30 dezembro, 2011

Aspectos do Corpo e da Pessoa na Investigação Antropológica Ameríndia


       O ensaio em questão volta-se para a nova abordagem antropológica que vem tomando corpo há algumas décadas graças à iniciativa de alguns poucos pesquisadores e etnólogos comprometidos num trabalho de investigação e tradução das culturas dos grupos ameríndios. Movendo-nos num campo novo e sobremaneira complexo há forçosamente o risco de incorrermos em equívocos diversos; tentaremos evita-lo a todo custo, apoiando-nos no que, no alcande de nossa compreensão acreditamos ser essencial nos escritos desses autores sobre a matéria. Buscar-se-á aqui ressaltar a importância crucial das categorias visuais na apreensão e tradução de sua sociocosmologia num esforço de diálogo com as categorias tradicionais de imagem, história, arte, história da arte.


“A América não foi descoberta, foi invadida”[1]

A despeito de todas as comemorações que tem lugar quando da ocasião de datas ‘civis’ comemorativas, especialmente aquelas que pretendem dar cabo da mitologia das origens - sejam epopéias, como aquela do descobrimento de nossa Pátria, da nossa brasilidade, sejam mitos mais localizados, como a fundação de cada uma das nossas cidades natais, fica sempre aberta a questão do índio, de quem seja essa figura e de qual a nossa relação com ela.
Eu, por exemplo, natural do município de São Vicente, tenho a oportunidade de ‘reviver’, de uma só vez, a descoberta do Brasil e a fundação da minha cidade. Digo ‘reviver’ porque esse teatro da memória não é senão a tentativa de uma atualização nos modos de um tempo mítico, sacramentado; o coloco entre aspas porque, longe de provocar uma autêntica ressonância patriótica e cívica, tal encenação anual – crônica - me faz pensar na pluralidade de determinações políticas que a informam: aquelas da colonização, de há 1500 anos, primeiras no tempo, extrativistas e expropriativas, “selvagens” no vocabulário ibérico; sua posterior revalorização, pautada pelo projeto de uma moderna hegemonia político-econômica paulista que afirma as bandeiras como fundamento último da conquista de uma integração nacional - territorial e espiritualmente - e que institui outra(s) célula(s) mater no Estado em oposição às sedes fundantes defendidas por outras regiões brasileiras; e ainda aquelas contemporâneas, pedagogicamente orientadas para a naturalização de uma dependência econômica externa tanto por parte dos munícipes (das elites locais, de um turismo das elites) quanto por parte dos brasileiros em geral (das elites nacionais e estrangeiras, dos Bancos e empresas transnacionais, das flutuações do mercado global).
Em última instância, tal ‘descobrimento’ teatral é também o encobrimento real da percepção sobre a principal fonte de recursos da cidade, não externa mas local, que constituem os impostos arrecadados durante o exercício (termo tão marcial) anual. Parte dela convenientemente volta sob a forma de espetáculo cultural, cujo encantamento contribui para que se esqueça que a maior parte dessa riqueza deveria reverter para os contribuintes - em melhorias nas condições físicas dos bairros (não só os da orla da praia), em escolas,  em postos de saúde, áreas de lazer, em transporte, em geração consistente de renda, etc. E embora esse encantamento tenha o mérito de mobilizar criativamente um contingente considerável de pessoas e ‘esquentar’ o comércio local, endossa, contudo, o pensamento de que é natural um certo subdesenvolvimento e atraso (embutida aí a ideia de progresso), reforça a percepção de uma história que se repete e perpetua um modo de sensibilidade no qual a política pública (sic) revela-se na verdade, privada. ‘Aqueles que são brancos (ou  “aqueles que têm o colarinho branco” [2]) que se entendam’
Todas essas considerações de caráter atual e eminentemente urbano, que há primeira vista nada tem que ver com as questões do estudo dos povos ameríndios, do contato e do diálogo com esses grupos, estão, entretanto, implicadas na imagem que constituiu-se sociohistoricamente: a de povos iletrados, que vivem na natureza num estado próximo ao de 'bichos', isolados da civilização, sem instiuições ou elaboraçóes, à margem do conforto e do saber proporcionados pela moderna técnica. Torna-se assim urgente alcança-los para que possam finalmente sair de sua condição pré-histórica, de indigência, acompanhar o progresso, num movimento que é ao mesmo tempo de encontro e resgate. Salvação romântica que mascara a continuidade de uma realidade de expropriação e extermínio.
A despeito dessa noção homogeneizante e diluidora veiculada na forma de estereóripo pelos mais diversos meios de comunicação e práticas institucionais, reproduzida no senso comum e na linguagem ordinária, tais sociedades guardam uma complexidade e uma dinâmica próprias, ignorada pela maioria das pessoas.
Essa atitude prejudicial reflete-se também no âmbito da produção científica e acadêmica, não só nas ditas disciplinas exatas' (nominação bastante controversa se tomada de forma suficientemente abrangente), mas também no estudo das humanidades,  inclusive as pesquisas etnológicas e antropológicas.
Recentemente, no entanto, consolida-se um movimento de aproximação que opera um verdadeito giro conceitual, disposto a abordá-la a partir de suas particularidades e positividades, não da ausência do que em nossa sociedade se faz presente.
No caso do Brasil, ele tem início, com as pesquisas estruturais de Claude Levi-Strauss e toma corpo nas últimas três décadas, com o surgimento de  trabalhos de pesquisadores dispostos a um efetivo diálogo com cada um desses grupos e preocupados com uma tradução cuidadosa das culturas ameríndias, na medida do possível em seus próprios termos.
“Linguagem do corpo que se desdobra numa linguagem do espaço”[3]


Tal abordagem privilegia a corporalidade, noção cara a essa abordagem, e elemento reconhecidamente central na organização sociocosmológica ameríndia:

“(...) o corpo, afirmado ou negado, pintado ou perfurado, resguardado ou devorado, tende sempre a ocupar uma posição central na visão que as sociedades indígenas têm da natureza do ser humano” (SEEGER, A.; DA MATTA, R.; VIVEIROS DE CASTRO, E., 1979, p. 13)

Embora ainda possa se vislumbrar resquícios de um etnocentrismo ontológico (uso de um léxico que denota a noção imanente de uma natureza humana dada, homogênea e uniforme, presente em todo e qualquer sociedade enquanto agrupamento de indivíduos e a eles subjascente) essa inflexão conceitual representa um diferencial em relação às correntes antropológicas anteriores.
Mais que isso, a noção de corporalidade está inextricavelmente ligada às categorias de nominação e de pessoa. Os nomes referem-se a um repertório relativamente fixo de categorias conceituais que guardam uma margem de interpretação ao ser aplicado a cada ser em particular, constituindo modificadores semânticos.[4] Os nomes referem-se também a um estoque limitado e fixo (mas não esgotável porque virtualmente infinito e atualizável sob determinadas circunstâncias) de nomes próprios que é transmitido e fica circunscrito a um intervalo curto de gerações sucessivas, evanescendo a memória particular do que seria o indivíduo mediante a supressão de todo e qualquer indício material de sua presença física visível (mas não sua existência no mundo, como veremos à frente). Consequência disto é que as genealogias perdem prevalência, assumindo outras posições e funções nessa nova configuração que substitui os modelos alienígenas habitualmente transpostos de um lugar para outro, que trazem no bojo ideias como linhagem, descendência, patrimônio, etc. A importação mecânica desses modelos consolidades tendem a engessar e perverter fenômenos dinâmicos, na tentativa de exaurí-los pela análise. O tempo ameríndio não é o genealógico mas organiza-se como atualização mítica, indissociável da concepção essencial de pessoa.

