30 dezembro, 2011

Da Autoria e da Biografia em Michel Foucault e Pierre Bourdieu


Introdução


"Todo o fantasma, toda a criatura de arte, para existir, deve ter o seu drama, ou seja, um drama do qual seja personagem e pelo qual é personagem. O drama é a razão de ser do personagem; é a sua função vital: necessária para a sua existência."
(Luigi Pirandello)


              Fins da década de 60 e início dos anos 70. A personagem que assistimos desdobrar-se sob os holofotes de um amplo teatro cultural da memória, e as revoluções tortuosas que se desenrolam, como as de um corpo em agonia são, de fato, estertores de um corpus antigo, para os quais nunca mais se olharia da mesma forma. São os últimos suspiros do que seriam para nós, hoje, os fantasmas familiares do Autor como sujeito, da História como registro e da Realidade como fato.
              Através da investigação dos fundamentos e das interrelações inerentes à urdirura social e de aproximações com outras culturas, tomando como base o princípio de significação a partir das equivalências e oposições virtualmente situados numa estrutura, noções tomadas dos estudos da Linguística, o que o existencialismo, o estruturalismo e outras correntes de pensamento propunham à época era sobretudo o exercício radical da crítica implosiva - e perspectivas de reformulação - de todo um constructo conceitual moderno e ocidental.
              No campo específico da literatura um dos pensadores que se propôs um estudo amplo e aprofundado da matéria foi o pensador francês Jacques Derrida.
              Debruçando-se sobre o mesmo objeto de estudo, numa abordagem mais histórico-sociológica que propriamente literária, dois autores se pronunciaram a respeito das modalidades de produção, reprodução e recepção da escrita: Michel Foucault (em uma comunicação à Sociedade Francesa de Filosofia , O que é um autor?) e Pierre Bourdieu (no seu escrito, A Ilusão Biográfica). É sobretudo sobre eles que vamos nos deter, estabelecendo, aqui e ali, paralelos com outros autores, especificamente relacionados ao campo da produção visual, que achamos por bem comtemplar.

O Autor e o Nome do Autor
                      
              Na corrente da tradição existencialista fundada peo filósofo Jean-Paul Sartre, que atentava para a impossibilidade de uma liberdade radical e absoluta do sujeito, infensa à coerção das estruturas de caráter psicológico, histórico, social e cultural que em certa medida a determinam, Michel Foucault se ocupa da crítica desconstrutiva da “personagem do autor”, denunciando seu caráter historica e socialmente convencionado, não como sujeito concreto, mas como


“(...) uma projeção, em termos mais ou menos psicologizantes, do tratamento a que submetemos os textos, as aproximações que operamos, os traços que estabelecemos como pertinentes, as continuidades que admitimos ou as exclusões que efetuamos (FOUCAULT, 1968, p. 51).


            Nesse sentido o autor como personagem constituir-se-ia no modus operandi da crítica literária que, a partir de um conjunto de produções concretas de cada escritor, estabeleceria uma canônica que definiria assim, o espaço do autor e o estatuto da obra. Cincuscritos a um momento preciso, delimitado na história, todos e cada um dos escritos devem deixar transparecer o exercício de uma coerência conceitual, de uma unidade estilística e portar uma mesma qualidade formal de valor constante. Toda produção que fugir a essa regra, deve ser excluída. Assim  nascem o autor e sua obra. Simultaneamente instaurados, podem desse modo ser “descobertos” e “consagrados”[1] (FOUCAULT, 1968, passim, pp. 40 – 52).
            O autor como personagem articula-se como uma  constante e uma função, não simplesmente dada, mas construída a partir da manipulação de um aglomerado de corpi conceituais, de uma certa operação (em que medida funcional ou estética?) sobre esses corpos que, passando pelo leito de Procrusto da história, sofrem incisões, correções, enxertos e amputações, até adequar-se ao modelo ideal, arquétipo/ estereótipo do Autor.             E o índice que o designa assegurando sua permanência, constância e coerência, sua assinatura e emblema, é o seu nome próprio.
            Como observa Bourdieu ( 1986, pp. 185; 187):
             

 É o nome próprio (...) com a individualidade biológica da qual ele representa a forma socialmente instituída, que assegura a constância através do tempo e a unidade através dos espaços sociais dos diferentes agentes sociais que são a manifestação dessa individualidade nos diferentes campos. (...) ele só pode atestar a identidade da personalidade, como individualidade socialmente constituída, à custa de uma formidável abstração.”


            Assim, longe de ser apenas um nome como outro qualquer, o nome do autor integra um modo de ser de um discurso que, igualmente, não é uma fala comum, apenas mais uma  voz em meio ao coro cotidiano, mas carrega um estatuto diferenciado, situa-se acima da comunicação ordinária. É uma voz que sustenta/ ostenta uma certa autoridade.

