Sabemos da dificuldade extrema de definir e delimitar os contornos do que seja a arte contemporânea, nas suas expressões plurais e também na crítica, que constitui posicionamentos e apreciações diversas e quase sempre divergentes em relação a ela.O que nos propomos aqui é um exercício de reflexão mais livre e mesmo aporístico a respeito dessas concepções e impressões a partir de uma obra da indústria cultural cinematográfica estadunidense: o filme Batman, O Cavaleiro das Trevas (2008), dirigido por Christopher Nolan e suas correspondências e divergências com a noção corrente de arte contemporânea.
Alguns predicados comumente atribuídos à arte contemporânea são que ela:
- Relaciona, historicamente, política e identidade - Há uma tradição por parte de determinados grupos politicamente engajados de, através de ações artísticas, buscar a afirmação de uma identidade (negros, mulheres, homossexuais). A princípio na esteira dessa tradição opera-se, contudo, no filme uma inversão dela ao ter como atores da performance os internos do hospício de Arkhan, perfil majoritário entre os homens do Coringa. Ao mesmo tempo em que protagonizam como grupo a performance, ambiguamente realizam a negação, dessa vez não do estereótipo, mas da noção mesma de identidade e seus atributos elencados e criticados por Foucault e Bourdieu, entre outros (constância, coerência, presivibilidade,inteligibilidade, confiabilidade, autoridade). O próprio Coringa constitui a figura do "outsider" por excelência (sem nome,digitais, DNA, registro dentário ou histórico de qualquer espécie. Mesmo sua biografia varia de interlocutor para interlocutor, constituindo uma performance que procura conversar com a sombra do outro, com seu aspecto negado e reprimido); Percebemos aí outra característica atribuída à arte contemporânea que é aproximar-se do gosto pelo trocadilho, pelas inversões, jogos complexos de movimentos sucessivos, trocas de sinal, ambigüidades.
- Privilegia o corpo como meio de expressão, levando-o ao extremo - Desafia os limites habituais entre a arte e a vida; (como quando o Coringa coloca-se em meio ao tráfego, em linha de colisão, literalmente "na contra-mão", Duas-Caras alvejando o motorista de Maroni estando no interior do veículo em alta velocidade. As cicatrizes de Bruce Wayne e a própria máscara do Coringa (e depois a do Duas Caras) inscrevem-se na própria carne, inseparáveis desta) ilustrando sua condição (marcados, cindidos em si mesmos, mas expressamente em conformidade com um mundo em crise);
- Incorpora e transforma o espaço, especialmente o urbano (carro de bombeiro em chamas no meio da avenida (mais um exemplo de inversão), explosão do hospital, interdição das pontes e viadutos de Gotham);
- "_Hoje à noite vocês participarão de um experimento sociológico." (Coringa)
- "_Havia um projeto nos anos 60 chamado SkyHook..." (Lucius Fox)
- "_Pela magia do diesel e do nitrato de amônia eu estou pronto a fazê-los decolar às alturas." (Coringa)
- "_Não se trata de dinheiro, trata-se de mandar uma mensagem" (Coringa)
- "_Esse cara não tem regras!" (gangster em relação ao Coringa)
- "_A única maneira sensata de se viver nesse mundo é sem regras." (Coringa)
- "_Vê, eu não sou um monstro, só estou um pouco à frente!" (Coringa)
- Comunica-se com o público por meio de figuras emblemáticas da indústria cultural, signos e símbolos do cotidiano e utiliza-se da máquina do espetáculo para que esta capte e retransmita sua mensagem (a chuva de cartas, a figura do palhaço maldito, o "Batman" enforcado na janela);
- Combina elementos híbridos da forma consagrada - teatro (máscara, maquiagem, capa, fantasia, uniforme), artes visuais, pintura, escultura, literatura com o uso de mediações tecnológicas (televisão, cinema, informática).
- " _ Sou um cara de gosto simples. Aprecio dinamite, pólvora e gasolina. Sabe o que essas três coisas têm em comum? São baratas." (Coringa)
- "_Belo, não acha?"
- Faz-se coletivamente, questionando o mito do gênio subjetivo do atelier embora conserve o aspecto fetichista de marca (Coringa e pessoas com quem estabelece parcerias temporárias de uma lado e Batman (um mega empresário), Alfred, Lucius e todo o departamento de pesquisa ligado ao subsídios do governo de outro lado - Lei Rouanet*? fica a pergunta);
- Restringe-se a um pequeno círculo de iniciados (modo de seleção do Coringa; círculo político, social e econômico do Batman)
Parece-nos que a obra cinematográfica reafirma de um lado a noção formalista da arte como imparcial, arte pela arte e do outro ressuscita um certo funcionalismo à medida em que vincula a arte ao mundo maravilhoso da inovação e da criação, desta feita não mais artística e artesanal mas tecnológico-corporativa. O script reafirma o mito da neutralidade descomprometida da arte, quando na verdade é sabido que ela, especialmente na performancedos anos 60 e 70, tentava fugir à lógica do capitalismo em expansão - que por sua vez apresentava-se, e agora mais do que nunca, como única via de liberdade, democracia e felicidade. Por essa razão tais artistas são rotulados como puramente irracionalistas e em última instância, anárquicos. Entretanto, se o Coringa afirma ser um cão e atacar como um (cf. o caráter originário do cinismo no mundo grego), acontece que mesmo cães raivosos têm um dono como afirma Duas Caras: "_O Coringa é apenas um cão raivoso (cachorro louco). Eu quero quem o soltou da coleira". De maneira alguma os artistas podem se eximir de suas reponsabilidades e de sua função social escondendo-se atrás de uma pretensa imparcialidade ou neutralidade, ou ainda sob a impostura do ismo, do estilo (como o "dadaísmo"**).