“Como local da consciência individual, sensações e desejos, e de alguns (embora não todos) controles sociais, bem como foco de alguns (embora não todas) as representações culturais do mundo material e social, e tanto como objeto material como categoria de discurso, o corpo parece oferecer-se como uma base para uma nova e diferente teorização das dimensões sócio-culturais da existência individual (...) A corporeidade é justamente reconhecida como uma categoria fundamental unificadora da existência humana em todos os sentidos e níveis: cultural, social, psicológico e biológico. O corpo é a um só tempo objeto material e organismo vivo e agente, detentor de formas rudimentares de subjetividade que se tornam, através de um processo de apropriação social, tanto uma identidade social quanto um objeto cultural.” (TURNER, T. 1995, pp.144-145, Livre tradução)


A reflexão que toma a pessoa como categoria organizadora das práticas coletivas, converte-a num instrumento privilegiado de compreensão das sociedades ameríndias na medida em que evita os embaraços causados por uma dicotomia Indivíduo/ organização social. Agindo nos campos da investigação antropológica e da experiência etnográfica (e suas relações dinâmicas que não excluem a arqueologia, a psicologia, a história da arte, entre outras disciplinas) esse novo modelo analítico busca ajustar o foco ‘parentesco – linhagem – filiação’ para uma tentar de acomodar-se ao que parece ser um regime simbólico mais afeito a categorias que se relacionam a noções como corpo e pessoa constituídas como virtualmente inseparáveis da dimensão social.
Como é possível inferir, pessoa aqui deve ser entendida não como na tradição de uma antropologia social como feixe de papéis variáveis a ser desempenhados, mas como gravitação de categorias nativas que tem como ponto de ancoragem o corpo e, como decorrente epistemológico, a imagem.

“(...) a corporalidade não é vista como experiência infra-sociológica, o corpo não é tido por simples suporte de identidades e papéis sociais, mas sim como instrumento, atividade, que articula significações sociais e cosmológicas; o corpo é uma matriz de símbolos e um objeto de pensamento (...) a fabricação, decoração, transformação e destruição dos corpos são temas em torno dos quais giram as mitologias, a vida cerimonial e a organização social” (SEEGER, A.; DA MATTA, R.; VIVEIROS DE CASTRO, E., 1979, p. 20).

Na organização das sociedades ameríndias o sujeito não existe como gente  sem a  ornamentação, idioma fundamental, código social expresso graficamente e que constitui a pele da pessoa enquanto ser social.
Aqui corpo biológico não esgota a noção de corpo, assim como corpo é incapaz de exprimir por si só a totalidade do conceito operacional de pessoa, definida em níveis internamente estruturados e extensíveis assim como o cosmo.
Assim, ao se olhar para uma pessoa, para suas pinturas e adereços, automaticamente pode-se identificar seu pertencimento não só a um segmento social, mas a uma fatia específica do cosmos e seu respectivo “dono”, e, enquanto prerrogativa ritual, a um locus específico do estatuto espacio-temporal do sociocosmo (limiares de passagem, recolhimento, periferia, reincorporação no corpo da tribo, movimento para o centro).
Como observam os autores (SEEGER, A.; DA MATTA, R.; VIVEIROS DE CASTRO, E., 1979, p. 11) tomando como caso particular a organização estrutural Jê do Brasil Central, afim de tentar estabelecer um paralelo com outros grupos do continente, atentam para uma série de polaridades que encontram no espaço da corporalidade e no corpo do espaço (de um lado, periferia da aldeia - centro do corpo,  mulheres, crianças, esfera doméstica, produção do indivíduo, alimentos, associações por laço de substâncias físicas, fluidos, sangue, sêmen, sexualidade, cotidiano; de outro, centro da aldeia - periferia do corpo, homens, adultos, esfera público cerimonial, fala, nominação, classe, papéis públicos, idade,  negam laços de substâncias, extraordinário, atualização do mitológico).[5]
Isso é particularmente emblemático na definição do duplo/ princípio vital/ imagem (irredutível, no entanto, à nossa ideia de alma) que, embora enunciada de maneiras diversas, materializa, corporifica na imagem todas essas concepções.
Esse ponto é sobremaneita interessante para nós visto que afeta não somente as noções relacionadas ao estatuto antropológico mas igualmente o já controverso olhar  a partir da/ em diração à arte.
Essa fabricação ordenadora e fundante do corpo dos grupos do tronco Jê, que encontra paralelo em muitos outros grupos nunca é pois, de forma exclusiva, uma estética. Ela é também, simultaneamente, uma fisiológica, e uma ética.
Admitimos desse modo que a maior dificuldade de traduzir uma história dos índios, ouvida/ vista por nós, seja, não a falta de artefatos e artigos 'históricos'. Nós contamos com um imaginário sobre os índios, mas que de tão assimétrico, engloba-os todos numa categoria informe à margem dos nossos mitos aos quais postamos o rótulo de História. Mas os índios constituíram e continuam a constituir suas histórias e reservam para nós um lugar que não é central, de protagonismo ou de heroísmo. A maior dificuldade de conhecê-los é a inabilidade e resistência em vê-la, ouvi-la, mostrada/ contada por eles mesmos, sem cair na tentação suprema de se projetar nela. Um exercício difícil que supõe uma perspectiva flexível, cambiável e vontade política.
            Nas palavras de Manuela Carneiro da Cunha:

       As sociedades contemporâneas da Amazônia são igualitárias e em escala diminuta não por algum antídoto contra a emergência de um Estado institucional, nem por qualquer  determinação de caráter estritamente psico-bio-fisiológico, étnico, ecológico, econômico, etc., mas por razões estritamente históricas: o morticínio pela doença e pela guerra devidas à expansão territorial do capitalismo mercantil.
(...)   A recuperação dessa história (indígena que não se resume àquela indigenista) é o fundamento dos direitos territoriais indígenas: memória das expressões de uma tradição, não meros documento de posse. (CARNEIRO DA CUNHA, 1998, pp. 12 e 22, passim)





Referências Bibliográficas

_ CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Introdução à História Indígena, In História do Índios no Brasil, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pp. 9-24.

_ CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Imagens de índios do Brasil no século XVI, In. Cultura com Aspas, São Paulo, Cosac & Naify, 2011, pp. 179-201.

_ GELL, Alfred, A Tecnologia do Encanto e o Encanto da Tecnologia, Concinnitas, ano 6, volume 1, número 8, julho 2005, pp.

_ SEEGER, Anthony; DA MATTA, Roberto; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A Construção da Pessoa nas Sociedades Indígens Brasileiras”, Boletim do Museu Nacional (Antropologia) 32, 1979, pp. 1-37.

_TURNER, Terence. Social Body and Embodied Subject: Bodiliness, Subjectivity, and Sociality among the Kayapo,  Cultural Anthropology, Vol. 10, No. 2, Anthropologies of the Body (May, 1995), pp. 143-170.

_ VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A Inconstância da Alma Selvagem, São Paulo, Cosac & Naify, 2002.

Sites

_ MÜLLER, Regina Pollo, Corpo e imagem em movimento: há uma alma neste corpo, Rev. Antropol., Vol. 43, n. 2, São Paulo, 2000.

_ VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Os Pronomes Cosmológicos e o Perspectivismo Ameríndio, Mana 2 (2):115-144, 1996.


[1]              (Jennings, 1975 apud Carneiro da Cunha, 1998).
[2]              A imagem do colarinho é rica pois conversa com o imaginário de figuras zoomórficas de nosso ‘idílio tropical’. É possível que esteja assentada num repertório derivado de tradições folclóricas – e quiçá originária também de correntes narrativas orais de mitolgias autóctones - de uma hierarquia de pássaros. Mas essas já são intuições que necessitariam de depuração mediante uma pesquisa ampla e rigorosa.
[3]             (SEEGER, A.; DA MATTA, R.; VIVEIROS DE CASTRO, E., 1979, p. 22).
[4]              Exemplos são os modificadores dos Yawalapíti do Alto Xingu: -kumã, -rutú, -mína e -malú (
o 'excessivo', o 'autêntico', o 'inferior' e o 'seme1hante', que marcam os graus de distâncias entre os arquétipos e as atualizações
 (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p.29).
[5]              Há uma derivação em Turner e Lux Vidal quando descrevem a localização dos pigmentos na ornamentação Kayapó: o primeiro reserva o genipapo (negro) para as extremidades como indicativo de liminaridade, morte e recolhimento na periferia e o urucum (vermelho) como vitalidade, comunidade, centro, sangue. A segunda os situa opostamente. Nosso primeito palpite seria de que a acepção de sangue enquanto fluido vital interior e suas prescrições rituais (sangue menstrual, derramar sangue inimigo) possam dar margens a ambiguidades na transposição tradutiva. Não sabemos ao certo.

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