Um dia, o meu sobrinho Carlos Queirós trouxe para casa aquele famoso retrato do Fernando a beber vinho no Abel Pereira da Fonseca (tirado pelo Manuel Martins da Hora) (...) Trazia uma dedicatória: «Carlos: isto sou eu no Abel, isto é, próximo já do Paraíso Terrestre, aliás perdido. Fernando. Dia 2/9/29» Achei muita graça, como é natural, e disse ao meu sobrinho que gostava de ter uma para mim. O Carlos disse-lhe, e passado pouco tempo ele enviou-me uma fotografia igual com esta dedicatória: « Fernando Pessoa em flagrante delitro.»
Escrevi-lhe a agradecer e ele respondeu-me. Recomeçámos então o «namoro». Isto em 1929. Eu já não trabalhava nessa altura e continuava a viver em casa de minha irmã no Rossio.
O Fernando estava diferente. Não só fisicamente, pois tinha engordado bastante, mas, e principalmente, na sua maneira de ser. Sempre nervoso, vivia obcecado com a sua obra. Muitas vezes dizia que tinha medo de não me fazer feliz, devido ao tempo que tinha de dedicar a essa obra. Disse-me um dia : «Durmo pouco e com um papel e uma caneta à cabeceira. Acordo durante a noite e escrevo, tenho que escrever, e é uma maçada porque depois o Bebé não pode dormir descansado.» Ao mesmo tempo receava não poder dar-me o mesmo nível de vida a que eu estava habituada. Ele não queria ir trabalhar todos os dias, porque queria dias só para si, para a sua vida, que era a sua obra. Vivia com o essencial. Todo o resto lhe era indiferente. Não era um ambicioso nem vaidoso. Era simples e leal.
Dizia-me: «Nunca digas a ninguém que sou poeta. Quanto muito, faço versos.»"
In.: http://poemariopessoa.blogs.sapo.pt/18339.html
"Fernando,
Vai decerto parecer-lhe bastante estranho receber uma carta minha, mas já que foi tão amável não hesitando confiar-me a sua fotografia, sabendo que era para mim, e tendo o Carlos confessado que, não sabendo mentir, me traiu e traiu o Fernando - porque o combinado comigo era pedir-lhe a fotografia, sem dizer para quem era, e creio que o combinado com o Fernando era não me dizer que lhe tinha dito que era para mim. - Enfim, com tanta combinação tinha por força que dar asneira, asneira essa, que só resultou em benefício para a minha pessoa. 1.º porque alcancei uma coisa que tanto desejava e tanto prazer me dá. 2.º porque me encorajou a escrever-lhe para lhe agradecer de todo o coração a sua interessante fotografia - em fragrante delitro - não tem vergonha?!...
Também, se o Carlos não conseguisse que o Fernando lha desse, estava condenado a ficar sem a dele, com a dedicatória e tudo, porque eu já tinha jurado roubar-lha. Assim gostei muito mais por ter vindo propriamente das suas mãos, com destino à minha pessoa, embora da parte do Fernando sem prazer algum... Adeus Fernandinho, se quiser dar-me a alegria de receber notícias suas, pode fazê-lo para a Praça D. João da Câmara, que é onde tenho estado ultimamente. Subscreve-se muito grata a Ofélia"
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