09 agosto, 2010

Reflexões acerca do Corpo




No presente texto pretendemos, numa análise sucinta, registrar algumas impressões e percepções a respeito do olhar sobre o percurso trilhado durante o semestre letivo, percurso feito de imagens, discursos e suas relações dinâmicas, biunívocas, intermitentes, imprevisíveis que nos conduziram, ora por paisagens conhecidas e familiares, ora por panoramas alienígenas nos quais os sentidos pareciam se embotar e nossas categorias habituais pareciam não se aplicar, exigindo um esforço para se apropriar ou perder de vista conceitos, expectativas, antigos posicionamentos intelectuais e disposições afetivas.
Faremos isso predominantemente na forma de análise de uma imagem de foro íntimo, cujo conteúdo está inextricavelmente ligado à nossa própria experiência pessoal. Acreditamos que esse movimento de autodesdobramento venha ao encontro de uma abordagem ‘totalizante’, de uma nova aproximação sobre a reflexão sobre a arte, em sintonia com os questionamentos contemporâneos, correspondendo o próprio sujeito da análise a seu objeto. Disso resultarão momentos em que nos permitiremos uma aproximação mais pessoal, visceral, na qual não estarão excluídas afirmações em primeira pessoa, percepções e impressões pessoais, Buscaremos, todavia, na medida do possível, salvaguardar a forma culta e o respeito às convenções inerentes ao exercício do registro acadêmico.



A Epifania do Senhor Morto

“_Vá se acostumando!” - rebateu, com ares de troça, frente à minha perplexidade, mal disfarçada por um riso sardônico - “_É mais ou menos assim que você vai parecer! (risos)”
O que eu tinha em mãos era uma máquina fotográfica modelo semi-profissional e aquilo que eu contemplava era o resultado de uma brincadeira muito comum - e divertida - entre colegas de moradia universitária e que consiste em fotografar furtivamente o outro durante o sono. Sua eficácia está ligada, naturalmente, e de forma diretamente proporcional à taxa de álcool que o retratado consumiu na noite anterior.
Mas o que era pra ser engraçado parece ter surtido o efeito oposto e não pude conter uma espécie de mal estar à primeira vista daquela figura.
“_Nossa, mas parece que eu estou morto...”
No canto de um aposento imerso numa leve penumbra, uma figura pálida, aspecto de desalinho jaz em profundo sono sobre um fino colchão, único anteparo que precariamente separa o corpo, esse frágil objeto, do chão nu, superfície azulejada, quadriculada, laje exata e fria. A barba abundante e pronunciada, numa profusão de erva em campo não cultivado, há tempos abandonado, opõe-se à calvície de trinta e poucos anos, quase sempre coberta por um onipresente chapéu e muito raramente exposta.
Esse sólido, dupla ou triplamente objetivado que sou compelido a encarar é meu corpo, complexo geométrico anguloso e esquálido no qual tenho certa dificuldade de me reconhecer e maior ainda em aceitar.
É meu corpo fora de mim, capturado pela objetiva da câmera e a mim apresentado.


