08 agosto, 2011

Sobre os museus de arte

Nossas reflexões se desenrolam frente a uma constatação: há um mal-estar provocado, há muito, pelos museus, encarados como “cemitérios da arte” desde Alphonse de Lamartine (1790-1869), passando pela radicalidade modernista, avessa a toda e qualquer conservação do passado e expressa no Manifesto Futurista até, mais recentemente, à revolução cultural de 1968, onde a classe estudantil francesa, defendia enfaticamente que era preciso “incendiar o Louvre” (cf. MENESES, 1994, p. 11).
Curioso observar hoje que a memória do poeta Lamartine conta com seu próprio museu, - Le Musée Lamartine em Mâcon, sua cidade natal, perto de Lyon; desde 1969, ano do centenário de sua morte, essa antiga mansão privada do século 18, abriga uma coleção de documentos sobre sua vida e obra.
Igualmente irônico é o fato de que a estética fantástica das novas “catedrais” da arte, observada por exemplo, na mostra “Museus do Século 21” no museu Pergamon, Berlim, em 2008, mostra que conta com expoentes da arquitetura espetacular como Frank Gehry e Daniel Libeskind, seja chamada precisamente de “mostra de museus futuristas”.
Parece que, a despeito da controvérsia acirrada da morte da arte, da história, e da história da arte (e de seus respectivos renascimentos), o museu permanece incólume, sobrevivendo a tudo e a todos.

Museu Valéry-Proust

“Ninguém deveria, porém, se tranqüilizar com reconheciment geral da situação negativa. Uma disputa intelectual, como a referente aos museus, deveria ser travada com argumentos específicos.”

Esta contundente assertiva, atualíssima, poderia constar em qualquer publicação corrente de Arquitetura ou poderia facilmente ser interpretada como fragmento transcrito de um pronunciamento recentemente feito por ocasião de algum Congresso Internaional da área.
A frase é de autoria de Theodor Adorno (1903 - 1969) e está contida em seu artigo Museu Valéry-Proust, escrito em 1953, e publicado no mesmo ano. Nele o pensador aborda de forma bastante interessante tal problemática, já repisada, mas sem perspectiva imediata de solução facilmente articulável.
De fato, várias dessas questões encontram-se intimamente relacionadas aos desafios com os quais ainda hoje temos de lidar, dentre elas assinalamos a da função, importância e destino dos museus de arte; do valor, natureza e conformação de seu acervo; das diferentes perspectivas envolvidas - do artista, do observador, do curador. Devemos somar a estas, naturalmente, a do historiador da arte e teremos algo com o que trabalhar.

***

O ponto de partida da análise do autor é a análise historiográfica que contrapõe dois escritos literários: O problema dos Museus, de Paul Valéry e o terceiro volume de À Sombra das Moças em Flor*, de Marcel Proust, são documentos realmente díspares mas não tiveram, originariamente, a intençãode serem polemicamente opostos.
Em ambos os autores, Adorno estabelece como fator comum a ambos, o prazer da fruição através da obra de arte. A partir daí segue propondo alternativas, relativizando o que seja a obra de arte, o museu e todos os seus desdobramentos lógicos. De fato, grande parte da riqueza de seu texto advém da crítica sistemática e desconstrutiva que aplica a praticamente todos os conceitos estabelecidos relacionados ao universo estético e museal. Ele conversa conosco.
Aborda, por exemplo, tanto a questão das tentativas malfadadas de uma contextualização canhestra, anacrônica, sem sentido, como das tentativas supostamente modernizantes de resgate da obra em si, que buscam situar o antigo e “sagrado” no ambiente cotidiano, “profano”, numa tentativa de preservar a qualquer custo, os artefatos, que permanecem ainda assim deslocados e vazios.
Uma das questões principais é sobre a própria função do museu. Na palvras de Valéry ( 1931, p. 32):

“Vim instruir-me ou buscar encantamento, ou, de outro modo, cumprir um dever e satisfazer convenções? Ou, ainda, não seria este um exercício de tipo particular (...)?”
Identificamos aqui a questão da diversidade de artefatos preservados, que comportam possibilidades de apropriação - seja como instrumentos de conhecimento histórico, seja como instâncias de prazer estético – e que por sua vez encontram-se insertos de maneira cumulativa num monumento também ambíguo, o museu.
A questão maior, então, fonte do mal-estar cultural, diagnosticado em Valéry-Proust e amplificada por Adorno é a questão da possibilidade dos museus de permitirem uma compreensão do mundo como realidade dinâmica, em constante transformação, e deixar entrever igualmente as forças que estão por detrás dessa mudança.

