Chevrel (ca.1810 - 1872) e Victor Meirelles (1832 - 1903) dos quais foi pupilo. Sua obra conversa igualmente com a de outros artistas da época como Thomas Couture (1815 - 1879), William-Adolphe Bouguereau (1825 - 1905), Paul-Jacques-Aimé Baudry (1828 - 1886) e Alfred Agache (1843 - 1915).



O Importuno (detalhe), 1919, obra de Pedro Weingärtner, óleo sobre tela.



Pintura de Gênero

A estética do quadro em questão, usualmente classificada de pintura de interior, tem suas raízes na pintura de gênero. Contruída historicamente desde a pintura flamenga dos séculos XV e XVI com expoentes em Jan van Eyck (ca.1390-1441) e Peter Bruegel, ‘o velho’ (ca.1525-1569), consolida-se na Holanda no século XVII com Jan Vermeer (1622-1669 ou 1670).
Tal estética apresenta-se também na forma de art pompier, termo cunhado principalmente pelos adeptos do Realismo dos séculos XVIII e XIX, em alusão irônica aos capacetes usados pelos bombeiros franceses que, explicitamente derivados da estética de formas clássicas, assemelhavam-se a elmos gregos. Era considerado um estilo um tanto artificial que extrapolava o decoro e desagradava o gosto estabelecido.
Convergindo com os ideais românticos, exibia igualmente características desse movimento - além do retorno ao clássico - a “afirmação das conviccções patrióticas, políticas ou religiosas”, e a “expressão dos ideais cívicos”.
Falando especificamente do Brasil, encontramos, quanto aos primeiros valores elencados, uma grande preocupação, especialmente se levarmos em conta a necessária consolidação política da identidade nacional. Nessa empreitada podemos contar um sem número de nomes da história da pintura nacional que contribuíram para a construção da imagética e da icônica nacionais. Entre eles podemos citar Victor Meirelles (1832 - 1903), Pedro Américo (1843-1905), Araújo Porto Alegre (1854-1857) e Rodolpho Amoêdo (1857-1947).
Quanto aos ideais cívicos, estes podem ser mais facilmente identificados na obra de Almeida Júnior. O artista conseguiu de forma extraordinária sintetizar e expressar em suas telas figuras como o caipira e o sertanista. A luminosidade de seus quadros é notadamente voltada para uma paleta naturalista, que reflete a atmosfera dos trópicos.
Seja qual for o lugar que reservamos à pintura de Almeida Júnior no panorama da pintura contemporânea brasileira, as críticas ao que na arte foi e é considerado artificial e afetado, ao ‘pomposo’, à ‘arte menor’, persistem em nossos dias com força e grassa a polêmica acerca de categorias sensíveis e estéticas, inovadoras ou mesmo recorrentes como por exemplo, o kitsch e o camp, que ressurgem com força na mídia, nos museus e também no debate teórico, dentro e fora do ambiente acadêmico.



Almeida Júnior
O Importuno , 1898
óleo sobre tela, 145 x 97 cm
Acervo Pinacoteca do Estado de São Paulo/Brasil
Reprodução fotográfica Romulo Fialdini


Almeida Júnior (1850 - 1899)

José Ferraz de Almeida Júnior (Itu – SP, 1850 - Piracicaba – SP, 1899). Ingressa na Academia Imperial de Belas Artes (AIBA) em 1869, onde frequenta aulas de desenho e de pintura. Conclui estudos em 1874, abrindo no ano subsequente, ateliê próprio onde atua como retratista e professor de desenho. Em visita ao interior de São Paulo, o imperador dom Pedro II (1825 - 1891) impressiona-se com seu trabalho e concede-lhe uma bolsa de estudos para a Europa. Vive em Paris entre 1876 e 1882 e estuda na École National Supérieure des Beaux-Arts [Escola Nacional Superior de Belas Artes], sendo aluno de Alexandre Cabanel (1823 - 1889). Durante sua estada na capital francesa, participa de quatro edições do Salon Officiel des Artistes Français. Regressa ao Brasil em 1882 e expõe na AIBA as obras produzidas em Paris. Instala-se novamente em São Paulo. Em 1886, Victor Meirelles o convida para ocupar sua vaga na AIBA como professor de pintura histórica, mas este declina o convite. Seu amadurecimento artístico, adquirido ao longo de todo o percurso como pintor contribuiu para a formação, em São Paulo, de novos artistas, dentre os quais podemos destacar Pedro Alexandrino (1856 - 1942).


Referências

CHRISTO, Maraliz de Castro Vieira - A Pintura de História no Brasil do Século XIX:
Panorama Introdutório - ARBOR Ciencia, Pensamiento y Cultura, CLXXXV 740 noviembre-diciembre (2009).
arbor.revistas.csic.es/index.php/arbor/article/download/386/387

Portal do Ministério de Cultura da França.
http://www.culture.gouv.fr/GOUPIL/FILES/ART_POMPIER.html

Encilopédia Virtual Itaú Cultural de Artes Visuais.
http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm

Pinacoteca do Estado de São Paulo.
http://www.pinacoteca.org.br/pinacoteca/

Obrér Cultural - “Ação educativa: aspectos da inclusão sociocultural em museus de arte” - Oficina prática com Gabriela Aidar.
http://obrer.wordpress.com/2009/08/08/inclusao-sociocultural-nos-museus-oficina-pratica/

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