O
ensaio em questão volta-se para a nova abordagem antropológica que vem tomando
corpo há algumas décadas graças à iniciativa de alguns poucos pesquisadores e
etnólogos comprometidos num trabalho de investigação e tradução das culturas
dos grupos ameríndios. Movendo-nos num campo novo e sobremaneira complexo há
forçosamente o risco de incorrermos em equívocos diversos; tentaremos evita-lo
a todo custo, apoiando-nos no que, no alcande de nossa compreensão acreditamos
ser essencial nos escritos desses autores sobre a matéria. Buscar-se-á aqui
ressaltar a importância crucial das categorias visuais na apreensão e tradução
de sua sociocosmologia num esforço de diálogo com as categorias tradicionais de
imagem, história, arte, história da arte.
“A América não foi descoberta, foi invadida”[1]
A despeito de todas as comemorações que tem lugar quando da ocasião de
datas ‘civis’ comemorativas, especialmente aquelas que pretendem dar cabo da
mitologia das origens - sejam epopéias, como aquela do descobrimento de nossa
Pátria, da nossa brasilidade, sejam mitos mais localizados, como a fundação de
cada uma das nossas cidades natais, fica sempre aberta a questão do índio, de
quem seja essa figura e de qual a nossa relação com ela.
Eu, por exemplo, natural do município de São Vicente, tenho a
oportunidade de ‘reviver’, de uma só vez, a descoberta do Brasil e a fundação
da minha cidade. Digo ‘reviver’ porque esse teatro da memória não é senão a
tentativa de uma atualização nos modos de um tempo mítico, sacramentado; o
coloco entre aspas porque, longe de provocar uma autêntica ressonância
patriótica e cívica, tal encenação anual – crônica - me faz pensar na
pluralidade de determinações políticas que a informam: aquelas da colonização,
de há 1500 anos, primeiras no tempo, extrativistas e expropriativas,
“selvagens” no vocabulário ibérico; sua posterior revalorização, pautada pelo
projeto de uma moderna hegemonia político-econômica paulista que afirma as
bandeiras como fundamento último da conquista de uma integração nacional -
territorial e espiritualmente - e que institui outra(s) célula(s) mater no
Estado em oposição às sedes fundantes defendidas por outras regiões
brasileiras; e ainda aquelas contemporâneas, pedagogicamente orientadas para a
naturalização de uma dependência econômica externa tanto por parte dos
munícipes (das elites locais, de um turismo das elites) quanto por parte dos
brasileiros em geral (das elites nacionais e estrangeiras, dos Bancos e
empresas transnacionais, das flutuações do mercado global).
Em última instância, tal ‘descobrimento’ teatral é também o encobrimento
real da percepção sobre a principal fonte de recursos da cidade, não externa
mas local, que constituem os impostos arrecadados durante o exercício (termo
tão marcial) anual. Parte dela convenientemente volta sob a forma de espetáculo
cultural, cujo encantamento contribui para que se esqueça que a maior parte
dessa riqueza deveria reverter para os contribuintes - em melhorias nas
condições físicas dos bairros (não só os da orla da praia), em escolas, em postos de saúde, áreas de lazer, em
transporte, em geração consistente de renda, etc. E embora esse encantamento
tenha o mérito de mobilizar criativamente um contingente considerável de
pessoas e ‘esquentar’ o comércio local, endossa, contudo, o pensamento de que é
natural um certo subdesenvolvimento e atraso (embutida aí a ideia de
progresso), reforça a percepção de uma história que se repete e perpetua um
modo de sensibilidade no qual a política pública (sic) revela-se na verdade,
privada. ‘Aqueles que são brancos (ou
“aqueles que têm o colarinho branco” [2])
que se entendam’
Todas essas considerações de caráter atual e eminentemente urbano, que há
primeira vista nada tem que ver com as questões do estudo dos povos ameríndios,
do contato e do diálogo com esses grupos, estão, entretanto, implicadas na
imagem que constituiu-se sociohistoricamente: a de povos iletrados, que vivem
na natureza num estado próximo ao de 'bichos', isolados da civilização, sem
instiuições ou elaboraçóes, à margem do conforto e do saber proporcionados pela
moderna técnica. Torna-se assim urgente alcança-los para que possam finalmente
sair de sua condição pré-histórica, de indigência, acompanhar o progresso, num
movimento que é ao mesmo tempo de encontro e resgate. Salvação romântica que
mascara a continuidade de uma realidade de expropriação e extermínio.