Observo. É também o corpo de alguém que dorme e que no momento parece estar ausente, como que tendo momentaneamente saído a passeio ou a resolver problemas, mas que deixou seu lugar reservado. Volto logo.
Mais ainda, é o desdobramento de alguém que mesmo antes de dormir, na alienação da noite anterior - tão afinada com a pós-modernidade, com suas intensificações, seus deslocamentos e procuras -, esforçara-se já em despedir-se voluntariamente de si e, nesse sentido (ou seria ‘na contra-mão’?) luta para recuperar um corpo estranho e algo distante que, no piloto automático, havia voltado sozinho para casa. Mr. Hide mexeu na configuração e os botões não mais funcionam como deveriam! Falta de sintonia, ruído, visão dobrada, fantasma, interferência, queda de conexão...
É estranho dizer “meu corpo” visto que quase nunca é algo que eu consiga (ou queira) objetivar a não ser no espelho. Mesmo assim é um espectro de certa forma irrefletido. Quase nunca recorremos ao espelho senão por uma preocupação convencional ou prática. Habitual. O ritual mecânico da higienização, uma ajeitada às pressas no cabelo, “_com que roupa eu vou?” Vampiros uns dos outros, não nos refletimos. “_É mesmo doce estar na moda?” Eis a questão...
Têm lugar aí o cuidado com a máquina biológica, a preocupação com a ditadura do olhar do outro e apressamo-nos em substiuir o ato de ver pela substituição mesma do corpo par les revêries des objets extérieurs, pelos devaneios dos acessórios e cosméticos dos quais tão zelosamente nos cercamos. Não que estas preocupações não sejam também válidas ou necessárias. Mas, a despeito da radicalidade da nossa corporalidade, conscientes ou não, perdemos a coragem ou a espontaneidade do exercício do olhar e nos contentamos com o ato displiscente de ver.
Em certas ocasiões, contudo, não nos é dada muita escolha e é nelas e a partir delas que somos convocados à contemplação evidente de nossas limitações como que imobilizados por um filósofo da caverna, às avessas: “_Pelo Cão, contempla a sombra do pretenso sepulcro que carregas contigo! Se divisares por muito tempo o sol serás um idiota e ele acabará por arruinar tuas vistas.” Soma/sema se intercabiam, se projetam e se mesclam numa amálgama indistinguível. Indivíduo. Nessas ocasiões extraordinárias, incorporamos Odin, o deus que para obter a plena sabedoria dispôs de um de seus olhos. Só assim pode o olho olhar-se a si mesmo no olho e adentrar no lugar da árvore sagrada, axis mundi, fundamento e essência do eterno no balé imutável do devir. Empunhando um tal olhar – punhal desarmado de metafísica - alcançamos nossas pequenas grandes iluminações.
Retornemos à imagem. Pode-se ler aí também um reclame de cerveja? Reclame que nenhuma empresa séria (e o que seria isto?) que trabalhe no ramo de bebidas nunca veicularia apesar da natureza cômica e sempre bem-humorada do comercial de cerveja que tanto diverte os adultos e os pequenos ("_Conquiste-nos desde cedo, é como deve ser!").
Há mascotes aí? Sim. Há o gato. Que melhor símbolo de domesticidade e dissimulação? De familiaridade e impessoalidade? Baluartes da carruagem de Freya, a quem era dedicada a sexta-feira (Freya/fri-day) a parelha de gatos conduz a deusa. Dia ansiado por todos, cai profano toda santa semana, com uma única exceção ao ano. Santa sexta-feira! Ocasião do happy hour que se estende após a jornada de trabalho (e não raro converte-se em boêmia) é a morte do dia útil e a reencarnação, sob o olhar de um Deus banqueiro e patrão, da inútil euforia do viver. Dia da permissividade institucional, nosso pequeno carnaval cotidiano, a sexta feira está intimamente ligada, no imaginário coletivo e no repertório cultural do Ocidente, ao gato, de temperamento volúvel e de comportamento devasso e traiçoeiro.
Este sorri, formidável garoto propaganda. Não é um gato qualquer. A figura que aqui vemos é ninguém menos que o próprio Garfield, personagem do cartunista Jim Davis, com sua coloração berrante e sua expressão zombeteira. Personificação irônica do tédio do homem moderno, mais especificamente do estereótipo do cidadão estadunidense, avesso ao universo do trabalho: repetição cíclica, penosa e sem sentido. Obeso, inadequado frente aos inatingíveis padrões de beleza que construiu. Consumidor contumaz do fast-food, da programação trash televisiva, turista do itinerário kitsch das praias da West coast. Preenchendo o laconismo hesitante, a pura indefinção de seu dono, o gato, igualmente irresponsável, converte-se assim no efetivo dono da casa.
Mas além (ou aquém) desse “País das Maravilhas”, há o riso sem gato. O deslocamento, o ligeiro desconforto, o insólito, o non sense. O ar de deboche só tem por efeito contrapor-se maiormente, na imagem, à facticidade e ao caráter objetal do corpo.
Não há aqui a exuberância, a beleza hiperbólica, padronizante, nem a energia de corpos admiráveis, joviais movendo-se elástica, livre e sensualmente pela praia... Não há, sobretudo, a leveza, a clareza do crystal insinuado, valores oferecidos no pacote midiático. Não, a sacralidade não reside aí nessa confusão circundante. Pisemos com os olhos, como que pela primeira vez o solo dessa câmara (digital) funerária e calquemos o corpo mesmo, essa efígie já saqueada, cuja múmia, por não estar em lugar algum, não a guarda Bastet. Quando voltamos à atenção o silêncio da figura, que não é simplesmente o silêncio do retângulo de plasma, mas um silêncio que nos interpela, ela nos sussurra: “Decifra-me!” Quanto voltamos o olhar para este corpo, a abismo que não nos vê, ele nos devolve o olhar. Memento mori. Esses cacos, vertiginosos, fractais, nos ameaçam arrombar os olhos.
Há aí tão somente a presença/ausência de um corpo não artificialmente estetizado. São vislumbres, fragmentos, sintomas: um rosto, máscara verdadeira, manifesta inexpressividade. E a mão, hierática, pousada como mais um objeto dessa natureza morta. Há a composição, mas há o peso. Há a cena, mas, sobretudo o olhar. Emblema, não alegoria. O que há aqui é uma carcaça abandonada, esvaziada pelos excessos.
Os óculos, em sua inutilidade, depositados ao lado. Esse corpo que não me olha nem me sabe, como não mais me verão meus poucos amigos, nem me saberão seus descendentes. Ou devo dizer sucessores?
Não é raro ouvirmos alguém dizer: ”_Meus descendentes eram...” quando na verdade querem dizer antepassados. Tal confusão é compreensível se tomarmos o termo descendente como ‘aquele que desce’. O corpus familiar há muito esvanecido. O cadáver, o corpo mesmo, de que fala Debray, há pouco vivo falante e saltitante, despenca desde o alto de seu estatuto de ser para o de coisa inanimada. Converte-se, não em vítima visto que desprovida de culpa, mas em alvo preciso da lei da vida, da morte e sua gravidade. Anã branca. Estrela de braços abertos que, atingida pelo vento frio e cortante, desprende-se do móbile humano num salto mortal.
No nada? Há o eterno? Posso querer ver aí pura e simplesmente a máquina. Viatura abandonada no caminho. Talvez um aeroplano caído no meio do deserto, à espera de reparo, retificação. O que ascende nesse corpo? A alma repousa na placidez do éter celestial ou paga suas penas no lugar que a cabe na hierarquia espiralada dos infernos? Ou retorna para mais uma prova evolutiva ou purificação final? Ou finda mais morta que possa imaginar? O corpo templo sagrado parte para a solução final, liquefaz-se longe de nossas vistas ou desaparece como fumaça/ prece/holocausto. Isso, claro, antes que seja entronizada a Summa Scientia, assuma a cátedra e, daqui em diante, catalogado e rotulado, provisoriamente socializado e virtualmente disponível, membro do metacorpo, do hipercorpo humano, componha outros corpos dentro desse Corpo Sagrado, glorificado. Talvez tome seu banho nitrogenado e repouse no leito criogênico à espera do despertar para a esperada individuação ou para uma atualização de uma novíssima superumanidade. Julgamento final ou atualização biomecânica. Ser humano 2.0. Corpo novo, vida nova. Ou...
Mas eis que a o corpo ressuscita na imagem, corpo presente, senhor morto, naquilo que lhe falta, na sua ausência, nos interroga. Carcaça descartada, carta fora do baralho. O enforcado, a Morte. Nada nessa manga... A imagem volta à vida. Nada na outra. O Mago, O Louco. Magie, image como observa igualmente Debray. É assim que talvez, nessa vida, a imagem converta-se em cartão de fazer renascer.

