30 dezembro, 2011

Políticas de Financiamento e o Fenômeno dos Novos Museus


Algumas considerações concernentes às atividades de visitação de museus e análise curatorial para a Unidade Curricular Laboratório e Ensino em História da Arte III, sob a orientação dos Professores Doutores Letícia Squeff e Pedro Arantes.




         “A exposição é registrada, interpretada, memorizada a partir da experiência múltipla, a qual tem a sua sede no sujeito visitante. A verdade da exposição fica então no sujeito e não na materialidade exposta” (GONÇALVES, 2004, p. 58).

             
          A discussão em torno do estatuto da obra de arte implica uma longa sucessão de polêmicas que passam pelo questionamento de suas formas, suportes, de sua fatura, seus usos e fins.  
            Paradigma central, entre tantos, envolvidos nessa problemática, a materialidade dos suportes e seu caráter de monumento envolve um longo histórico de rupturas, continuidades, releituras e descontruções dos modos de percepção e sensibilidade ligadas à ideia do espírito de uma época, um estilo particular. Estes elementos encontram destaque nas reflexões de Walter Benjamin acerca da crise das artes  (a perda da aura) e o caráter reprodutível da obra.
            Um elemento sumamente importante acrescentado ao debate é a inclusão da questão do espaço em que a obra se encontra e que tem como marcos emblemáticos o gesto perpetrado por Marcel Duchamp de introduzir um urinol na galeria conferindo-lhe assim o estatuto privilegiado de obra de arte o projeto do museu imaginário de Malraux, um “museu sem paredes”. Ambos lidam com a ideia de que o objeto, caracterizado como obra de arte, é indissociável do lugar em que se insere e da forma como ela é exposta, sendo eles mesmos condicionantes dessa qualidade de obra.
            Conseqüentemente cada expografia deixa entrever uma noção particular de arte, concepção que nunca é gratuita pois pressupõe intencionalidade e critérios específicos na escolha de elementos e seus arranjos. Por meio desses dispositivos (composição das obras no espaço, uso da luz, emprego de cores) ela carrega uma qualidade semântica, enuncia um discurso que tem como lastros a história e a crítica de arte. É, a um só tempo uma mídia comunicadora de arte (de uma concepção particular de arte e de cultura), bem como um experimento artístico ela mesma, além de parte de uma política cultural e um produto de mercado. Além disso, ela pode constituir, coletiva ou individualmente, um ponto de partida para novas interpretações da arte (GONÇALVES, pp. 32-43, passim).
            Mais ainda, quando consegue extrapolar o contexto estritamente museológico, quando compreendida e assumida pelo sujeito como  não circunscrita às paredes do museu ou da galeria, mas enquanto “(...) capaz, ao articular opacidade e inteligibilidade discursiva, de desafiar modos já estabelecidos de entendimento do mundo”, ela é eminentemente política, sendo a curadoria  determinante para que isso ocorra. (FARIAS, Agnaldo; ANJOS Moacir dos, 2010, p. 21).
            Logicamente, sendo a arte prenhe de significações revolucionárias (latu sensu) e potencialmente liberadora de ideias e ações políticas, apela-se para uma concepção de história e crítica de arte conservadora e para estratégias expositivas conservadoras de um status monolítico, que se pretende eterno e universal.  Ressaltamos aqui duas delas: a formalista (entre as quais o mais emblemático é o modelo do 'cubo branco', devedor do métier alemão e posteriormente introduzido na apropriado pela lógica mercantil norte-americana via MoMA-NY) e o historicista (mais teatralizado, bastante utilizado na cenografia dos museus etnográficos e temáticos e característico também das mostras temporárias de muitas instituições). Ambos reivindicam para si um pretenso “grau zero” de intervenção, ao que objeta René Vinçon:

       (...) o primeiro modelo recalca na arte feita no presente articulações cruciais com a produção que a precede, o segundo apazigua as incertezas e os riscos que nutrem e que marcam a produção da vida contemporânea” (FARIAS, Agnaldo; ANJOS Moacir dos, 2010, p. 21).