A despeito dessa noção homogeneizante e diluidora veiculada na forma de
estereóripo pelos mais diversos meios de comunicação e práticas institucionais,
reproduzida no senso comum e na linguagem ordinária, tais sociedades guardam
uma complexidade e uma dinâmica próprias, ignorada pela maioria das pessoas.
Essa atitude prejudicial reflete-se também no âmbito da produção
científica e acadêmica, não só nas ditas disciplinas exatas' (nominação
bastante controversa se tomada de forma suficientemente abrangente), mas também
no estudo das humanidades, inclusive as pesquisas
etnológicas e antropológicas.
Recentemente, no entanto, consolida-se um movimento de aproximação que
opera um verdadeito giro conceitual, disposto a abordá-la a partir de suas
particularidades e positividades, não da ausência do que em nossa sociedade se
faz presente.
No caso do Brasil, ele tem início, com as pesquisas estruturais de Claude
Levi-Strauss e toma corpo nas últimas três décadas, com o surgimento de trabalhos de pesquisadores dispostos a um
efetivo diálogo com cada um desses grupos e preocupados com uma tradução
cuidadosa das culturas ameríndias, na medida do possível em seus próprios
termos.
“Linguagem do
corpo que se desdobra numa linguagem do espaço”[3]
Tal abordagem privilegia a corporalidade, noção cara a essa abordagem, e
elemento reconhecidamente central na organização sociocosmológica ameríndia:
“(...) o corpo,
afirmado ou negado, pintado ou perfurado, resguardado ou devorado, tende sempre
a ocupar uma posição central na visão que as sociedades indígenas têm da
natureza do ser humano” (SEEGER, A.; DA MATTA, R.; VIVEIROS DE CASTRO, E., 1979, p. 13)
Embora ainda possa se vislumbrar resquícios de um etnocentrismo
ontológico (uso de um léxico que denota a noção imanente de uma natureza humana
dada, homogênea e uniforme, presente em todo e qualquer sociedade enquanto agrupamento
de indivíduos e a eles subjascente) essa inflexão conceitual representa um
diferencial em relação às correntes antropológicas anteriores.
Mais que isso, a noção de corporalidade está inextricavelmente ligada às
categorias de nominação e de pessoa. Os nomes referem-se a um repertório
relativamente fixo de categorias conceituais que guardam uma margem de
interpretação ao ser aplicado a cada ser em particular, constituindo
modificadores semânticos.[4] Os
nomes referem-se também a um estoque limitado e fixo (mas não esgotável porque
virtualmente infinito e atualizável sob determinadas circunstâncias) de nomes
próprios que é transmitido e fica circunscrito a um intervalo curto de gerações
sucessivas, evanescendo a memória particular do que seria o indivíduo mediante
a supressão de todo e qualquer indício material de sua presença física visível
(mas não sua existência no mundo, como veremos à frente). Consequência disto é
que as genealogias perdem prevalência, assumindo outras posições e funções nessa
nova configuração que substitui os modelos alienígenas habitualmente transpostos
de um lugar para outro, que trazem no bojo ideias como linhagem, descendência,
patrimônio, etc. A importação mecânica desses modelos consolidades tendem a
engessar e perverter fenômenos dinâmicos, na tentativa de exaurí-los pela
análise. O tempo ameríndio não é o genealógico mas organiza-se como atualização
mítica, indissociável da concepção essencial de pessoa.
“Como
local da consciência individual, sensações e desejos,
e de alguns (embora não todos) controles sociais, bem como foco de alguns (embora
não todas) as representações culturais do mundo material e social, e tanto como objeto
material como categoria de discurso,
o corpo parece oferecer-se como uma base
para uma nova e diferente teorização das dimensões
sócio-culturais da existência
individual (...) A corporeidade é justamente reconhecida como uma categoria fundamental
unificadora da existência humana em todos os sentidos e níveis:
cultural, social, psicológico e biológico. O corpo é a um só tempo objeto material
e organismo vivo e agente,
detentor de formas rudimentares de subjetividade
que se tornam, através de um processo
de apropriação social, tanto uma
identidade social quanto um
objeto cultural.” (TURNER, T. 1995, pp.144-145, Livre tradução)
A reflexão que toma a pessoa como categoria organizadora das práticas
coletivas, converte-a num instrumento privilegiado de compreensão das
sociedades ameríndias na medida em que evita os embaraços causados por uma
dicotomia Indivíduo/ organização social. Agindo nos campos da investigação
antropológica e da experiência etnográfica (e suas relações dinâmicas que não
excluem a arqueologia, a psicologia, a história da arte, entre outras
disciplinas) esse novo modelo analítico busca ajustar o foco ‘parentesco –
linhagem – filiação’ para uma tentar de acomodar-se ao que parece ser um regime
simbólico mais afeito a categorias que se relacionam a noções como corpo e pessoa
constituídas como virtualmente inseparáveis da dimensão social.
Como é possível inferir, pessoa aqui deve ser entendida não como na
tradição de uma antropologia social como feixe de papéis variáveis a ser
desempenhados, mas como gravitação de categorias nativas que tem como ponto de
ancoragem o corpo e, como decorrente epistemológico, a imagem.
“(...) a corporalidade não é vista como experiência
infra-sociológica, o corpo não é tido por simples suporte de identidades e
papéis sociais, mas sim como instrumento, atividade, que articula significações
sociais e cosmológicas; o corpo é uma matriz de símbolos e um objeto de
pensamento (...) a fabricação, decoração, transformação e destruição dos corpos
são temas em torno dos quais giram as mitologias, a vida cerimonial e a
organização social” (SEEGER,
A.; DA MATTA, R.; VIVEIROS DE CASTRO, E., 1979, p. 20).
Na organização das sociedades ameríndias o sujeito não existe como
gente sem a ornamentação, idioma fundamental, código
social expresso graficamente e que constitui a pele da pessoa enquanto ser
social.
Aqui corpo biológico não esgota a noção de corpo, assim como corpo é
incapaz de exprimir por si só a totalidade do conceito operacional de pessoa,
definida em níveis internamente estruturados e extensíveis assim como o cosmo.
Assim, ao se olhar para uma pessoa, para suas pinturas e adereços,
automaticamente pode-se identificar seu pertencimento não só a um segmento
social, mas a uma fatia específica do cosmos e seu respectivo “dono”, e,
enquanto prerrogativa ritual, a um locus específico do estatuto
espacio-temporal do sociocosmo (limiares de passagem, recolhimento, periferia,
reincorporação no corpo da tribo, movimento para o centro).
Como observam os autores (SEEGER, A.;
DA MATTA, R.; VIVEIROS DE CASTRO, E., 1979, p. 11) tomando como
caso particular a organização estrutural Jê do Brasil Central, afim de tentar
estabelecer um paralelo com outros grupos do continente, atentam para uma série
de polaridades que encontram no espaço da corporalidade e no corpo do espaço (de
um lado, periferia da aldeia - centro do corpo,
mulheres, crianças, esfera doméstica, produção do indivíduo, alimentos,
associações por laço de substâncias físicas, fluidos, sangue, sêmen,
sexualidade, cotidiano; de outro, centro da aldeia - periferia do corpo,
homens, adultos, esfera público cerimonial, fala, nominação, classe, papéis
públicos, idade, negam laços de
substâncias, extraordinário, atualização do mitológico).[5]
Isso é particularmente emblemático na definição do duplo/ princípio
vital/ imagem (irredutível, no entanto, à nossa ideia de alma) que, embora
enunciada de maneiras diversas, materializa, corporifica na imagem todas essas
concepções.
Esse ponto é sobremaneita interessante para nós visto que afeta não somente
as noções relacionadas ao estatuto antropológico mas igualmente o já
controverso olhar a partir da/ em
diração à arte.
Essa fabricação ordenadora e fundante do corpo dos grupos do tronco Jê,
que encontra paralelo em muitos outros grupos nunca é pois, de forma exclusiva,
uma estética. Ela é também, simultaneamente, uma fisiológica, e uma ética.
Admitimos desse modo que a maior dificuldade de traduzir uma história dos
índios, ouvida/ vista por nós, seja, não a falta de artefatos e artigos
'históricos'. Nós contamos com um imaginário sobre os índios, mas que de tão
assimétrico, engloba-os todos numa categoria informe à margem dos nossos mitos
aos quais postamos o rótulo de História. Mas os índios constituíram e continuam
a constituir suas histórias e reservam para nós um lugar que não é central, de
protagonismo ou de heroísmo. A maior dificuldade de conhecê-los é a inabilidade
e resistência em vê-la, ouvi-la, mostrada/ contada por eles mesmos, sem cair na
tentação suprema de se projetar nela. Um exercício difícil que supõe uma
perspectiva flexível, cambiável e vontade política.
Nas palavras de Manuela Carneiro da
Cunha:
As sociedades
contemporâneas da Amazônia são igualitárias e em escala diminuta não por algum
antídoto contra a emergência de um Estado institucional, nem por qualquer determinação de caráter estritamente
psico-bio-fisiológico, étnico, ecológico, econômico, etc., mas por razões
estritamente históricas: o morticínio pela doença e pela guerra devidas à
expansão territorial do capitalismo mercantil.
(...) A recuperação
dessa história (indígena que não se resume àquela indigenista) é o fundamento
dos direitos territoriais indígenas: memória das expressões de uma tradição,
não meros documento de posse. (CARNEIRO DA CUNHA, 1998, pp. 12 e 22, passim)
Referências Bibliográficas
_ CARNEIRO DA
CUNHA, Manuela. Introdução à História
Indígena, In História do Índios no Brasil, São Paulo, Companhia das Letras,
1998, pp. 9-24.
_ CARNEIRO DA
CUNHA, Manuela. Imagens de índios do
Brasil no século XVI, In. Cultura
com Aspas, São Paulo, Cosac & Naify, 2011, pp. 179-201.
_ GELL, Alfred,
A Tecnologia do Encanto e o Encanto da Tecnologia, Concinnitas, ano 6, volume 1, número 8, julho 2005, pp.
_ SEEGER,
Anthony; DA MATTA, Roberto; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A Construção da Pessoa
nas Sociedades Indígens Brasileiras”, Boletim do Museu Nacional (Antropologia)
32, 1979, pp. 1-37.
_TURNER, Terence. Social
Body and Embodied Subject: Bodiliness, Subjectivity, and Sociality among the Kayapo,
Cultural Anthropology, Vol.
10, No. 2, Anthropologies of the Body (May, 1995), pp. 143-170.
_ VIVEIROS DE
CASTRO, Eduardo. A Inconstância da Alma Selvagem, São Paulo, Cosac &
Naify, 2002.
Sites
_ MÜLLER, Regina Pollo, Corpo e imagem
em movimento: há uma alma neste corpo, Rev. Antropol., Vol. 43, n. 2, São
Paulo, 2000.
_ VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Os Pronomes Cosmológicos e o
Perspectivismo Ameríndio, Mana
2 (2):115-144, 1996.
[1] (Jennings, 1975 apud Carneiro da
Cunha, 1998).
[2] A imagem do colarinho é rica pois
conversa com o imaginário de figuras zoomórficas de nosso ‘idílio tropical’. É
possível que esteja assentada num repertório derivado de tradições folclóricas
– e quiçá originária também de correntes narrativas orais de mitolgias
autóctones - de uma hierarquia de pássaros. Mas essas já são intuições que
necessitariam de depuração mediante uma pesquisa ampla e rigorosa.
[3] (SEEGER,
A.; DA MATTA, R.; VIVEIROS DE CASTRO, E., 1979, p. 22).
[4] Exemplos são os modificadores dos
Yawalapíti do Alto Xingu: -kumã, -rutú, -mína e -malú (
o 'excessivo', o 'autêntico', o 'inferior' e o
'seme1hante', que marcam os graus de distâncias entre os arquétipos e as
atualizações
(VIVEIROS DE
CASTRO, 2002, p.29).
[5] Há uma derivação em Turner e Lux
Vidal quando descrevem a localização dos pigmentos na ornamentação Kayapó: o
primeiro reserva o genipapo (negro) para as extremidades como indicativo de
liminaridade, morte e recolhimento na periferia e o urucum (vermelho) como
vitalidade, comunidade, centro, sangue. A segunda os situa opostamente. Nosso
primeito palpite seria de que a acepção de sangue enquanto fluido vital
interior e suas prescrições rituais (sangue menstrual, derramar sangue inimigo)
possam dar margens a ambiguidades na transposição tradutiva. Não sabemos ao
certo.
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