Je pense je sui Renée Descartes.
Je revê je suis renée des cartes.

Mas outra questão me assalta: se essa reflexão, se esse discurso só me é possível porque é meu próprio corpo que ali jaz, naquilo que me desperta de surpresa, angústia, de sublime e de abjeto porque possivelmente e virtualmente morto. Ouso arriscar que não. Ouso imaginar que essa imagem fala aos outros. Além daquela reação primeira de comicidade, daquele sarcasmo, instinto tão gregário que se auto-reafirma numa tentativa de evadir-se a um mal estar e pôr-se a salvo de uma reflexão mais ponderada, grave e solitária. Não posso assegurá-lo. Muito se falou sobre isso desde a invenção da arte e da Estética. Nessa matéria somos obrigados a nos remeter ao passado, temos que recorrer ao labirinto de termos e conceitos que constituem aquilo que convencionamos chamar de disciplinas de História da Filosofia e História da Arte. Espelho, espelho meu... Na Promenade de Vasari os eleitos emergem, projetam-se, nascem para a história, trazidos à luz, para o desejo de eternidade. Aos outros, não os abrange o occhio, resultam invisíveis, relegados à esfera do invisível e, portanto da não existência. O Juízo final da arte é contínuo. Também o é o da imagem jornalística, televisiva.
Mudando constantemente de perspectiva nesse caleidoscópio de temporalidades progressivamente mais longas e espaçadas, em que o olhar se olha, saindo continuamente de camadas e camadas de bonecas russas, cuja faces e padrões só conhecemos no instante em que acabamos de sair ao cabo de mirá-las, para em seguida nos perguntarmos novamente “_Onde estamos?” Matroshka, caldeirão da bruxa, ventre da Babayaga. Saímos da arte para a imagem, desta para o olhar, e daí para encarar a morte até que ela, definitivamente(?), nos olhe de volta. Eis o que a imagem, como (auto-)conhecimento, espécie de fruto original, nos revela e com este olhar transfigurado, pomo-nos a olhar atentamente as coisas que me cercam.
Creio que começo a vislumbrar, a partir dos textos, discursos e imagens e seus desdobramentos, de cada uma dessas perspectivas, a natureza e os desafios de nossa reflexão feita ofício. Começo a divisar os desafios, a miríade de possibilidades e a dinâmica desse complexo problemático arte/imagem cujas bordas se fundem e se confundem cujo espectador deve munir-se de óculos de lentes eficazes, ora superpostas, ora excludentes. Que, sobretudo, este deva estar disposto a olhar e ver.
Acredito que a abordagem inédita, em certos momentos inusitada, com aproximações e distensões temporais abruptas, mas coerente com a abordagem dinâmica do curso tenha sido um ponto positivo a despeito do estranhamento inicial. Percurso riquíssimo em imagens, espetacular e profícuo.
Certamente houve dificuldades pessoais inerentes em definir e expressar minhas dúvidas e perplexidades tanto em sala de aula como por escrito assim como limitações e deficiências relativas ao repertório cultural necessários a assuntos tão abrangentes e em nada superficiais.
O corpo é uma interface/intersecção fascinante e depois de séculos de desvios e contornos, ruas sem saída e barreiras, há décadas começa a ser ‘sujeito’, a recuperar seu estatuto de ser, sua ‘autonomia anatômica’. Começa a revaer sua particularidade e buscar sua dignidade de ‘coisa-animal-humana-resplandecente’ tudo ao mesmo tempo, sua aura, sua inteligência própria.
Penso que a produção/fruição da imagem e da arte sejam fazeres, lugares privilegiados, onde podemos captar e jogar com nossas percepções e reflexões. Como indivíduos geografica, historicamente situados e como coletividade, cultura. Corpo considerável, corpus, constelação.

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