            Ademais o modelo não só expográfico mas espetacular que vem buscando se impor, tanto na arquitetura, como na programação cultural, é aquele “organismo extraordinário” (Josep Maria Montaner apud MOTTA e urbano e , 2009, p. 33), que aterrisa como um alien no tecido da cidade e, sob pretexto de alavancar a economia local e reurbanizar o entorno, alimenta-se dos recursos públicos (que, no caso das transnacionais, vetorializa para seus próprios países de origem onde se situam suas sedes) em benefício de sua própria afirmação e replicação de sua marca.
            Essa situação deriva do abandono por parte do Estado, em crise, das instâncias públicas e das dificuldade de articulação de apoio privado envolvendo a ideia de gestão não-estatal, preponderantemente pelo modelo das OSs e a reforma do Estado.[1]
            Nesse sentido, instaura-se uma mudança radical no caráter dos equipamentos culturais como observara, já no fim dos anos 70, Otília Arantes:

“(...) antes domínio tradicionalmente austero e introvertido, atualmente, imagem prestigiosa e ponto de vista privilegiado sobre o mundo à volta, onde reina, diga-se de passagem, uma grande animação” (ARANTES apud MOTTA, 2009, p. 73).

            Essa realidade é atribuída em grande parte à Lei Rouanet[2], que atualmente regulamenta a gestão conjunta das instâncias culturais, sendo alvo de duras críticas: falta de transparência nos processos o que abre brechas para o  não atendimento da legislação, dificuldade de se fazer a fiscalização, concentração excessiva em determinadas corporações bastante visíveis que se utilizam do mecanismo para o marketing pesado de seus produtos, exclusão de grande parte do setor cultural  sejam investidores, regiões ou segmentos culturais. Mais uma vez, Motta:

“O processo extraordinário de criação de novos museus hoje atualiza esse vínculo entre um fundo de riquezas nacionais e o discurso político voltado aos cidadãos, de um patrimônio pretensamente enunciado como de todos.
Não se trata de contemplar um conjunto de bens reificados, mas uma visão política que amplie a noção de patrimônio, de uma significação estreita e precária, circunscrita a uma cultura oficial dirigida pelo Estado. Diferentemente seria pensar em uma efetiva devolução ao domínio público dos bens atraentes, reconhecidos, dignos de serem conservados e atualizados” (MOTTA, 2009, pp. 177-178).

            Esse modelo de museus espetaculares e ciclos de exposição no formato da indústria cultural “Blockbuster”, do não-lugar (Jean Marc Poinsot), que é o mesmo onde quer que se instale, descaracterizando e desterritorializando toda uma cultura e uma comunidade locais, impossibilita, o projeto idealizado pelas resoluções geradas na discussão recente da “nova museologia”:

“O plano de implantação urbana [do museu] necessita referenciar-se a um conjunto diversificado de elementos: fonte de financiamento, gestão administrativa, capacidade interna do museu para manter-se economicamente nas atividades planejadas, no conhecimento (quantitativo e qualitativo) do público, no perfil do acervo que acolhe, nas possibilidades socioculturais e nas educativas que possa desenvolver” (MOTTA, 2009, p. 105)