Raízes Históricas


“Essa vida organizada como linha histórica transcorre, segundo uma ordem cronológica que também é uma ordem lógica, desde um começo, uma origem, no duplo sentido de ponto de partida, de inicio, mas também de princípio, de razão de ser, de causa primcira, até seu término, que também é um objetivo” (BOURDIEU, 1986, p. 185).

            Essa constância que assegura a individualidade da pessoa e a persona do autor está, em última instância, sedimentada numa tradição ocidental filosófica que remonta, pelo menos, ao dualismo platônico (ideia do ser eterno, uno, imutável, essencial, elevado, bom, belo e verdadeiro em oposição ao não-ser, efêmero, plural, em constante mudança, acidental, vulgar, aparente, superficial, enganoso) e aos postulados da lógica aristotélica (princípios de identidade, não contradição, terceiro excluído, as quatro causas, o par ato-potência). Séculos à frente, outras construções, herdeiras desse legado ontológico e epistemológico surgirão. Exemplo categórico é a elaboração cartesiana que reafirma o estatuto privilegiado de um eu pensante (ego cogitans), marco zero fundamental do espaço como extensão infinita, dotado de uma consciência clara e distinta de si e das coisas. Graças à sua natureza intelectiva, esse Eu autocentrado, percebe o real como um todo orgânico, homogêneo, indiviso, regular e ordenado, cujas transformações são mensuráveis e cujas causas são dedutíveis. Cujos fenômenos são comprováveis e previsíveis. Um mundo, portanto, controlável e útil.
            É também esse senso de coerência e propósito que encontramos presente, alguns séculos antes, na tratadística do Renascimento, especialmente em Vasari e Alberti, manifesto na ideia fundamental.do disegno.[2]
            Consonante a uma profusão de expressões culturais afins que se desenvolveram na época, como por exemplo, as crônicas, as “Vite” [3] e a retratística,  resulta para nós manifesta a confluência desses gêneros narrativos para a consolidação desse projeto, a instauração da  monumentalidade do sujeito como protagonista significativo da história. O caráter de  indivíduo tanto quanto aquele de continuidade linear da narrativa histórica atestam a concepção do tempo como um continuum coerente de acontecimentos sucessivos que está na base de um projeto de afirmação de uma identidade regional (toscana, florentina), nacional (italiana) e, em última instância,  ocidental e moderna.

Da Ilusão Biográfica

“Produzir uma história de vida, tratar a vida como uma história, isto é, como relato coerente de uma sequência de acontecimentos com significado e direção, talvez seja conformar-se com uma  ilusão retórica, uma representação comum da existência que toda uma tradição literária não deixou e não deixa de reforçar”  (BOURDIEU, 1986, p. 185).

            Essa descontrução e esse desvelamento dos código que operam na produção de crenças historica e socialmente fundadas encontram paralelo nas reflexões de outro estudioso francês, Roland  Barthes, que em seu escrito A Câmara Clara, afirma sobre a pose no retrato fotográfico:

         “Ora, a partir do momemto em que me sinto olhado pela objetiva, tudo muda: ponho-me a posar, fabrico-me instantaneamente um outro corpo, metamorfoseio-me antecipadamente em imagem. (...) Diante da objetiva, sou, ao mesmo tempo, aquele que eu me julgo, aquele que eu gostaria que me julgassem, aquele que o fotógrafo me julga e aquele de que ele se serve para exibir sua arte” (BARTHES, 1984, pp. 22; 27).

            Ao expor o aspecto de artifício e convencionalidade em jogo no regime do dispositivo fotográfico, registro que não é de modo algum puramente objetivo, tal abordagem vem ao encontro da perspectiva descontrutiva da biografia como ilusão,  tratada no texto de Bourdieu. Ele alude aos condicionantes que, de maneira consciente ou inconsciente, estabelecemuma cumplicidade entre o biógrafo e seu “cliente”, no registro biográfico, e contra os quais, no caso da autobiografia, toda prudência não é suficiente para evitar a contaminação das próprias memórias e juízos (mesmo que admitamos por hipótese um grau razoável de objetividade ou algo como uma reta intenção do escritor).  Diz ele:

“O sujeito e o objeto da biografia (o investigador e o investigado) têm de certa forma a mesmo interesse em aceitar o postulado do sentido da existência narrada (e, implicitamente, de qualquer existência)” (BOURDIEU, 1986, p. 184).