Quanto à utopia tecnológica de paz social pelo controle por parte do Batman sabemos há tempos das muitas mazelas que o sistema de monopólio capitalista impõe sobre as economias e, em últma instância sobre os cidadãos destituídos de seus direitos nas periferias dos grandes centros e sobretudo na periferia do capitalismo global. Parece que, no fim das contas, não há heróis nessa história. É isso?
*Sérgio Paulo Rouanet, Secretário de Cultura, lança Lei Federal de Incentivo à Cultura (1991), garantindo isenções fiscais, seja nos âmbitos municipal (IPTU, ISS), estadual (ICMS) ou federal (IR) - Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac). A Lei é regulamentada em 1995. Concomitantemente, empréstimos junto ao Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), investindo na reurbanização de centros históricos como área de turismo cultural. Nos dizeres de Renata da Motta:“A partir dos anos de 1990 (…) [a] preservação do patrimônio histórico de centros urbanos torna-se prioridade nos discursos governamentais, com foco no potencial turístico e na construção de equipamentos culturais de grande porte. Esse discurso encontrava-se em consonância com a visão empresarial sobre gestão urbana proposta nos planos estratégicos das agências multilaterais como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento que, posteriormente pautariam o convênio do Programa Monumenta, voltado à recuperação do patrimônio histórico de diversas cidades brasileiras. (…) Com a implantação da Lei Federal de Incentivo à Cultura (Lei Rouanet), consolida-se o discurso de substituição de parte da ação do Estado pela dos empresários e a modernização da gestão pública. A cultura brasileira é elevada (sic) a instrumento de marketing nacional, reafirmando o país como um destino turístico privilegiado pela sua singularidade cultural. Nesse movimento criou-se um ambiente favorável ao fomento no Brasil de um nicho já desenvolvido nos países centrais: das intervenções urbanas que incluem equipamentos culturais, envolvendo artes e instituições financeiras” (MOTTA, Renata Vieira da. Museu e Cidade: o impasse dos MAC's, Tese de doutorado, FAUUSP, São Paulo, 2009. p. 76-77).
**De fato, segundo declarações dos artistas envolvidos à epoca com essa expressão, não existe dadaísmo ou o movimento dadaísta, só o Dada. Ver os manifestos proferidos pelo poeta romeno Tristan Tzara. O dadaísmo russo, contudo, já apresenta uma outra conformação, abarcando um componente de ironia política bem mais pronunciado.
*Sérgio Paulo Rouanet, Secretário de Cultura, lança Lei Federal de Incentivo à Cultura (1991), garantindo isenções fiscais, seja nos âmbitos municipal (IPTU, ISS), estadual (ICMS) ou federal (IR) - Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac). A Lei é regulamentada em 1995. Concomitantemente, empréstimos junto ao Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), investindo na reurbanização de centros históricos como área de turismo cultural. Nos dizeres de Renata da Motta:“A partir dos anos de 1990 (…) [a] preservação do patrimônio histórico de centros urbanos torna-se prioridade nos discursos governamentais, com foco no potencial turístico e na construção de equipamentos culturais de grande porte. Esse discurso encontrava-se em consonância com a visão empresarial sobre gestão urbana proposta nos planos estratégicos das agências multilaterais como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento que, posteriormente pautariam o convênio do Programa Monumenta, voltado à recuperação do patrimônio histórico de diversas cidades brasileiras. (…) Com a implantação da Lei Federal de Incentivo à Cultura (Lei Rouanet), consolida-se o discurso de substituição de parte da ação do Estado pela dos empresários e a modernização da gestão pública. A cultura brasileira é elevada (sic) a instrumento de marketing nacional, reafirmando o país como um destino turístico privilegiado pela sua singularidade cultural. Nesse movimento criou-se um ambiente favorável ao fomento no Brasil de um nicho já desenvolvido nos países centrais: das intervenções urbanas que incluem equipamentos culturais, envolvendo artes e instituições financeiras” (MOTTA, Renata Vieira da. Museu e Cidade: o impasse dos MAC's, Tese de doutorado, FAUUSP, São Paulo, 2009. p. 76-77).
**De fato, segundo declarações dos artistas envolvidos à epoca com essa expressão, não existe dadaísmo ou o movimento dadaísta, só o Dada. Ver os manifestos proferidos pelo poeta romeno Tristan Tzara. O dadaísmo russo, contudo, já apresenta uma outra conformação, abarcando um componente de ironia política bem mais pronunciado.
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