            A instituição precisa relacionar-se com o público heterogêneo que o cerca - especialmente nos centros urbanos - não só o público cativo mas o potencial, engendrando ações que levem em conta os tipos de uso, horários e fluxos da população. Atentando a essas particularidades vantajosas e buscando minimizar os reveses de localização e baixa visibilidade, por exemplo, o museu pode planejar estratégias para envolver de modo efetivo a comunidade que o cerca e circula em seu entorno.
            Nesse sentido, há um esforço institucional em todas as instâncias jurídicas para tentar organizar o panorama cultural. Exemplos são o Sistema Brasileiro de Museus (SBM) de 2004, ligado à implementação do Sistema Nacional de Cultura (SNC). Este tem por missão intermediar a gestão e promoção de políticas públicas entre os entes da federação e as organizações civis. Igualmente o Plano Nacional de Cultura (PNC), de 2005, mecanismo de planejamento a longo e médio prazo do SNC, e o Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), coordenando a Política Nacional de Museus (PNM).
            Dentre essas medidas devemos considerar o crescimento de instituições e cursos que têm por objetivo a formação de profissionais ligados ao museu e ao universo da arte: museólogos e historiadores da arte. Qual a nossa posição da Instituição de ensino ao contemplar essa área dos saberes e das práticas? Quais as implicações positivas desse processo? Quais os perigos coletivos e tentações pessoais? Qual o nosso papel nesse jogo político?
            Certamente ele passa pela crítica às exposições e práticas de equipamentos culturais e pela pesquisa, instância fundamental na criação de propostas de modelos institucionais públicos de museu e gestão cultural.
            Mesmo tendo em conta, no macro, a situação de desencantamento e ausência de perspectivas frente ao processo maciço de uma fagocitose do sistema capitalista auto replicante em alto grau, e no micro, as determinações sociais do acesso à prática cultural, nossa responsabilidade é guardar uma margem crítica de reflexão sobre o nosso próprio status e papel nessa busca política de “cidadania cultural” (Marilena Chauí), direito ao acesso, à produção e à participação do fazer cultural.
            Desse modo, finalizamos por onde começamos: a exposição.

“No processo de construção de seu sistema de correspondências, o sujeito cognitivo organiza, arruma a totalidade externa, o mundo, em relação a um projeto dele, à sua vontade, segundo o seu desejo de estar nesse mundo ou o transformar” (GONÇALVES, 2004, p. 58).




Referências bibliográficas


_  FARIAS, Agnaldo; ANJOS Moacir dos. Há sempre um copo de mar para um homem navegar, 2010.

_ GONÇALVES, Lisbeth R. A Exposição de Arte: conceituação e estratégias, In. Entre Cenografias: o museu e a exposição de arte no século XX, São Paulo, Edusp/ Fapesp, 2004.

_  MOTTA, Renata Vieira da. Museu e Cidade: o impasse dos MAC's, Tese de doutorado, FAUUSP,  São Paulo, 2009.



[1]Durante gestão Fernando Henrique coloca-se enfase no aspecto regulador e admitem-se organizações civis não-estatais e a iniciativa  privada no setor de bens e serviços. Data daí o surgimento das Organizações Sociais (OSs) mediante o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (1995), sob a direção de Luiz Carlos Bresser Pereira, Ministro da Administração Federal e da Reforma do Estado.
[2]Sérgio Paulo Rouanet, Secretário de Cultura, lança Lei Federal de Incentivo à Cultura (1991), garantindo isenções fiscais, seja nos âmbitos municipal (IPTU, ISS), estadual (ICMS) ou federal (IR) - Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac). A Lei é regulamentada em 1995. Concomitantemente, empréstimos junto ao Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), investindo na reurbanização de centros históricos como área de turismo cultural. Nos dizeres de Renata da Motta:“A partir dos anos de 1990 (…) [a] preservação do patrimônio histórico de centros urbanos torna-se prioridade nos discursos governamentais, com foco no potencial turístico e na construção de equipamentos culturais de grande porte. Esse discurso encontrava-se em consonância com a visão empresarial sobre gestão urbana proposta nos planos estratégicos das agências multilaterais como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento que, posteriormente pautariam o convênio do Programa Monumenta, voltado à recuperação do patrimônio histórico de diversas cidades brasileiras. (…) Com a implantação da Lei Federal de Incentivo à Cultura (Lei Rouanet), consolida-se o discurso de substituição de parte da ação do Estado pela dos empresários e a modernização da gestão pública. A cultura brasileira é elevada (sic) a instrumento de marketing nacional, reafirmando o país como um destino turístico privilegiado pela sua singularidade cultural. Nesse movimento criou-se um ambiente favorável ao fomento no Brasil de um nicho já desenvolvido nos países centrais: das intervenções urbanas que incluem equipamentos culturais, envolvendo artes e instituições financeiras” (MOTTA, 2009, p. 76-77).

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