            Como podemos inferir, essa busca por uma conformação/ afirmação identitária subsiste hoje, assumindo expressões variadas, muitas vezes em choque umas com as outras, porque suscetíveis à redução estereotípica, redução simbólica, mas que se dá, em última instância como uma redução de poder e de direitos de uma grande parcela da sociedade civil e instaura uma verdadeita batalha, travada em diversos campos que vão da arena político-partidária, à esfera da comunicação social ou de massa e ao âmbito de discussão e produção acadêmica.

       “(…) os discursos “literários” já não podem ser recebidos se não forem dotados da função autor: perguntar-se-á a qualquer texto de poesia ou de ficção de onde é que veio, quem o escreveu, em que data, em que circunstância ou a partir de que projeto” (FOUCAULT, 1968, P.49).

            Constância, previsibilidade, inteligibilidade, autenticidade, ligadas como estão à noção de identidade imputam àquele que a enverga um caráter de solidez e confiabilidade e, no extremo, de normalidade, em contraposição à inconstância caleidoscópica do  “indivíduo” patológico[4]. Toda a terminologia do estatuto identitário revela-se então, devedora em algum grau, do léxico da norma e da institucionalização, do universo da segurança e da vigilância.[5]
Da Sociologia e da História da Arte

            Atentando para a crítica exemplar da biografia e do autor como lugares de discurso (tomando este em sua acepção mais abrangente), vemos assim como em sua análise a investigação sociológica estabelece pontos de contato com a história da arte.

“Talvez seja tempo de estudar os discursos não somente pelo seu valor expressivo ou pelas suas transformações formais, mas nas modalidades se sua existência: os modos de circulação,  de valorização, de atribuição,  de apropriação dos discursos variam com cada cultura e modificam-se no interior de cada uma; a maneira como se articulam sobre relações sociais decifra-se de forma mais directa, parece-me, no jogo da função autor e nas suas modificações do que nos temas ou nos conceitos que empregam.” (BOURDIEU, 1986, p.69)

            O discurso informa-se em diferentes modalidades. A arte não constitui exceção. À literatura e à fotografia, como foi aqui citado, mas também, a outras formas artísticas como a gravura, a pintura, a música, a escultura, a produção cinematográfica e a arquitetura são reinvindicados ou atribuídos graus de autoria e de discursividade, e não exclusivamente à produção textual. Todas elas encontram-se igualmente mergulhadas nas dimensões estética e política, inseridas no universo da produção material e social, carregam signos de comunicação e expressão. Guardadas as especificidades de cada disciplina, o que Foucault defende para o texto, deve servir também para nós como uma plataforma para um mergulho no vasto oceano (de águas turvas? cristalinas?) da produção visual.
              Nesse sentido gostaríamos de ressaltar a presença recorrente, na história da arte de toda uma tradição de teóricos que se utilizam do arcabouço crítico, que dialoga com a investigação sociológica à medida que abordam as obras também como produções concretas, materiais, que transitam num espaço socialmente codificado. Desde a análise iconográfica de Erwin Panofsky, a descrição de Arnold Hauser, o argumento de Walter  Benjamin em favor da reprodutibilidade técnica e a interpretação histórica de Michael Baxandall.     


(Provisoriamente) Concluindo

              Todo um instrumental compartilhado dessas duas disciplinas converge para uma avaliação crítica do mundo da arte, seu lugar e status na vida em sociedade.
              Cremos ser de suma importância olhar em retrospecto a crítica de Foucault e Bourdieu e atentar igualmente para as experiências históricas onde a expressão artística, literária, longe de uma pretensa neutualidade, serviu a um controle social, a um mapeamento taxiconômico e cartográfico dos cidadãos, procedimentos levados ao extremo nos sistemas totalitários e aos quais reagiram grupos intelectuais e artísticos como o dadaísmo berlinense, por exemplo.
            A crítica radical efetuada em particular pelos pensadores vinculados ao estruturalismo e ao construtivismo foi importante naquele momento do século XX e continua atual, colocando para nós muitas questões, dentre as quais o discussão  fundamental acerca da proposição positiva da História como verdade e da Ciência como salvação, como fim último (desígnio) do devir humano.

        
         “A teoria e, mais ainda, a prática da social-democracia foram determinadas por um  conceito dogmático de progresso sem qualquer vínculo com a realidade. Segundo os social-democratas, o progresso era, em primeiro lugar, um progresso da  humanidade em si, e não das suas capacidades e conhecimentos. Em segundo lugar, era um processo sem limites, idéia correspondente à da perfectibilidade infinita do
 gênero humano. Em terceiro lugar, era um processo essencialmente automático, percorrendo, irresistível uma trajetória em flecha ou em espiral. Cada um desses atributos é controvertido e poderia ser criticado. Mas, para ser rigorosa, a crítica precisa ir além deles e concentrar-se no que lhes é comum. A idéia de um progresso da humanidade na história é inseparável da idéia de sua marcha no interior de um tempo vazio e homogêneo. A crítica da idéia do progresso tem como pressuposto a crítica da idéia dessa marcha” (BENJAMIN, 1940, p. ).