Museu Tradicional e TV
Este é um desafio que se coloca em várias frentes e levando em conta o contexto e a época do texto, bem como a afinidade do aporte crítico de Adorno com o universo dos media, gostaríamos aqui de traçar um breve paralelo entre a conformação museológica tradicional que ele põe em cheque e aquela da comunicação de massa, suas afinidades, especificidades e, se possível, pontuar soluções.
Se tomarmos tanto os museus como o veículo televisivo como conjunto de representações coletivas, veremos que há neles uma série de elementos em comum.
Em primeiro lugar são instâncias amplamente difundidas. Hoje, mais do que nunca vemos um movimento crescente de estímulo à experiência de visita aos museus como ambientes de encontro, de recreação familiar, ocasião privilegiada de aquisição de cultura e de entretenimento. Essas tarefas, à décadas, têm sido atribuídas aos programas de TV.
Em segundo, são experiências compartilhadas. Assim como comentamos entusiasmados a lembrança de termos experimentado uma tarde agradável no museu, termos desfrutado da oportunidade de estar diante de ícones consagrados da nossa cultura, que permanecem em nós, é também através dos antigos programas televisivos (desenhos animados, séries antigas, filmes, novelas, jogos esportivos) que reconhecemos um repertório mental de imagens e um patrimônio de memórias afetivas compartilhado, o que Proust chama “la postérité de l'oevre” (Proust apud Adorno, idem, p.181), e que constitui, por conseguinte a posteridade da tradição cultural. Eles são assunto nos poucos encontros de que dispomos, especialmente no contexto urbano das grandes cidades.
Além disso, esse repertório de imagens que compõe em grande parte a tradição cultural, privilegia sobretudo nosso sentido de visão. Como na experiência a TV, não nos é dado, como já observava irritado Valéry, aproximar-se mais das imagens, tocá-las, experienciá-las de modos diversos, mais espontâneos. Temos para ambos, códigos implícitos de fruição, que se supõem naturais e transparentes mas que não fundo revelam-se convencionais e arbitrários. Qual o alcance da nossa liberdade ao desfrutamos tais instâncias de lazer e aperfeiçoamento pessoal?
Ambos operam a partir de discursos predominantemente visuais - discursos que encerram valores, visões de mundo - sobre o que foi/ é(/ será) a realidade anulando outras possíveis leituras e interpretações.
Além isso, há obviamente o fato de que ambos compõem-se ou são munidos de dispositivos, supõem, como produto materiais, um mercado, público alvo e mecanismos de propaganda.
Contudo, guardadas as proporções, e a despeito de tais similitudes, tal analogia revela-se bastante frágil. E isso porque entre as especificidades do museu, o âmbito de ação em relação a este é muito maior do que na indústria televisiva, por exemplo. O museu é espaço de circulação e cremos poder transmutar-se mais facilmente em via de mão dupla para as idéias, comportamentos e atitudes. Por incrível que possa parecer o museu é mais passível de dinamicizar-se que a TV. Essa constitui um vetor unidirecional enquanto aquele pode servir como espaço que comporta vetores de relações mais dinâmicas. Artistas, observadores e curadores enquanto cidadãos têm a possibilidade de utilizar-se, de forma cooperativa, de seus saberes para engendrar uma visão crítica do museu e da realidade através de ações pontuais que os integrem em experiências como as do Moinho Colognese, em Ilópolis, na Serra Gaúcha que, apesar de não se enquadrar propriamente ao museu de arte, que quisemos aqui privilegiar, aponta,contudo, para soluções interessantes nos campos de gestão comunitária, mínima intervenção e preservação auto-sustentável do patrimônio local e da memória do grupo.



Referências bibliográficas

_ ADORNO, Theodor W. Museu Valéry-Proust In Prismas: crítica cultural e soiedade, Trad. Augustin Wernet e Jorge de Almeida, São Paulo, Ed. Ática, 1998.

_ MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. Do teatro da memória ao laboratório da História: a exposição museológica e o conhecimento histórico, In Anais do Museu Paulista, v.2, 1994.

_ VALÉRY, Paul. O Problema dos Museus (1931), Trad. Sônia Salzstein, Rev. ARS (São Paulo), vol.6, n.12, pp 31-34. julho/Dezembro, ECA – USP, 2008.

Sites

_ CRESCENTI, Marcelo. Mostra em Berlim destaca museus de arquitetura futurista, Artigo na BBC Brasil, 24 de março, 2008.
Disponível em: http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2008/03/080321_museusfuturistasmc_fp.shtml

_ OECHSLIN, Werner. Museus do Século XXI: Conceitos, Projectos, Edifícios, Lisboa, CulturGest, Grupo Caixa Geral de Depósitos, 2008.
Disponível em: http://www.culturgest.pt/docs/museus_sec_xxi.pdf

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