08 agosto, 2011

A fotografia como poética crítica: Robert Frank e os “Stones”

Procuramos aqui abordar a breve sequência em formato Super 8 realizada por Robert Frank, anterior às filmagens da tour de 72 do grupo The Rolling Stones, trabalho que teve como produto final o documentário Cocksucker Blues. O fragmento escolhido, embora não pertença propriamente ao filme sobre a banda, foi retomado posteriormente, figurando como arte gráfica no álbum ‘Exile on the Main Street, de mesmo ano.

http://www.youtube.com/watch?v=_lNP-x94-SE

When people look at my pictures I want them to feel the way they do when they want to read a line of a poem twice.
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[Quando as pessoas olham para minhas fotografias quero que elas se sintam como quando são levadas a ler um verso de um poema mais de uma vez.]1





O registro de Robert Frank no ano de 1972, parece-nos hoje corriqueiro, ainda mais da maneira como foi utilizado, no formato videoclip. A razão disso - pouco evidente para a maioria das pessoas – é que a propaganda como dispositivo detém uma espantosa capacidade de apropriação e adaptação do discurso crítico aos seus próprios fins. O que hoje nos parece mais um vídeo mirabolante da programação 'MteleVisiva' pra vender música (ainda que de muito boa qualidade, o que é também raro), já foi encarado como subversivo, underground. Irônico o fato de que hoje, esse ritmo e essa atitude nos parecem mais que familiares: são repletas de glamour e atitude. E, ainda que pervertidas em seu sentido original, permanecem imagens ativas e ativadoras.
Felizmente, a crítica consciente - nela inclusa aquela de expressão artística, seja ela literária, musical, da imagem, do audiovisual - vem demonstrando habilidade em se valer desse mimetismo agressivo da indústria de marketing para tentar inverter tal relação parasitária, transformando o corpo translúcido e naturalmente flexível da propaganda comercial em vetor de questionamentos legítimos.




Like a Rolling Stone: Robert Frank e a fotografia como poética crítica

No caso do documentário de Robert Frank, o material original constitui-se de um fragmento de Super 8, formato que na época tornou-se bastante popular no uso de produções experimentais e cinema semi-profissional. Originalmente não havia som. A película não era munida de banda magnética sonora, o que ocorreu somente no ano subsequente ao do filme em questão.
De qualquer forma, ele está diretamente ligado à produção do grupo musical The Rolling Stones, que na época planejava uma grande tour americana para o álbum ‘Exile on Main Street’.2
Em seus temas e formas podemos perceber uma atmosfera característica que remete à obra de Walker Evans, fotógrafo que documentou os efeitos da Grande Depressão americana entre os anos de 1920 e 1930. Evans registra um panorama que contrasta drasticamente com a imagem oficial veiculada pelos grandes meios de imprensa: América, uma impávida nação, dotada de imperturbável tradição, predestinada a um futuro promissor, terra de riquezas, radiante e bem sucedida a despeito de crises esporádicas de adaptação (Vale lembrar o mote significativo da Revista Life, “Where there’s Life, there’s hope”).
Trinta anos passados, nos deparamos novamente com uma série de elementos comuns. A escrita, sobretudo a da propaganda massiva (aos quais já se voltava Eugène Atget (1857 - 1927) nos seus daguerreótipos da deserta Paris matutina, prestes a desparecer sob o rolo compressor da moderna reforma haussmaniana). Em Frank, cartazes, luminosos, placas de sinalização, de estabelecimentos comerciais, logomarcas, outdoors, cartazes, parados ou correndo, em relevo ou piscando, tudo grita, rivaliza, disputa o espaço público e a atenção do passante, revela a dinâmica esfuziante do ambiente urbano, em grandes centros como Nova Iorque e Los Angeles, onde foram realizadas as filmagens.
Também o reclame da violência aparece em letras garrafais na primeira página do noticiário impresso (RESCUER STABBED/ VAI AJUDAR E ACABA ESFAQUEADO3)
O filme, como empreendimento experimental, materializa as investigações do artista. Efeitos de transparências, gradações, layers. É surpreendente que a fotografia de Frank dialogue tão intimamente com as já citadas criações de Atget, e pareçam adentrar já no universo de outros media, que surgirão posteriormente. Certamente podemos contá-lo entre os inspiradores de uma estética da superfície, com suas justaposições e fusões de camadas variadas que vão compor a imagem ambígua, “híbrida”, entre a profundidade do cinema e a espessura do vídeo, da qual fala Dubois.4
Evidenciando a presença da câmera, questiona a transparência do cinema convencional jogando com o estatuto identitário da imagem. O receptor flutua entre múltiplos avatares: ora como cinegrafista, artífice da imagem, assume o lugar deste; ora incorpora o pedestre inserto no meio do caótico turbilhão urbano; ora volta-se para si mesmo, enquanto espectador de um fragmento cinematográfico - mas quem é esse si mesmo, afinal de contas? A obra suscita dessa forma questionamentos acerca de outros modos de apreensão da realidade, de percepção do espaço-tempo: movimentos irregulares de aparelho e o uso de distanciamentos e aproximações bruscas em zoom denotam o aspecto fragmentário da percepção, do olhar fugaz e da atenção constantemente dividida do moderno habitante da cidade; cortes abruptos sugerem saltos, elipses, intermitências. Tomadas cujo grau de enquadramento e desfoque limitam a compreensão imediata e integral do todo, constróem um espaço ambíguo; mesmo sem integrar ao seu trabalho um amplo espectro de cores, o fotógrafo/ cinegrafista não negligencia a saturação, a solarização, exibe a imagem estourada, ofuscando a sensibilidade retiniana potencializada. Sim, pois o que são esses flashbacks, esses ecos e repetições, todo esses malabarismos reunidos numa amálgama de sensações estimulantes, levadas ao extremo, senão uma experiência-limite, de estados alterados de consciência similar àqueles proporcionados pelo uso de determinadas substâncias narcóticas? Não seria uma alusão ao seu estatuto de interdito em nome da lei e da ordem por serem encaradas, em sua essência, como desencadeantes de atitudes e comportamentos subversivos?
Eis aí mais um elemento importante dessa estética do deslocamento: o de ato performático, que se pretende divergente, mesmo contraventor.
Gesto emblemático que ilustra tal condição é a escrita transgressora de Mick sobre a cédula de dólar que entrefigura em meio à enxurrada de takes que se derramam sobre a tela. Essa disposição contestatória é manifesta na expressão visual do grupo, no gestual, na indumentária. O aspecto bruto, cabelos em desalinho ou simplesmente desgrenhados, o riso sardônico a exibir dentes irregularmente dispostos. O indecoroso abrir de olhos e pernas, a confrontação acintosa, provocadora, entre agressiva e sarcástica. A onipresente brasa acesa do cigarro.
Ou, ainda melhor, o ar mesmo de apatia, escapando em tediosos bocejos, os braços cruzados, fazem sentir uma espécie de lassidão algo passivo-agressiva, de velada intolerância a todo o discurso ufanista da máquina oficial. Aliado a isso o uso de óculos escuros que instituem a recusa, o olhar interdito, que vê sem sem visto, objetiva sem ser objetivado, o olhar outsider de Teseu que não se permite transformar em pedra, coisificar-se. A cortina de fumaça.
Essa energia também está fortemente presente nas composições dos Stones.
Sweet Black Angel é uma delas. Nesta faixa, do álbum Exile on Main Street (1972), resulta bastante explícita a dimensão da expressão artística como ativismo político. Ela é um manifesto à causa da ativista de direitos civis Angela Davis, acusada na época de participação no sequestro e morte do juiz Harold Haley do condado da Califórnia.