            Acreditamos que a crítica de Benjamin, dialogando com o manifesto Dada proferido pelo poeta Tristan Tzara se preste a redimensionar o problema, reintroduzindo para nós a dimensão coletiva da História como uma ficção. Se o real assume hoje para nós uma certa qualidade de sonho, (e o que dela escapa na pós-utopia, na pós-modernidade?), que essa realidade seja, na medida do improvável, uma ficção autobiográfica., que seja um “sonho que se sonha junto”.
           
“(...) Dizem-nos com frequência que somos incoerentes, mas nessa palavra as pessoas tentam colocar um insulto que me é difícil imaginar. Tudo é incoerente. O cavalheiro que resolve tomar um banho mas em vez disso vai ao cinema. O que quer ficar calado mas diz coisas que nem sequer lhe passaram pela cabeça. Outro que tem uma ideia precisa sobre um assunto mas só consegue expressar o contrário em palavras que para ele não passam de má tradução. Não existe lógica. Apenas necessidades relativas descobertas a posteriori, válidas não em algum sentido exato, mas somente como explicações.
Os atos da vida não têm começo nem fim. Tudo acontece de maneira idiota. Por isso tudo é igual. A simplicidade é chamada Dada”
(TZARA, T. apud CHIPP, 1996, p. ).

            Se por um lado parece-nos compreensível o caráter de ambigüidade que assume o irracionalismo dadaísta em lugares como a Itália onde é identificado com o futurismo e pervertido no sentido de um elogio da potência, da força bruta, arbitrária, da estetização da máquina como aparato bélico, enfim, da vida como essencialmente violenta e da existência como estado de guerra natural, de todos contra todos, por outro, contudo, a expressão originária do Dada é sobretudo carregada de ironia, não de retorno ao sublime romântico, elogio do efêmero e do insignificante frente à Natureza e à tragédia. Como na elaboração de Benjamin, ele é, antes de tudo, uma crítica desconstrutiva ao estado não natural de privação da dignidade e dos direitos da pessoa.


         Referências bibliográficas

_ BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito de História, In. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura, Trad. Sérgio Paulo Rouanet, São Paulo, Brasiliense, 1994.

_ BARTHES, Roland. A Câmara Clara, Nota sobre a fotografia, Trad. Júlio Castañon Guimarães, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984.

_ BOURDIEU, Pierre. A Ilusão Biográfica, In. FERREIRA, M. M.; AMADO, J. (org.) Usos e Abusos da História Oral, Rio de Janeiro, FGV, 2006.

_ PIRANDELLO, Luigi. Seis Personagens à Procura de um Autor, Tradução Sérgio Flaksman, São Paulo, Peixoto, 2004.

_TZARA, Tristan. Excerto da Conferência sobre o Dada, publicada originalmente em Merz (Hannover), II, n.7, 1924. A tradução brasileira foi feita a partir do inglês por Waltensir Dutra. Extraído de: CHIPP, Herschell B. - Teorias da Arte moderna, São Paulo, Martins Fontes, 1996.  


[1]              Não é rara (e nem gratuita) no jargão da crítica - muito próxima da ortodoxia dos textos sagrados da exegese cristã –  o uso da terminologia religiosa,  relacionada ao caráter aurático e transcedental da obra, bem como a atributos ligados à ideia de “revelação” e “culto” ao gênio, divino criador.
[2]              O termo, que a princípio pode ser referir-se simplesmente ao desenho, pode também ser entendido sob uma gama plural de significações como desígnio, diretriz, antecipação intelectual do objeto e, nesse sentido, é comumente traduzido como projeto.

[3]              As crônicas via de regra constituíam-se de registros anuais de acontecimentos e feitos memoráveis de personalidades ilustres.  As “vite” (vidas) são um desenvolvimento imediatamente posterior e tratam da biografia ou autobiografia dessas personagens.
[4]              Interessante notar os curto-circuitos que se instauram na linguagem diante de uma análise mais crítica. É um sintoma, por exemplo que fiquemos impossibilitados para designar aquele que é  “desviante” (o portador de desvio, que foge à linearidade) de utilizar termos como “sujeito” ou  “indivíduo” (aquele que resulta não sujeito mas paciente, o que sofre a ação; nem tampouco indivíduo, posto que essencialmente cindido em sua psyché). Ele resulta pois inominável, desprovido portanto de qualquer “autoridade”.
[5]              A esse tema o filósofo dedica uma atenção privilegiada em seu livro História da Loucura.

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