Algumas considerações concernentes às atividades de visitação de museus e análise curatorial para a Unidade Curricular Laboratório e Ensino em História da Arte
III, sob a orientação dos Professores Doutores Letícia Squeff e Pedro Arantes.
“A exposição é registrada, interpretada,
memorizada a partir da experiência múltipla, a qual tem a sua sede no sujeito
visitante. A verdade da exposição fica então no sujeito e não na materialidade
exposta” (GONÇALVES, 2004, p. 58).
A
discussão em torno do estatuto da obra de arte implica uma longa sucessão de
polêmicas que passam pelo questionamento de suas formas, suportes, de sua
fatura, seus usos e fins.
Paradigma
central, entre tantos, envolvidos nessa problemática, a materialidade dos
suportes e seu caráter de monumento envolve um longo histórico de rupturas,
continuidades, releituras e descontruções dos modos de percepção e
sensibilidade ligadas à ideia do espírito de uma época, um estilo particular.
Estes elementos encontram destaque nas reflexões de Walter Benjamin acerca da
crise das artes (a perda da aura) e o
caráter reprodutível da obra.
Um
elemento sumamente importante acrescentado ao debate é a inclusão da questão do
espaço em que a obra se encontra e que tem como marcos emblemáticos o gesto
perpetrado por Marcel Duchamp de introduzir um urinol na galeria conferindo-lhe
assim o estatuto privilegiado de obra de arte o projeto do museu imaginário de
Malraux, um “museu sem paredes”. Ambos lidam com a ideia de que o objeto,
caracterizado como obra de arte, é indissociável do lugar em que se insere e da
forma como ela é exposta, sendo eles mesmos condicionantes dessa qualidade de
obra.
Conseqüentemente
cada expografia deixa entrever uma noção particular de arte, concepção que
nunca é gratuita pois pressupõe intencionalidade e critérios específicos na
escolha de elementos e seus arranjos. Por meio desses dispositivos (composição
das obras no espaço, uso da luz, emprego de cores) ela carrega uma qualidade
semântica, enuncia um discurso que tem como lastros a história e a crítica de
arte. É, a um só tempo uma mídia comunicadora de arte (de uma concepção
particular de arte e de cultura), bem como um experimento artístico ela mesma,
além de parte de uma política cultural e um produto de mercado. Além disso, ela
pode constituir, coletiva ou individualmente, um ponto de partida para novas
interpretações da arte (GONÇALVES, pp. 32-43, passim).
Mais
ainda, quando consegue extrapolar o contexto estritamente museológico,
quando compreendida e assumida pelo sujeito como não circunscrita às paredes do museu ou da
galeria, mas enquanto “(...) capaz, ao
articular opacidade e inteligibilidade discursiva, de desafiar modos já
estabelecidos de entendimento do mundo”, ela é eminentemente política,
sendo a curadoria determinante para que
isso ocorra. (FARIAS, Agnaldo; ANJOS Moacir dos, 2010, p. 21).
Logicamente,
sendo a arte prenhe de significações revolucionárias (latu sensu) e
potencialmente liberadora de ideias e ações políticas, apela-se para uma
concepção de história e crítica de arte conservadora e para estratégias
expositivas conservadoras de um status monolítico, que se pretende
eterno e universal. Ressaltamos aqui
duas delas: a formalista (entre as quais o mais emblemático é o modelo
do 'cubo branco', devedor do métier
alemão e posteriormente introduzido na apropriado pela lógica mercantil
norte-americana via MoMA-NY) e o historicista (mais teatralizado,
bastante utilizado na cenografia dos museus etnográficos e temáticos e
característico também das mostras temporárias de muitas instituições). Ambos
reivindicam para si um pretenso “grau zero” de intervenção, ao que objeta René
Vinçon:
“(...)
o primeiro modelo recalca na arte feita no presente articulações cruciais com a
produção que a precede, o segundo apazigua as incertezas e os riscos que nutrem
e que marcam a produção da vida contemporânea” (FARIAS, Agnaldo; ANJOS
Moacir dos, 2010, p. 21).
Ademais
o modelo não só expográfico mas espetacular que vem buscando se impor, tanto na
arquitetura, como na programação cultural, é aquele “organismo
extraordinário” (Josep Maria Montaner apud MOTTA e urbano e , 2009, p. 33),
que aterrisa como um alien no tecido da cidade e, sob pretexto de alavancar a
economia local e reurbanizar o entorno, alimenta-se dos recursos públicos (que,
no caso das transnacionais, vetorializa para seus próprios países de origem
onde se situam suas sedes) em benefício de sua própria afirmação e replicação
de sua marca.
Essa
situação deriva do abandono por parte do Estado, em crise, das instâncias
públicas e das dificuldade de articulação de apoio privado envolvendo a ideia
de gestão não-estatal, preponderantemente pelo modelo das OSs e a reforma do
Estado.[1]
Nesse
sentido, instaura-se uma mudança radical no caráter dos equipamentos culturais
como observara, já no fim dos anos 70, Otília Arantes:
“(...)
antes domínio tradicionalmente austero e introvertido, atualmente, imagem
prestigiosa e ponto de vista privilegiado sobre o mundo à volta, onde reina,
diga-se de passagem, uma grande animação” (ARANTES apud MOTTA, 2009, p. 73).
Essa
realidade é atribuída em grande parte à Lei Rouanet[2], que
atualmente regulamenta a gestão conjunta das instâncias culturais, sendo alvo
de duras críticas: falta de transparência nos processos o que abre brechas para
o não atendimento da legislação,
dificuldade de se fazer a fiscalização, concentração excessiva em determinadas
corporações bastante visíveis que se utilizam do mecanismo para o marketing
pesado de seus produtos, exclusão de grande parte do setor cultural sejam investidores, regiões ou segmentos
culturais. Mais uma vez, Motta:
“O
processo extraordinário de criação de novos museus hoje atualiza esse vínculo
entre um fundo de riquezas nacionais e o discurso político voltado aos
cidadãos, de um patrimônio pretensamente enunciado como de todos.
Não
se trata de contemplar um conjunto de bens reificados, mas uma visão política
que amplie a noção de patrimônio, de uma significação estreita e precária,
circunscrita a uma cultura oficial dirigida pelo Estado. Diferentemente seria
pensar em uma efetiva devolução ao domínio público dos bens atraentes,
reconhecidos, dignos de serem conservados e atualizados” (MOTTA, 2009, pp. 177-178).
Esse
modelo de museus espetaculares e ciclos de exposição no formato da indústria
cultural “Blockbuster”, do não-lugar (Jean Marc Poinsot), que é o mesmo
onde quer que se instale, descaracterizando e desterritorializando toda uma cultura
e uma comunidade locais, impossibilita, o projeto idealizado pelas resoluções
geradas na discussão recente da “nova museologia”:
“O
plano de implantação urbana [do museu] necessita referenciar-se a um conjunto
diversificado de elementos: fonte de financiamento, gestão administrativa,
capacidade interna do museu para manter-se economicamente nas atividades
planejadas, no conhecimento (quantitativo e qualitativo) do público, no perfil
do acervo que acolhe, nas possibilidades socioculturais e nas educativas que
possa desenvolver” (MOTTA, 2009, p. 105)
A
instituição precisa relacionar-se com o público heterogêneo que o cerca -
especialmente nos centros urbanos - não só o público cativo mas o potencial,
engendrando ações que levem em conta os tipos de uso, horários e fluxos da
população. Atentando a essas particularidades vantajosas e buscando minimizar
os reveses de localização e baixa visibilidade, por exemplo, o museu pode
planejar estratégias para envolver de modo efetivo a comunidade que o cerca e circula
em seu entorno.
Nesse
sentido, há um esforço institucional em todas as instâncias jurídicas para
tentar organizar o panorama cultural. Exemplos são o Sistema Brasileiro de
Museus (SBM) de 2004, ligado à implementação do Sistema Nacional de Cultura (SNC).
Este tem por missão intermediar a gestão e promoção de políticas públicas entre
os entes da federação e as organizações civis. Igualmente o Plano Nacional de
Cultura (PNC), de 2005, mecanismo de planejamento a longo e médio prazo do SNC,
e o Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), coordenando a Política Nacional de
Museus (PNM).
Dentre
essas medidas devemos considerar o crescimento de instituições e cursos que têm
por objetivo a formação de profissionais ligados ao museu e ao universo da
arte: museólogos e historiadores da arte. Qual a nossa posição da Instituição
de ensino ao contemplar essa área dos saberes e das práticas? Quais as
implicações positivas desse processo? Quais os perigos coletivos e tentações
pessoais? Qual o nosso papel nesse jogo político?
Certamente
ele passa pela crítica às exposições e práticas de equipamentos culturais e
pela pesquisa, instância fundamental na criação de propostas de modelos
institucionais públicos de museu e gestão cultural.
Mesmo
tendo em conta, no macro, a situação de desencantamento e ausência de
perspectivas frente ao processo maciço de uma fagocitose do sistema capitalista auto
replicante em alto grau,
e no micro, as determinações sociais do acesso à prática cultural, nossa
responsabilidade é guardar uma margem crítica de reflexão sobre o nosso próprio
status e papel nessa busca política de “cidadania cultural” (Marilena Chauí),
direito ao acesso, à produção e à participação do fazer cultural.
Desse
modo, finalizamos por onde começamos: a exposição.
“No processo de construção de seu sistema
de correspondências, o sujeito cognitivo organiza, arruma a totalidade externa,
o mundo, em relação a um projeto dele, à sua vontade, segundo o seu desejo de
estar nesse mundo ou o transformar” (GONÇALVES, 2004, p. 58).
Referências bibliográficas
_
FARIAS, Agnaldo; ANJOS Moacir dos. Há sempre um copo de mar para um
homem navegar, 2010.
_ GONÇALVES, Lisbeth R. A Exposição de
Arte: conceituação e estratégias, In. Entre Cenografias: o museu e a
exposição de arte no século XX, São Paulo, Edusp/ Fapesp, 2004.
_
MOTTA, Renata Vieira da. Museu e Cidade: o impasse dos MAC's, Tese de
doutorado, FAUUSP, São Paulo, 2009.
[1]Durante gestão Fernando Henrique coloca-se
enfase no aspecto regulador e admitem-se organizações civis não-estatais e a
iniciativa privada no setor de bens e
serviços. Data daí o surgimento das Organizações Sociais (OSs) mediante o Plano
Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (1995), sob a direção de Luiz Carlos
Bresser Pereira, Ministro da Administração Federal e da Reforma do Estado.
[2]Sérgio Paulo Rouanet, Secretário de
Cultura, lança Lei Federal de Incentivo à Cultura (1991), garantindo isenções
fiscais, seja nos âmbitos municipal (IPTU, ISS), estadual (ICMS) ou federal
(IR) - Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac). A Lei é regulamentada em
1995. Concomitantemente, empréstimos junto ao Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID), investindo na reurbanização de centros históricos como
área de turismo cultural. Nos dizeres de Renata da Motta:“A partir dos anos
de 1990 (…) [a] preservação do patrimônio histórico de centros urbanos torna-se
prioridade nos discursos governamentais, com foco no potencial turístico e na
construção de equipamentos culturais de grande porte. Esse discurso
encontrava-se em consonância com a visão empresarial sobre gestão urbana
proposta nos planos estratégicos das agências multilaterais como o Banco
Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento que, posteriormente
pautariam o convênio do Programa Monumenta, voltado à recuperação do patrimônio
histórico de diversas cidades brasileiras. (…) Com a implantação da Lei Federal
de Incentivo à Cultura (Lei Rouanet), consolida-se o discurso de substituição
de parte da ação do Estado pela dos empresários e a modernização da gestão
pública. A cultura brasileira é elevada (sic) a instrumento de marketing nacional, reafirmando o país como
um destino turístico privilegiado pela sua singularidade cultural. Nesse
movimento criou-se um ambiente favorável ao fomento no Brasil de um nicho já
desenvolvido nos países centrais: das intervenções urbanas que incluem
equipamentos culturais, envolvendo artes e instituições financeiras” (MOTTA,
2009, p. 76-77).
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