A própria incorporação mais recente ao Super 8 de Frank, de uma outra canção do mesmo disco, ainda que não fosse originariamente a intenção de quaisquer dos artistas envolvidos no projeto, adiciona aspectos interessantes à interpretação. Explicitamente inspirada por “Get your rocks off” (1964), de Dylan, ícone da contracultura dos anos 60, o refrão de Rocks off anuncia: “I only get my rocks off while I'm dreaming/ sleeping”. No nosso entender, uma alusão à rotina sisífica do eterno recomeço, expressão do cotidiano esquizofrênico do universo do trabalho titânico, infinito, deceptivo e necessário - incluso aí o trabalho criativo e contestador - de quem "vai colhendo as ilusões sucessivas no pomar", diria o escritor português Michel Torga.5
La Carotte et le Bâton.
A incorporação dos metais, irrompendo a certa altura da música tem tudo a ver, por exemplo, com o universo da cidade de Los Angeles onde parte das filmagens acontecem. Coro de trombetas a anunciar tickets premiados para os primeiros assentos de um espetáculo apocalíptico urbano, essa sonoridade é a ‘cara rasgada’ da metrópole dos Anjos.
No mais, o elemento predominante tanto no trabalho de Frank, como no álbum Exile dos Stones é a rua e sua diversidade, sua ‘fauna urbana’, seus diferentes tipos e expressões, suas ‘grandes minorias’ relegadas à invisibilidade por não se enquadrarem no sistema (ou exatamente porque enquadradas nele). Nela, a rua, coexistem em constraste o marketing mais ou menos impessoal de um entusiasmo difusamente generalizado, digerível, reproduzido na forma de chavões, slogans que ‘acabam pegando’ (‘Love America’, ‘I  NY’...) e também as irreverentes expressões da oralidade de grupos urbanos heterogêneos (‘You got to scrape the shit off your shoes’, coisa que, convenhamos, só pode ser feita mesmo... na rua!). Tais dizeres populares figuram em cartazes à mão e versam sobre as dificuldades reais pelas quais atravessam as pessoas reais, de carne e tutano, porém, anônimas, à margem do mercado formal e da garantia de seus benefícios. Mas não de suas promessas.
Fazendo seus ‘bicos’ diários, são o esteio e o refugo da cidade: sapateiros, ‘flanelinhas’, músicos, vendedores ambulantes, artistas, mendigos.
O guardador de carros, mesmo que pareça incorporar uma personagem extraordinária diante da câmera, não parece interessado nela. Não se deixa agarrar pela lente, não se contém, extravasa a moldura, explode a pausa. Toureiro urbano, ele mesmo suspenso, no fio da navalha, em trânsito, dança no inconstante equilíbrio vida/ morte - ‘yin, yang, you’re my thing’. No labirinto móvel, de ferro e concreto, carne e osso da cidade, sem perder o fio da meada, ele é o sangue que por ela corre, escorre. A vida como arena (o 'um leão por dia' cabe bem num contexto imperialista). Ao mesmo tempo é ele o boi diário, procurando escapar da hecatombe, do holocausto.
Soul survivor, soul survivor...
É de tirar o chapéu diríamos nós. É de passar o chapéu talvez replicasse ele!
E há também os cegos, placas a tiracolo (Please, help the blind. Thank you), cuja iconografia encontra referente na fotografia de Julius Kirschner, Jacob Riis (1849 - 1914), Lewis Hine (1874 - 1940), August Sander (1876 - 1964), Paul Strand (1890 - 1976), Lisette Model (1901 - 1983), John Gutmann (1905-1998), Jed Fielding (1953 - ), entre outros; presente na pintura, remonta aos primórdios passando pelo Velho Brüegel (1525 - 1569), Velásquez (1599-1660), Goya (1746 - 1828), Millais (1829 - 1896), Bastien-Lepage (1848 - 1884), Picasso (1881-1973); na contemporaneidade, o escritor Saramago (1922 - 2010) em seu 'Ensaio sobre a Cegueira'. E até produções high-tech holywoodianas como Matrix (1999) revisitam incessantemente essa personagem tão rica em sua simbologia.
Outras dessas personagens igualmente marginais são bem conhecidos nossos na história moderna das artes, desde Courbet, por exemplo, e Manet: crianças indigentes, ciganos, o boêmio, o violinista ambulante, o trapeiro, o bebedor de absinto, o judeu errante...6 Mesmo nos artistas - e tentamos aqui nos abster de excessiva inclinação romântica - ainda que enquadrados e taxados hoje como membros de tal ou tal vanguarda (Dadaístas, surrealistas, pop, Beatniks) é flagrante essa identificação com a marginalidade, a solidão e o deslocamento. Os Stones são, nessa época, e na acepção forte da palavra, legítimos boêmios. Robert Frank botou o pé na estrada e aí permaneceu durante dois anos, coletando material para suas séries. Ao retornar, durante uma festa, mais precisamente do lado de fora (sempre a rua!), conheceu Jack Kerouac, que assinaria então o prefácio da edição americana de seu The Americans, publicado em 1958).
É possível olhar estas e outras personagens ao longo do tempo, e também hoje reconhecê-los, porque os artistas sentiram a necessidade de torná-los visíveis e memoráveis. Reconheceram a necessidade de chamar a atenção para cada uma destas pessoas em particular, para o modo como cada um de nós as vê. A partir daí podemos nos questionar a respeito da visão que temos acerca de nós mesmos e também, e não menos importante, para o modo de relações que cultivamos nos nosso convívio social.
Essa poética do deslocamento, do estranhamento do inventário urbano, carrega consigo uma estética, aquela da decepção, pois é preciso saber que nem tudo - na verdade, quase nada, diríamos - é como na propaganda. Nem tudo vai bem como numa pintura de Caillebot. Nem tudo acaba bem. E dependendo do que se entenda por bem, nem tudo tem que acabar bem.
Por isso ela é também uma ética e uma tática. Envolve ações sutis, encaradas como microscópicas sob nossa ótica usual, acostumada a uma visão tradicional de história, sociedade e cultura, perspectiva que ainda carregamos, ajeitando sobre o nariz. E ainda que a sensação seja a de que, sem saber, possamos estar caminhando para isso, arrancar os olhos não é mais uma alternativa.
Num mundo em que a realidade está morta (nós a matamos) e no qual o pior cego é rei é preciso saber admirar o que quer que seja. Utopia é tirar os óculos e há que se considerar, afinal já dizia Herbert Vianna: “eu não nasci de óculos...”
É tirar os óculos apelar pra Drummond:

“Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.”




Notas

1. Robert Frank. Life Magazine, 26 november 1951, p. 21/ Livre tradução.

2. Curiosamente o título seria uma referência, entre outras possíveis, ao período no qual os Stones alugaram a Ville Nellecôte na França, por conta de sérios problemas com impostos na Inglaterra. O dinheiro angariado na tour serviria ao propósito de quitar suas pendências fiscais no país de origem.

3. Livre tradução. A crítica irônica deixa entrever a questão subliminar da “arma branca”, em oposição ao aparato bélico legítimo do Estado. Armas brancas são consideradas armas impróprias porque objetos que eventualmente podem ser utilizados agressivamente, embora sua utilização normal não seja esta. Enquadram-se nessa categoria ferramentas e utensílios (martelos, machados, navalhas e lâminas de modo geral) de amplo uso e fácil acesso às populações pobres. A notícia como foi veiculada, serve como confirmação do estereótipo do marginal (elemento naturalmente agressor, que se utiliza da arma de maneira gratuita e covarde) ao mesmo tempo que mina o impulso de solidariedade, reforçando o individualismo e a apatia.

4. DUBOIS, Philippe. Cinema, Vídeo, Godard.Trad. Mateus Araújo Silva, São Paulo, Cosac & Naify 2004 (passim).

5. Excerto do poema Sísifo de Miguel Torga, pseudônimo de Adolfo Correia Rocha (1907-1995), poeta e prosador português. In Diário (vol. XIII), Coimbra, Ed. Autor, 1983.

6. Ver BLAKE, Nigel; FRASCINA, Francis. As Práticas Modernas da Arte e da Modernidade In Modernidade e Modernismo - A Pintura Francesa no Século XIX, São Paulo, Cosac & Naify, 1998. p. 82.



Referências Bilbliográficas

_ ANDRADE, Carlos Drummond de. Sentimento do Mundo, 8 edição, Rio de Janeiro, Ed. Record, 1999.

_ DUBOIS, Philippe. Cinema, Vídeo, Godard.Trad. Mateus Araújo Silva, São Paulo, Cosac & Naify 2004.

_ FRASCINA, Francis et al. Modernidade e Modernismo - A Pintura Francesa no Século XIX, São Paulo, Cosac & Naify, 1998. p. 82.

_ TORGA, Michel. Diário (vol. XIII), Coimbra, Ed. Autor, 1983.



Sites

_ American Museum of Natural History (Galeria virtul de imagens do Museu Americano de História Natural)
Disponível em: http://images.library.amnh.org/photos/ptm/catalog/desc/183974/

_Flickr (site de hospedagem de imagens. Galeria de fotos favoritas de Rachel Citron)
Disponível em: http://www.flickr.com/photos/rachel_citron/favorites/with/3037440100/#photo_3037440100

_ Me and my Mamiya (blog de Pamela Pike, Toronto, Canadá, especializado em fotografia).
Disponível em: http://meandmymamiya.blogspot.com/2009_08_15_archive.html

_ Turn me on, dead man (Blog de uma estação de radio on line especializada em punk, garage rock e psychedelia).
Disponível em: http://www.turnmeondeadman.net/index.php?option=com_myblog&show=robert-frank-and-the-rolling-stones.html&Itemid=5

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