24 janeiro, 2008

Ego 1x0.

("Estudo: padrões aleatórios" - aquarela, A4)

(...) Sonhou com muitas e muitas coisas. Acordou e, à medida em que recordava cada uma delas, ia tentando analisar aquilo de que lembrava, tudo o que viu, ouviu e fez. Pairava sobre si um pressentimento uniforme, crescente, de que tudo aquilo tinha algo a ver com uma única e bem definida coisa, que ironicamente não aparecera no sonho. Permaneceu assim por uns dez minutos, sentindo o coração movido, a palpitar. Levantou. Cruzou a sala, ofegante embora a passos lentos, o corpo começando a acordar... Debruçou na janela do décimo andar, cego da paisagem, e pensou. Pensou. E concluiu que todo o enredo do sonho era determinado pela infeliz acomodação dos seus órgãos internos na geografia acidentada do sofá, pela zoada vespertina do trânsito e pelo choro estridente d'alguma furadeira  na eterna reforma circunvizinha. Ele era Alice. É inútil procurar significado (disse para si mesmo, naquele dialeto ancestral e idiossincrático dos solitários, uma língua inata e morta). É inútil. Não há nada de subjetivo em sonhos. No fim os cientistas explicarão. É questão de tempo. Provavelmente não viverei pra ver, mas é sempre assim... É tudo inútil.

Sentou ao computador. Escreveu, a princípio fácil, depois escolhendo as palavras, selecionando-as. Depois substituindo-as. Apoderou-se do dicionário, pediu ajuda, introduziu preciosismos. E... no final, o que conseguiu?

Perdeu a possibilidade de relembrar o que ainda era fresco na movediça superfície onírica. A vigília barganhou, sorrateira, laços por lapsos e do enredo fugidio do sonho sobrou exclusivamente o  imediatamente lembrado e já irremediavelmente inesquecível. Perdeu uma rica oportunidade de autoconhecimento (mas não saiu ileso; isso, definitivamente não). Livrou-se, é verdade (e só em parte), da incômoda sensação, incógnita, persecutória e recorrente, característica dos sonhos (pelo menos dos seus próprios). Mas, acima de tudo, - e nessa altura sorriu, tamborilando os dedos nas teclas, embalado dentro de sua cabeça que meneava; terminou a última linha e percorreu os olhos pelo monitor numa última e narcísica revisão - acima de tudo, convenceu-se e  parabenizou-se a si mesmo: "_É um bom texto, vou postar no blog."

Nenhum comentário: